Introdução
A violência conjugal (VC) é considerada um problema de saúde pública e os últimos dados do Relatório Anual da Associação de Apoio à Vítima (APAV), revelam que a violência doméstica é o crime contra pessoas mais prevalente em Portugal (n = 19.846; 76,8%), particularmente nas mulheres (n = 10.308; 77,9%), embora se destaque um aumento do número de vítimas do sexo masculino (n = 2601; 19,6%). A faixa etária das vítimas e dos agressores(as) situa-se, em ambos os casos, maioritariamente, entre os 25 e os 54 anos, e as relações de intimidade entre autor e vítima de crime constituem cerca de 40% dos casos (APAV, 2021).
Os serviços de saúde, são o local privilegiado para a deteção de situações de VC e representam para muitas vítimas de violência, um local acessível onde podem receber apoio e informação (Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres [PPDM], 2017). Assim, e considerando que representa um crime público, o profissional de saúde tem um papel central na deteção do risco de VC e, concretamente no âmbito dos cuidados de saúde primários (CSP), deve atuar na deteção precoce, desenvolver uma intervenção familiar sistémica, e estar capacitado para atuar.
Contudo, dados da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) revelam que a denúncia destas situações pelos serviços de saúde ainda é escassa, verificando-se falhas no seguimento das recomendações vigentes e demonstrando que os profissionais nem sempre estão devidamente sensibilizados para esta avaliação sistemática e eficaz (IGAS, 2020). Alguns estudos revelam que o reconhecimento da violência fica restrito à identificação de sinais físicos quer em contextos hospitalares de urgência (Durham-Pressley et al., 2018), quer no âmbito dos CSP (Oliveira et al., 2020; Sousa et al., 2021). Adicionalmente, as perceções e crenças pessoais dos profissionais de saúde sobre violência (Mendes, 2016), bem como a sua preparação inadequada, constituem fatores importantes que influenciam as intervenções junto das vítimas (Fisher et al., 2020; McLindon et al., 2019). Nos CSP, os enfermeiros de família (EF) têm um papel central na identificação e encaminhamento de situações de VC, pelas suas competências ao nível de avaliação e intervenção familiar pelo que, estes profissionais estão numa situação privilegiada para o despiste e acompanhamento destes casos pelo contacto direto com as vítimas/famílias, sendo elementos fundamentais na prevenção e deteção precoce. Contudo, as perceções, crenças e conhecimentos dos EF podem influenciar a sua abordagem perante estes utentes/famílias. Deste modo, este estudo objetivou: analisar as perceções, crenças e os conhecimentos dos EF sobre a VC e explorar a sua influência por fatores sociodemográficos e profissionais.
Enquadramento
A VC é definida como a violência que é exercida por um companheiro sentimental ou cônjuge que cause dano físico, sexual ou psicológico, podendo ser física, sexual, emocional e psicológica e económica (Direção-Geral da Saúde [DGS], 2016). Esta tende a evoluir segundo um padrão de diferentes fases que se repetem ciclicamente:(i) a fase de aumento de tensão; (ii) a fase do ataque violento; e (iii) a fase de lua-de-mel; denominado por ciclo de violência, por Leonore Walker (1979; DGS, 2016). Este ciclo surge associado a inúmeras consequências nas vítimas, e em todo o sistema familiar, quer ao nível da saúde, quer em consequências socioeconómicas como, o desemprego, custos acrescidos com a saúde, favorecendo o isolamento social e familiar (DGS, 2016).
Em situações de violência contribuem ainda, muitas vezes, a existência de crenças erróneas enraizadas na sociedade e famílias, que contribuem para a sua desculpabilização e para o aumento da sua prevalência (Faria, 2019). Estas crenças tendem a culpabilizar as vítimas, minimizando a responsabilidade e a culpabilidade do agressor, e desvalorizam a sua ocorrência e a gravidade; e são ainda muito prevalentes junto da população em geral, nomeadamente, junto da população masculina, com menos escolaridade e de níveis socioeconómicos mais baixos (Faria, 2019). Os resultados do estudo de Mendes (2016), com médicos e enfermeiros, reportam uma maior minimização e desvalorização da VC pelo género masculino em relação ao género feminino. Neste estudo, os profissionais do género masculino demonstraram ter uma maior tolerância perante a violência, revelando crenças que culpabilizam a vítima e atribuem a violência a causas externas (abuso de substâncias, situações de desemprego, stress da vida familiar).
