Introdução
A crescente complexidade dos sistemas de saúde cria enormes desafios nos diferentes contextos da prática de cuidados e a todos os seus intervenientes. As boas práticas e os principais reptos que atualmente se colocam às organizações de saúde exigem a adoção de estratégias conducentes à promoção de cuidados de saúde seguros. A qualidade dos cuidados e a segurança do doente assumem-se como focos de atenção e têm sido reconhecidos como determinantes no desenvolvimento dos sistemas de saúde (Direção-Geral da Saúde, 2011). A construção de uma cultura de segurança impele, nestas organizações, à criação de uma abordagem proativa e transparente que promova mudanças organizacionais e comportamentais na prevenção e gestão de eventos adversos. O eixo estruturante é a melhoria contínua baseada na evidência científica, na aprendizagem com o erro, procurando controlar riscos, minimizando a ocorrência e impacto de eventos adversos decorrentes da prestação de cuidados de saúde.
Uma das estratégias utilizada é o relato e gestão de eventos adversos, com o intuito de identificar fatores contributivos e definir planos de melhoria que promovam a revisão dos sistemas e dos processos de trabalho (Infusion Nurses Society [INS ], 2021).
O Centro Hospitalar onde foi realizado o presente estudo integra várias unidades hospitalares que desde 2001 utilizam sistemas de notificações de incidentes, e em 2011 passaram a integrar um sistema único e eletrónico para notificação de incidentes de segurança do doente. A organização e classificação das tipologias de incidentes nesta plataforma eletrónica está de acordo com a classificação internacional sobre segurança do doente (CISD), criada pela Organização Mundial de Saúde e publicada pela Direção-Geral de Saúde em 2011.
Decorrente do terceiro desafio global lançado em 2017 pela OMS “Medicação sem danos” e em resposta a um projeto de melhoria no âmbito do registo e monitorização de flebites associadas a cateterismo periférico, em curso na Área da Medicina em articulação com o Gabinete de Segurança do Doente desta instituição, foi promovida nesse mesmo ano, uma atualização do sistema de relato. Em conjunto com um grupo de trabalho dessa área clínica foi criado um formulário com campos específicos para o relato de incidentes de flebite, na tipologia “Acidentes do doente”, relativos a: (i) caraterísticas do dispositivo; (ii) localização e tempo de permanência do cateter; (iii) tipo e frequência de administração de medicamentos/fluidos; (iv) caraterização da flebite (sinais e sintomas); e (v) intervenções/medidas implementadas.
A evolução do número crescente deste tipo de registo de incidentes de segurança do doente, verificada ao longo dos anos subsequentes no centro hospitalar em questão, justificou a realização de uma análise multi-incidente, agregando os incidentes de 2018 e 2019. Decorrente deste processo de análise, verificou-se que os relatos descreviam um maior número de flebites em doentes com administração de antibioterapia, antipiréticos e diuréticos. Surgiu assim a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre esta problemática, com vista a estruturar um plano de melhoria para a prevenção de flebites associadas ao cateterismo periférico. Boas práticas na colocação e gestão de dispositivos de administração de medicamentos/fluidos intravenosos contribuem para prevenir e/ou minimizar a ocorrência de flebites e suas eventuais consequências, promovendo a qualidade dos cuidados de enfermagem, segurança do doente e aumento de ganhos em saúde (INS, 2021).
Este artigo apresenta um trabalho de investigação que tem como objetivo geral analisar os incidentes de flebite associada ao cateter venoso periférico (CVP) e os medicamentos administrados em doentes adultos internados e as suas consequências. Como objetivos específicos foram definidos: caracterizar os incidentes de flebite, associada a CVP documentados no sistema de relato de incidentes de segurança do doente; identificar os medicamentos administrados em doentes em que foram notificadas flebites associadas a CVP; classificar as consequências dos incidentes de flebite com recurso à escala VIP PT-PT e de acordo com a estrutura concetual da classificação internacional sobre segurança do doente (CISD); e descrever as medidas implementadas após o incidente de flebite.
Enquadramento
Numa cultura de segurança do doente, a prevenção de incidentes deve basear-se na procura dos seus reais determinantes. Tal deve constituir uma preocupação de todos os implicados, nomeadamente dos enfermeiros. A gestão de CVP exige competências técnico-científicas específicas para a sua colocação, manutenção, vigilância, prevenção e tratamento de eventuais complicações (INS, 2021).
Os CVP são os dispositivos de acesso intravascular de uso mais frequente em contexto hospitalar, para administração de medicamentos/ agentes de contraste, transfusões de sangue/hemoderivados e nutrição parentérica (Braga et al., 2018). Entre 58,7% a 86,7% dos doentes internados apresentam um CVP inserido durante o período de internamento, “representando uma parcela significativa e diferenciada dos cuidados realizados por parte dos enfermeiros” (Braga et al., 2018, p. 2).
A flebite é uma das complicações associadas à utilização de CVP. Por ser um incidente do qual resulta dano desnecessário para o doente, é classificada como evento adverso (Direção-Geral da Saúde, 2011).
O seu impacto é variável, podendo ser potencialmente grave. A ocorrência pode ser evitável, e as consequências, em caso da sua existência, podem ser minimizadas. Para tal é fundamental que os enfermeiros identifiquem os principais fatores de risco, detetem precocemente a sua presença e intervenham na sua mitigação.
De acordo com a INS (2021), a flebite é definida como a inflamação de uma veia que pode ser acompanhada por dor ou sensibilidade, eritema, edema, exsudado purulento e/ou cordão venoso palpável.
Numa revisão integrativa da literatura desenvolvida por Urbanetto et al. (2017), concluiu-se que a maioria dos artigos descreveram a associação da flebite a vários fatores de risco, como sejam: tempo de permanência do cateter; local de punção; tempo de internamento; número de acessos venosos; motivo de remoção; administração de antibióticos; manutenção intermitente; e inserção em situações de emergência. Também Lee et al. (2019) conduziram um estudo com o objetivo de identificar fatores preditivos de flebite em doentes hospitalizados num serviço de ortopedia. Foram identificados fatores em diversas categorias: individuais (qualidade/fragilidade da veia); químicos (uso de contraste e de medicamentos/fluidos com alto ou baixo pH ou elevada osmolaridade); mecânicos e infeciosos (higiene das mãos e experiência dos enfermeiros).
A flebite pode ser classificada como química, mecânica, infeciosa ou pós-administração (INS, 2021). A flebite química pode estar relacionada com a perfusão de dextrose (>10%), valores extremos de pH ou osmolaridade e determinados medicamentos como o cloreto de potássio, amiodarona e alguns antibióticos (INS, 2021). A presença de fatores como “partículas na perfusão; uso de um cateter de calibre grande para a veia com inadequada hemodiluição e um ritmo de perfusão excessivo” (INS, 2021, p. S138) podem estar relacionados com este tipo de flebite.
Para além do impacto nos resultados em saúde, os eventos de flebite têm também implicação nos gastos em saúde. Em Espanha, até 30% da bacteriemia associada aos cuidados hospitalares está relacionada com a utilização de dispositivos intravasculares, e estes produzem aumento da morbilidade e das despesas hospitalares, que se estimam em cerca de 18.000 euros por episódio (Muñoz et al., 2018). Também Furlan e Lima (2020) realizaram uma pesquisa quantitativa com objetivo de identificar o custo dos procedimentos realizados para o seu tratamento. Foram notificadas 107 flebites, referentes a 96 doentes e 656 procedimentos, sendo a estimativa do custo médio total de US$ 866,18 /ano.
Em Portugal, a cateterização venosa periférica é uma intervenção do Enfermeiro de cuidados gerais, norteada pelos padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem, definidos pela Ordem dos Enfermeiros (2001). Para além disso, a intervenção do Enfermeiro é preponderante na prevenção de eventos adversos e na procura permanente da excelência dos cuidados de saúde (Ordem dos Enfermeiros, 2001).