Estas crenças sobre VC, também presentes entre os profissionais de saúde, prejudicam a sua sinalização e denúncia, impedindo uma intervenção atempada (Durham-Pressley et al., 2018). Estes autores demonstraram que os profissionais de saúde, em contexto de urgência, revelaram conceções erróneas sobre violência, em que a maioria dos enfermeiros (60,9%) não identificaram pacientes vítimas de violência e referiram ter conhecimento insuficiente sobre violência (36,1%). Fisher et al. (2020), também indicaram a falta de conhecimentos de 76% dos profissionais de saúde da área hospitalar e destacaram que 34% destes não sabiam como atuar. Relativamente à abordagem e habilidades específicas dos profissionais de saúde, 72% referiram ter tido pouco ou nenhum treino que lhes permitisse ter confiança e conhecimento sobre habilidades clínicas específicas sobre como atuar nos casos de violência (McLindon et al., 2019).
No contexto específico dos CSP, um estudo com enfermeiros demonstrou que o reconhecimento dos casos de violência e a identificação de sinais e sintomas durante a prática assistencial foi favorecida pela relação de vínculo e proximidade com os pacientes e pela escuta qualificada e que além da abordagem mais clínica e curativa (perante sinais físicos), os enfermeiros procederam ao encaminhamento para outras equipas de apoio familiar e/ou para a atenção secundária de saúde (nível de cuidados mais especializados; Sousa et al., 2021).
O défice de conhecimentos sobre violência, e a falta de formação durante o percurso académico, é também apontado pelos profissionais de saúde (Alshammari et al., 2018; Oliveira et al., 2020), reforçando a necessidade de formação teórica e técnica aos enfermeiros que lhes permita lidar, reconhecer e identificar vítimas de violência. Adicionalmente, o medo de ofender e abstenção de juízos de valor, da intromissão e a falta de habilidades de comunicação parecem ser limitadores de uma intervenção mais efetiva (Alshammari et al., 2018; Oliveira et al., 2020).
Relativamente às dificuldades, constrangimentos e barreiras mais comuns identificadas pelos profissionais de saúde, nos serviços de saúde, na literatura destacam-se: a falta de privacidade da vítima no atendimento e encaminhamento (Durham-Pressley et al., 2018); a falta de conhecimento/formação sobre a VC (Durham-Pressley et al., 2018; Oliveira et al., 2020); a inexistência de espaços específicos para atendimento destes casos (Durham-Pressley et al., 2018); a falta de protocolos de atuação e reguladores da sua intervenção (Oliveira et al., 2020); e a presença dos potenciais agressores aquando do contacto e abordagem a potenciais vítimas, bem como, o medo manifestado por estas, além de limitações de tempo (Fisher et al., 2020). Contudo, pela escassa existência de estudos nacionais em contexto de CSP, e pelas competências e conhecimentos sobre instrumentos de avaliação familiar e relação de proximidade dos EF junto das famílias, tornou-se importante identificar as perceções, as crenças e os conhecimentos dos EF sobre a VC de modo a serem implementadas estratégias de capacitação e atuação mais efetiva destes profissionais perante estas situações.
Hipóteses
H1- As características sociodemográficas (e.g. idade, sexo, estado civil) influenciam significativamente as perceções, crenças e conhecimentos sobre VC dos EF;
H2- As variáveis profissionais (e.g. tempo de experiência profissional, habilitações académicas e formação no âmbito da violência) influenciam significativamente as perceções, crenças e conhecimentos sobre a VC dos EF.