Questões de investigação
Quais os medicamentos mais frequentemente administrados a doentes em que foram notificadas flebites associadas a CVP?; Quais as consequências dos incidentes de flebite notificados e as medidas implementadas?; A informação descrita no relato de flebite contém informação que permita relacionar este evento adverso com a administração de medicamentos?
Metodologia
De acordo com a natureza do problema e objetivos traçados, realizou-se um estudo quantitativo, retrospetivo, descritivo e transversal.
A população deste estudo é constituída por todos os doentes maiores de 18 anos, internados em serviços da área da medicina de um Centro Hospitalar da região de Lisboa, no ano de 2019, num total de 12 254. Destes, 6 038 (49%) são do sexo feminino e 6 216 (51%) do género masculino.
A população foi filtrada respeitando os critérios de inclusão: idade superior a 18 anos; serviços de internamento de adultos da área da medicina; incidentes notificados na área da medicina, na tipologia “Acidentes do doente” e cujo mecanismo que o desencadeou tenha sido identificado como “acesso vascular periférico com flebite”.
Através de um método de amostragem não probabilística por conveniência, foi constituída a amostra do nosso estudo, composta por 96 doentes, internados em serviços da área da medicina, com incidente de flebite reportado no sistema de relato interno, com uma representatividade de 0,78%.
A primeira fase deste estudo foi desenvolvida entre maio e julho de 2021 e teve início com a recolha de todos os incidentes classificados em “Acidentes do doente” e relacionados com flebite, notificados no período compreendido entre 01/01/2019 e 31/12/2019, do sistema de relato interno de incidentes de segurança do doente.
Os dados foram recolhidos, numa primeira etapa, através da informação registada nos relatos. Na segunda etapa foi realizada a análise do processo clínico com recolha de informações sobre o evento de flebite e as suas consequências, nos registos de enfermagem, diários clínicos e notas de alta - pelo processo clínico eletrónico. Foi também realizada recolha de informação no Sistema de Gestão Integrado do Circuito do Medicamento relativa aos medicamentos administrados no dia da deteção da flebite e nas 24 horas anteriores.
Foi construída uma base de dados (com recurso a Microsoft Excel 2016) com as seguintes variáveis, obtidas através dos relatos e registos dos processos clínicos: dados de caraterização do doente (idade, sexo); caraterização do cateterismo (tipo e calibre do cateter; local anatómico da inserção do cateter; solução para antissepsia da pele no momento de punção); condições de manutenção do cateterismo (tempo de permanência do CVP; tipo de penso e frequência de realização do mesmo; cateter obturado); condições associadas à deteção de flebite (durante a permanência do cateter ou pós-administração de medicamentos/fluídos intravenosos); medicamentos ou outros fluidos administrados através do cateter com flebite associada; consequências (sinais, sintomas); e intervenções realizadas.
As flebites foram categorizadas de acordo com a classificação internacional sobre segurança do doente (Direção-Geral da Saúde, 2011), relativamente ao dano resultante, e através da aplicação da escala VIP PT-PT traduzida e adaptada culturalmente para Português Europeu (Ventura, 2019). Esta escala permite avaliar o grau de flebite através da observação de seis sinais e sintomas: dor; edema; eritema; endurecimento; cordão venoso palpável; e febre. Foi obtida autorização formal dos autores, através de contacto por correio eletrónico.
Este projeto de investigação recebeu parecer favorável do Conselho de Administração do centro hospitalar, após avaliação pela Comissão de Ética para a Saúde (processo nº 1076/2021) e do Gabinete de Investigação.
Resultados
No que diz respeito a aspetos da caraterização da amostra, destaca-se: dos doentes associados aos 96 incidentes de flebite, 63 (65,6%) são do sexo masculino e 33 (34,4%) do feminino.