Metodologia
Foi realizado um estudo observacional, transversal do tipo descritivo-correlacional. A população deste estudo foram os 245 enfermeiros que trabalhavam em Unidades de Saúde Familiar (USF) ou Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) do Agrupamento de Centros de Saúde do Baixo Mondego (ACeS BM). Utilizou-se uma amostragem não probabilística intencional que teve como critério de inclusão os enfermeiros que trabalhavam em USF e UCSP do ACeS BM, tendo sido excluídos os enfermeiros que trabalhavam noutras unidades (e.g. Unidade de Cuidados na Comunidade e Unidades de Saúde Pública). A amostra foi constituída por 98 EF, com uma taxa de resposta de 40%, sendo que para amostra com menos de 500 participantes, taxas de resposta entre 20-25% possibilitam dados estatísticos confiáveis (Wu et al., 2022). O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Centro (ARSC; processo n.º 79/2020).
Na recolha de dados foi aplicado um questionário que incluía a caracterização da amostra e três instrumentos validados para a população portuguesa, designadamente: 1) Questionário sociodemográfico, constituído por seis questões (duas abertas, duas múltiplas e duas dicotómicas), para caracterização da amostra e das variáveis sociodemográficas (sexo, idade, estado civil), e profissionais (anos de exercício profissional nos CSP, habilitações académicas) e formação no âmbito da violência; 2) Questionário de caracterização e perceção da VC constituído por três questões múltiplas; e parte inicial do questionário intitulado “Representações da Violência Conjugal e Resposta do Sistema Judicial” (Cabral & Quintas, 2010, citado por Cabral, 2010), constituído por quatro questões de Likert de sete pontos (1 - discordo a 7- concordo), que avaliam a dimensão do fenómeno da VC, a sua visibilidade, a opinião sobre a sua criminalização, e perceção dos seus principais intervenientes. Nesta parte foram ainda integradas três questões múltiplas sobre a intervenção do EF em situações de VC no âmbito do seu exercício profissional, duas múltiplas sobre forma de atuação e encaminhamento perante situações de VC; e uma dicotómica sobre importância atribuída ao EF perante situações de VC; 3) Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (E.C.V.C.; Machado et al., 2015), permite avaliar as crenças no que concerne a violência física e psicológica no contexto das relações conjugais, é constituída por 25 itens em que os participantes avaliam a opinião através de escala de Likert de cinco pontos (1- discordo totalmente a 5 - concordo totalmente). Cada um dos itens constitui um ou mais quatro fatores que atribuem crenças relacionadas com diferentes fatores: fator 1 (16 itens), designado de legitimação e banalização da pequena violência; o fator 2 (10 itens), designado de legitimação da violência pela conduta da mulher; o fator 3 (8 itens), designado de legitimação da violência pela sua atribuição a causas externas; e o fator 4 (6 itens), designado por legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar, não permitindo a intervenção de terceiros. O score total é calculado através da média da soma das respostas a cada um dos itens, cotados de 1 a 5, e avalia o nível de aceitação e/ou tolerância do indivíduo face à VC, sendo que, o score maior corresponde a um nível de crenças superior de tolerância e aceitação da VC para a escala global e respetivos fatores (Machado et al., 2015). A E.C.V.C. apresenta uma consistência interna, obtida através do coeficiente alpha de Cronbach ((), de 0,93 (Machado et al., 2015). Neste estudo, obteve-se um ( global de 0,97, semelhante ao verificado para os fatores 1 (( = 0,97), 2 (( = 0,96), 3 (( = 0,97) e 4 (( = 0,96) da escala; 4) Questionário de Violência Conjugal - Causas, Manutenção e Resolução (QVC-CMR; Alarcão et al., 2007, citado por Aguilar, 2010) avalia o conhecimento sobre fatores relacionados com o aparecimento, manutenção e resolução da VC. É constituído por três conjuntos de afirmações relativos a fatores que contribuem para o início da violência, a sua manutenção e sua resolução. Cada grupo de fatores é constituído por 14 afirmações, avaliados de uma escala de Likert de quatro pontos (1 - discordo completamente a 4 - concordo completamente), em que a pontuação total corresponde à média dos fatores, podendo ser de 1 a 4, em que uma maior pontuação corresponde a um nível de conhecimentos superior. No estudo de Aguilar (2010) a escala apresentou uma consistência interna de ( = 0,84. Neste estudo, a consistência interna foi de ( = 0,88, e os scores para o fator 1, 2 e 3, foram de 0,90, 0,84 e 0,80, respetivamente.