A idade dos doentes varia entre os 27 e os 97 anos, tendo 72% mais de 65 anos. Relativamente ao tempo de permanência do CVP: 60 incidentes registavam 4 ou menos dias de permanência do dispositivo. Quanto à localização do cateter, os locais mais frequentes foram: antebraço (n = 32) e mão direita (n = 13). Quanto ao calibre do CVP: 36 (37,5%) relatos são relativas a 20 Gauge (G); 10 relatos (10,4%) relativos a 18G; 8 relatos (8,3%) relativos a 22G; e os restantes 42 relatos (43,8%) não identificavam o calibre.
Em 60 incidentes a flebite foi detetada durante a permanência do cateter e em 26 incidentes foi detetada após a remoção do CVP. Nos restantes 10 incidentes não está registado o momento da deteção ou não está identificado o momento da deteção. Quanto ao tipo de penso de CVP: 76 relatos (79,2%) identificaram o penso transparente estéril; um relato (1%) referiu o adesivo não estéril; e 19 (19,7%) não identificaram o tipo de penso usado. Quanto à frequência da realização do penso de CVP, 44 relatos (45,8%) referiam fazê-lo no momento de substituição do cateter.
Em 55 incidentes (57,3%) foi registado que o cateter estaria obturado para administração intermitente de medicamentos. Em 21 incidentes (21,9%) foi registada a perfusão contínua, sendo o cloreto de sódio (7,3%) e a solução polieletrolítica (4,2%) os mais frequentes. Nos restantes 20 (20,8%) incidentes não foi assinalada uma resposta quanto ao cateter estar obturado ou não. Em seis incidentes (6,2%) foi registada a administração de eletrólitos no dia ou nas 24h anteriores à deteção da flebite. Nos incidentes associados a administração de antibióticos verificou-se a administração de 1 (28; 29,2%) ou 2 antibióticos (14; 14,6%) no mesmo doente.
Os dados referidos encontram-se sintetizados na Tabela 1.
Variáveis | Frequência | |
---|---|---|
Absoluta: Nº incidentes (n) | Relativa: Percentagem incidentes (%) | |
Cateter obturado para administração de medicação intermitente | ||
Sim | 55 | 57,3% |
Não | 21 | 21,9% |
Desconhecido | 20 | 20,8% |
Total | 96 | 100% |
Tipo de Perfusão contínua | ||
Cloreto de sódio | 7 | 7,3% |
Solução polieletrolítica | 4 | 4,2% |
Cloreto de sódio + Solução polieletrolítica | 2 | 2,1% |
Dextrose 5% em Cloreto de sódio | 1 | 1% |
Solução polieletrolítica com glucose | 1 | 1% |
Outras perfusões | 6 | 6,3% |
Sem perfusão contínua | 55 | 57,3% |
Desconhecido | 20 | 20,8% |
Total | 96 | 100% |
Administração de eletrólitos | ||
Sulfato de magnésio | 3 | 3,1% |
Fosfato monopotássico | 2 | 2,1% |
Cloreto de potássio | 1 | 1% |
Sem administração de eletrólitos | 90 | 93,8% |
Total | 96 | 100% |
Administração de antibióticos | ||
1 antibiótico | 28 | 29,2% |
2 antibióticos | 14 | 14,6% |
Sem antibiótico | 54 | 56,2% |
Total | 96 | 100% |
Dos grupos terapêuticos, os mais administrados foram: antibióticos (n = 42); diuréticos (n = 21); analgésicos e antipiréticos (n = 14); e inibidores da bomba de protões (n = 12). Dos medicamentos mais frequentemente administrados destacam-se: furosemida (n = 21); pantoprazol (n = 12); paracetamol (n = 11); piperacilina + tazobactam (n = 10); e amoxicilina + ácido clavulânico (n = 9).
Quanto às intervenções realizadas após a deteção da flebite foram identificadas no aplicativo de notificação de incidentes e/ou no processo clínico eletrónico: a aplicação de gelo (n = 79); vigilância do local (n = 78); remoção do cateter (n = 71); realização de penso (n = 22); e aplicação de tratamento tópico (n = 4).