A recolha de dados, decorreu no período de janeiro a maio de 2021, através de questionários online, enviados para o email institucional dos EF, pela Direção de Enfermagem do ACeS BM. Os participantes foram previamente informados acerca dos objetivos do estudo, via endereço eletrónico institucional e no questionário online que integrava o consentimento informado, livre e esclarecido, salvaguardando o cumprimento do Regulamento Geral de Proteção de Dados, e a garantia da segurança, proteção e confidencialidade dos dados facultados.
Na análise dos dados utilizaram-se técnicas de estatística descritiva (frequência, percentagem, média, desvio-padrão e máximo e mínimo) e inferencial (testes de hipóteses). A normalidade foi avaliada através do teste de Kolmogorov-Smirnov, verificando uma amostra de distribuição não normal (p ≤ 0,05), tendo-se recorrido à utilização de testes estatísticos não paramétricos, considerando como estatisticamente significativo, o valor de p < 0,05, nomeadamente o teste de Spearman (variáveis idade e experiência profissional com o nível de crenças e conhecimentos sobre VC); o teste de U de Mann-Whitney (variáveis sexo, estado civil e existência de formação prévia em VC, com o nível de crenças e conhecimentos sobre VC); e o teste Kruskall-Wallis (variável habilitação académica e o nível de crenças e conhecimentos sobre VC); utilizando-se o software IBM SPSS Statistics, versão 26.0.
Resultados
Caracterização sociodemográfica, profissional da amostra
A maioria dos participantes era do sexo feminino (85,7%), casados (83,7%), com uma média de idade de 48,2 ± 6,9 anos (variando entre 33 e 62 anos; Tabela 1). Metade dos participantes era licenciado/bacharel (54%), com tempo médio de exercício profissional 24,6 anos ± 6,2 (mínimo 11, máximo 38). Cerca de um terço (30%) tiveram formação específica no âmbito da VC (Tabela 1).
Variáveis sociodemográficas/profissionais/formativas | N (%) | M ± DP | |
Sexo Feminino Masculino | 84 (85,7) 14 (14,3) | ||
Idade (anos) | 48,2 ± 6,9 | ||
Estado civil Casais Singulares* | 82 (83,7) 16 (16,3) | ||
Habilitações académicas Licenciatura Mestrado Pós-licenciatura de especialização | 53 (54,1) 13 (13,3) 32 (32,7) | ||
Experiência profissional (anos) | 24,6 ± 6,2 | ||
Formação prévia no âmbito da VC Sim Não | 29 (29,6) 69 (70,4) | ||
Importância atribuída à existência de formação no âmbito da VC | 4,62 ± 0,6 |
Nota. * Inclui solteiros e viúvos; M = Média; DP = Desvio-padrão; VC = Violência conjugal.
Perceção da VC
Os dados obtidos revelaram que a maioria dos EF (n = 76; 78%) contactou com situações de VC, identificando em média dois sinais, nomeadamente “problemas emocionais” (n = 62; 82%), “problemas relacionais” (n = 38; 50%) e “vestígios físicos” (n = 30; 40%). A atuação mais frequente foi o encaminhamento para outros profissionais (n = 60; 79%), seguida do aconselhamento à apresentação de queixa pela vítima (n = 52; 68%), tendo apenas (n = 12; 16%) optado pela denúncia.
O problema da VC é percebido, como estando a aumentar (5,47 ± 1,36), verificando-se uma maior sensibilidade (5,60 ± 1,34) e menor tolerância (2,71 ± 1,66) à mesma. Os participantes percecionam que a VC existe na experiência de muitas famílias (4,98 ± 1,55), atingindo vários estratos sociais (6,27 ± 0,96), e não apenas famílias de estratos sociais baixos (2,3 ± 1,66). Consideram a VC um crime (6,7 ± 0,87), em que a maioria dos agressores, são homens (5,77 ± 1,51), identificando as mulheres como vítimas (5,91 ± 1,65).
Em relação às barreiras, a maioria dos EF identificou: a “Falta de conhecimento e formação específica” (n = 66; 67%), a “Ausência de protocolos de deteção e encaminhamento de vítimas” (n = 63; 64%), a “Limitação de tempo” (n = 51; 52%), a “Falta de espaços privados” (n = 26; 27%), o “Medo de represálias” (n = 24; 25%) e o “Incómodo” (n = 14; 14%).
Na atuação do EF, as intervenções sugeridas foram: Melhorar a articulação com as equipas locais de apoio à vítima (n = 83; 85%), a capacitação dos EF sob a forma de Formação específica sobre a VC (n = 81; 83%) e o Conhecimento de protocolos de deteção e referenciação de vítimas nas unidades dos CSP (n = 80; 82%).
Foi praticamente unânime (96%) a opinião dos EF sobre serem um elemento de referência na deteção precoce de situações de VC na sua intervenção com famílias.
Crenças e conhecimentos dos EF sobre VC
Globalmente, os EF apresentaram scores globais baixos (1,44 ± 0,45) com uma mediana (quartil-Q1;Q3) de 1,36 (1,16;1,56), indicativos de baixos níveis de crenças sobre VC, atribuindo-a principalmente a causas externas, mediana (Q1;Q3) de 1,58 (1,33;2) e à preservação da privacidade familiar, mediana (Q1;Q3) de 1,5 (1,17;1,67; Tabela 2).
O score médio de conhecimentos foi de 2,9 ± 0,29, com uma mediana (Q1;Q3) de 2,87 (2,69; 3,08). Verificou-se que o conhecimento sobre as causas associadas ao aparecimento da VC foi o fator com média mais baixa (2,34 ± 0,55), por outro lado, o conhecimento sobre os fatores de resolução apresentou uma média superior (3,27 ± 0,35; Tabela 2).
Nível de Crenças sobre VC | M ± DP | Med (Q1;Q3) | |
---|---|---|---|
E.C.V.C. Fator 1: Legitimação e banalização da pequena violência. | 1,26 ± 0,47 | 1.13 (1;1.25) | |
E.C.V.C. Fator 2: Legitimação da violência pela conduta da mulher | 1,36 ± 0,50 | 1,2 (1;1,5) | |
E.C.V.C. Fator 3: Legitimação da violência pela sua atribuição a causas externas | 1,68 ± 0,58 | 1,58 (1,33;2) | |
E.C.V.C. Fator 4: Legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar | 1,54 ± 0,53 | 1,5 (1,17;1,67) | |
E.C.V.C. score médio global | 1,44 ± 0,45 | 1,36 (1,16;1,56) | |
Nível de Conhecimentos sobre VC | |||
Fatores de Ativação da VC | 2,34 ± 0,55 | 2,43 (2;2.73) | |
Fatores de Manutenção da VC | 3,10 ± 0,34 | 3,07 (2,93;3,23) | |
Fatores de Resolução da VC | 3,27 ± 0,35 | 3,25 (3;3,57) | |
QVC-CMR Score médio global | 2,90 ± 0,29 | 2,87 (2,69;3,08) |
Nota. M = média; DP = Desvio-padrão; Med = Mediana, Q = quartil; VC = Violência conjugal; E.C.V.C = Escala de crenças de violência conjugal; Q.V.C. - CMR = Questionário de violência conjugal - causas, manutenção e resolução.
Relação das variáveis sociodemográficas e profissionais dos EF com as crenças e conhecimentos sobre VC
Verificaram-se apenas diferenças estatisticamente significativas na variável sexo e nível de crenças sobre VC (U = 384; p = 0,015), em que o sexo masculino apresentou sempre medianas de respostas superiores, comparativamente ao sexo feminino (66,6 versus 46,6). Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas (p > 0,05) nas restantes variáveis: idade, estado civil, habilitações académicas, tempo de exercício profissional e formação prévia em VC dos EF e nível de crenças e conhecimentos sobre VC. Assim globalmente, as hipóteses não se verificaram, apenas em H1, o sexo (masculino) dos participantes foi significativo relativamente às crenças sobre VC.