De acordo com a Classificação Internacional sobre Segurança do Doente (CISD), 84 incidentes de flebite (87,5%) resultaram em dano ligeiro e 12 (12,5%) em dano moderado. Dos incidentes com dano moderado todos motivaram intervenção clínica mais específica com necessidade de recurso a antibioterapia. Nestas situações, a via endovenosa (n = 7) foi mais frequente que a via oral (n = 5). Na aplicação da escala VIP PT-PT os scores mais frequentes foram: score 2 (n = 75; 2 sinais ou sintomas: dor junto ao local da cateterização venosa, eritema e/ou edema) e 3 (n = 15; dor ao longo do trajeto do cateter, eritema e endurecimento adjacente ao local). Os dados referidos encontram-se sintetizados na Tabela 2.
Variáveis | Frequência | |
---|---|---|
Absoluta: Nº incidentes (n) | Relativa: Percentagem incidentes (%) | |
Dano resultante (segundo a CISD) | ||
Dano ligeiro | 84 | 87,5% |
Dano moderado | 12 | 12,5% |
Total | 96 | 100% |
Sinais e sintomas presentes, segundo escala VIP PT-PT | ||
Score 1 - Dor ligeira ou rubor junto ao local da cateterização venosa | 3 | 3% |
Score 2 - Dois dos seguintes são evidentes: Dor junto ao local da cateterização venosa; Eritema; Edema | 75 | 78% |
Score 3 - Todos os seguintes são evidentes: Dor ao longo do trajeto do cateter; Eritema; Endurecimento adjacente ao local | 15 | 16% |
Score 4 - Todos os seguintes são evidentes e extensos: Dor ao longo do trajeto do cateter; Eritema; Endurecimento adjacente ao local, Endurecimento do trajeto venoso palpável | 1 | 1% |
Score 5 - Todos os seguintes são evidentes e extensos: Dor ao longo do trajeto do cateter; Febre; Eritema; Endurecimento adjacente ao local; Endurecimento do trajeto venoso palpável | 2 | 2% |
Total | 96 | 100% |
Nota. CISD = Classificação Internacional sobre Segurança do Doente; Escala VIP PT-PT = Escala Visual Infusion Phlebitis Score Português Portugal.
Discussão
A importância do sexo como fator de risco para o desenvolvimento de flebites tem sido evidenciada em diversos estudos. Neste estudo verificou-se um maior número de doentes do sexo masculino (65,6%). Numa revisão integrativa da literatura que incluiu 14 artigos originais, 57,1% descreveram a associação de fatores de risco para o desenvolvimento de flebite, onde foi identificado apenas num artigo o sexo como fator de risco, atribuindo prevalência associada ao sexo feminino (Urbanetto et al., 2017), o que vem contrariar os dados do nosso estudo.
Quanto à localização do cateter, os locais mais frequentes foram o antebraço (33,3%) e a mão (23%), o que corrobora os dados de estudos que identificam maior incidência de complicações em cateteres inseridos no antebraço (Lv & Zhang, 2020) e no dorso da mão (Enes et al., 2016). Na amostra estudada, o calibre 20 G foi o mais frequente (37,5%), seguido do calibre 18G (10,4%) e do calibre 22G (8,3%). Analisando a população em estudo (12 254), os CVP de calibre 20G foram os mais utilizados (50,7%), seguindo-se o calibre 22G com 44,9% e o calibre 18G com 4,4%.
Os dados encontrados são suportados pelas recomendações da INS (2021), que refere serem os cateteres de calibre superior a 20G os mais prováveis de causar flebite. Num estudo desenvolvido numa instituição de saúde portuguesa, o calibre 18G foi o mais prevalente (Nobre & Martins, 2018).
A maioria dos incidentes identifica o penso transparente estéril para fixação do CVP (79,2%). Esta prática está de acordo com a INS (2021), pelo que não parece estar associada à ocorrência de flebite. A flebite detetada durante a permanência (62,5%) do cateter foi superior à identificada após a sua remoção. Contrariamente a estes dados, num estudo de coorte (Urbanetto et. al., 2016) com 171 pacientes com CVP, foi observado que a frequência da flebite pós remoção do CVP foi superior à frequência de flebite durante a permanência do cateter.
O tempo de permanência do CVP mais frequente foi até aos quatro dias (62,5%). De acordo com a recomendação do Center for Diseases Control and Prevention (2011), o período de permanência do CVP deve manter-se entre as 72 e as 96 horas. Num estudo desenvolvido por Urbanetto et al. (2016) foi possível observar que um tempo elevado de permanência do cateter influencia o aparecimento de flebite. Neste estudo, dos 167 cateteres inseridos por “mais de 72 horas, 24 doentes (14,4%) apresentavam sinais e sintomas de flebite” (Urbanetto et al., 2016, p. 7). Uma revisão sistemática com meta-análise conclui que o aumento do tempo de permanência do CVP não resulta em maior risco de flebite e infeção da corrente sanguínea (Eufrásio et al., 2021). Este estudo conclui que a substituição de CVP “rotineiramente, representa uma prática inefetiva e que deverá ser alterada” e “a troca apenas quando existe indicação clínica é uma prática segura” (Eufrásio et al., 2021, p. 82). Em 55 incidentes (57,3%), o cateter estava obturado para administração intermitente de medicamentos. Em 21 (21,9%) dos 96 incidentes o cateter estava a ser utilizado para administração de soluções em perfusão contínua. No entanto, um estudo observacional e prospetivo com 1069 doentes, concluiu que não existem diferenças significativas na incidência de flebite e infiltração, quanto ao uso de obturadores em comparação com a utilização de perfusões para manutenção de permeabilidade (Liu et al., 2020).
Da amostra do presente estudo, os grupos terapêuticos mais frequentemente administrados foram: antibióticos (43,8%); diuréticos (21,9%); analgésicos e antipiréticos (14,6%); e inibidores da bomba de protões (12,5%). Na meta análise desenvolvida por Lv e Zhang (2020) foram identificados como fatores de risco importantes para o desenvolvimento de flebite a administração de antibióticos. Os resultados do presente estudo alinham-se com os obtidos nesta meta análise no que se refere à administração de antibióticos.
De salientar que os medicamentos mais frequentemente administrados foram: furosemida (n = 21); pantoprazol (n = 12); paracetamol (n = 11); piperacilina + tazobactam (n = 10); e amoxicilina + ácido clavulânico (n = 9). Num estudo com objetivo de categorizar medicamentos endovenosos quanto à osmolaridade, pH e natureza vesicante de acordo com os diferentes níveis de risco de lesão tecidular, constatou-se que: a furosemida foi identificada como um medicamento de risco moderado (pelo pH elevado); a piperacilina + tazobactam (4 g/50 mL) foi também identificada como um medicamento de risco moderado (pela elevada osmolaridade); e o paracetamol como um medicamento de risco reduzido (Manrique-Rodríguez et al., 2021). Estes autores defendem que a seleção da via de administração e do dispositivo de acesso vascular mais adequado é crucial para minimizar o risco de complicações, como a flebite.
De acordo com a CISD, 12 incidentes foram classificados como dano moderado, estando registada a necessidade de antibioterapia para tratamento (5 por via oral e 7 por via endovenosa). A INS (2021) recomenda o uso de uma escala para avaliação sistemática e uniformizada do local de inserção do CVP para deteção precoce e monitorização de flebites. Nesse sentido, optou-se por realizar esta avaliação através da escala VIP PT-PT (Ventura, 2019). Relativamente à classificação de flebite segundo esta escala, a maioria dos incidentes de flebite foi classificada com score 2 (78%; Tabela 2). Num estudo que incluiu 317 doentes internados e 532 CVP (Atay et al., 2018), o score 1 de flebite foi o mais comum, após aplicação da escala VIP PT-PT. Assim sendo, verificou-se a aplicabilidade desta escala em estudos retrospetivos, tal como o presente estudo, evidenciando ainda a pertinência do seu uso sistemático na prática de cuidados para prevenção e deteção precoce de flebites.
Após a deteção da flebite, as intervenções foram: a aplicação de gelo (n = 79); vigilância do local (n = 78); remoção do cateter (n = 71); realização de penso (n = 22); e aplicação de tratamento tópico (n = 4). Nesta última medida instituída é referida a aplicação de bacitracina ou trolamina. Em situações de flebite, a INS (2021, p. S138) recomenda: determinar a possível etiologia; aplicar compressas mornas; elevar o membro; providenciar analgésicos, se necessário; e considerar anti-inflamatórios. Segundo a mesma, a aplicação tópica para o tratamento da flebite requer o desenvolvimento de mais estudos de eficácia (INS, 2021). Em situações específicas de flebite química e também, de acordo com a INS (2021), deve ser avaliada a terapêutica a administrar e a necessidade de um acesso vascular diferente, a redução da velocidade e/ou aumento da diluição da perfusão e em caso de suspeita, a remoção do cateter.
Como limitações deste estudo destacamos a dificuldade em obter informação detalhada (no relato de incidente e processo clínico do doente) sobre aspetos relativos ao cateter (tempo de permanência, localização, calibre e uso de obturador), ao penso utilizado e à flebite (momento de deteção e status no momento de alta). Num estudo qualitativo desenvolvido num hospital Português (Salgueiro-Oliveira et al., 2019) também a ausência de identificação do local exato de inserção do CVP e tempo de permanência foram identificados como limitações. A importância deste registo é enfatizada por Lv e Zhang (2020) que referem que o registo da data e hora de inserção do CVP podem ajudar a determinar as possibilidades e viabilidade de mudança de local do cateter. Ainda num estudo epidemiológico multicêntrico, desenvolvido em França, sobre eventos adversos relacionados com CVP (Miliani et al., 2017), os autores concluíram que a monitorização deve ser realizada durante pelo menos 48h após a remoção do cateter. Esta monitorização permite identificar e mitigar precocemente potenciais danos durante os cuidados ao doente (Miliani et al., 2017).
Conclusão
Com o desenvolvimento deste estudo foi possível caracterizar os incidentes de flebite, sendo este um indicador sensível aos cuidados de Enfermagem. Permitiu ainda identificar os medicamentos mais frequentemente administrados a doentes em que foram notificadas flebites associadas a CVP, bem como, as consequências das mesmas. Os resultados evidenciam a importância dos incidentes de flebite na segurança do doente, na evolução do internamento e na sua situação de saúde. Este estudo reforça a importância da intervenção de enfermagem na vigilância e deteção precoce de complicações associadas à flebite. A categorização das flebites pela escala VIP PT-PT mostrou que a maioria dos incidentes de flebite foi classificada com score 2 - estádio inicial de flebite. Estes valores demonstraram-se mais elevados que os apresentados na literatura consultada (score 1). Deste modo, emerge como recomendação a introdução da escala VIP PT-PT e a sua aplicação de forma consistente e generalizada em toda a organização, com vista à deteção precoce de sinais e sintomas de flebite.
Atendendo à dificuldade em obter informação detalhada que permitisse uma análise mais profunda, sugere-se um maior investimento na melhoria da qualidade dos registos. Por outro lado, o reconhecimento da flebite como incidente de segurança do doente, evidencia a importância do seu relato. Neste sentido, conhecer o perfil dos doentes atendidos na organização permitirá definir planos de melhoria que contemplem a definição de procedimentos orientadores de boas práticas, a monitorização da sua implementação e a inclusão do tema no plano de formação transversal da organização. Tendo em conta a natureza multifatorial das flebites, fará sentido, em futuros estudos, alargar a amostra e acrescentar novas variáveis para uma caracterização mais precisa dos fatores contributivos da sua ocorrência.
Conhecer os fatores de risco, causas e consequências da flebite poderá contribuir para desenvolver estratégias promotoras da segurança do doente e da qualidade das práticas de preparação e administração de medicamentos, bem como a monitorização dos locais de inserção de CVP para uma gestão adequada dos mesmos. Tal poderá contribuir para a diminuição da ocorrência deste tipo de incidente durante o internamento hospitalar.