Discussão
Este estudo analisou as perceções, as crenças e os conhecimentos dos EF sobre VC.
Relativamente à perceção dos EF sobre VC, os dados evidenciaram que estes contactam com situações de VC no seu contexto de atuação profissional e, globalmente, parecem ter uma perceção abrangente sobre o fenómeno, nomeadamente sobre os sinais de deteção, as vítimas/agressores, apresentando uma maior sensibilidade e uma menor tolerância relativamente à VC. Esta perceção pode dever-se em parte a uma maior visibilidade do tema nos social media, bem como, pela alteração da legislação, que considera a VC como crime público. Além disso, a existência de documentação emanada em campanhas de sensibilização neste âmbito pode contribuir para esta maior perceção e baixa tolerância à VC.
No que se refere à abordagem das vítimas, os dados evidenciaram que os EF não se sentem competentes para lidar com o problema, referindo lacunas na formação teórica e na organização dos serviços na resposta perante situações de VC, o que vai ao encontro de outros estudos realizados, quer em contextos hospitalares (Alshammari et al., 2018; Fisher et al., 2020), quer em contexto dos CSP (Oliveira et al., 2020; Sousa et al., 2021) e que poderá explicar a baixa taxa de denúncia pelos EF que serviram de amostra neste estudo, também referida pelo IGAS (2020) a baixa denúncia pelos serviços de saúde; que deve servir de reflexão para uma capacitação mais efetiva e eficaz destes profissionais, designadamente na avaliação e orientação, incluindo a notificação nos sistemas de informação, conforme preconizado nas orientações vigentes (IGAS, 2020).
Relativamente às crenças, os resultados obtidos revelaram scores médios indicativos de baixos níveis de crenças entre os EF e uma maior concordância com a legitimação da violência pela atribuição a causas externas e pela preservação da privacidade familiar, acreditando que é um assunto da vida privada (Matos & Cláudio, 2010). Uma possível explicação para este resultado pode dever-se a questões de género. Neste estudo, verificaram-se diferenças entre o sexo masculino e feminino e as crenças dos EF, sendo os scores de crenças superiores (tolerância e aceitação) no sexo masculino, estando em linha com outros estudos realizados com profissionais de saúde em contexto de CSP (Mendes, 2016; Mendes & Cláudio, 2010). Segundo Faria (2019), os homens podem apresentar menos probabilidades de considerar como culpado ou responsável aqueles que mais se assemelha a si próprio. Embora exista uma relação entre género e sexo, estes são conceitos distintos. Deste modo, futuros estudos devem aprofundar as questões de género através da inclusão de outros instrumentos (e.g., Domestic Violence Myth Acceptance Scale de Peters, adaptada por Giger et al., 2017) de modo a relacionar as crenças com outras variáveis (e.g., atitudes face às mulheres, atribuições dos papéis de género).
Os resultados revelaram níveis de conhecimentos aceitáveis dos EF (pontuação média de 2,90 ± 0,29), sendo que 50% dos participantes apresentaram valores ≥ 2,87, dos quais 75% com valores ≥ 3,08 (escala de 1-4). Estes resultados foram similares ao reportado no estudo de Silva (2015) em que foram verificados níveis de conhecimento superiores no fator medidas necessárias para a resolução da VC e inferiores nas causas subjacentes ao início da mesma. Estes resultados sugerem que os EF estão menos conscientes e elucidados sobre as causas subjacentes ao início da VC, e por outro lado, parecem estar mais elucidados sobre as medidas necessárias para a resolução destas situações. Deste modo, e como estratégia preventiva, a formação nesta área pode ser relevante para uma deteção precoce de uma potencial situação de VD. Estes resultados, bem como a ausência de correlações estatisticamente significativas no que se refere ao tempo de exercício profissional e às habilitações académicas dos EF com as suas crenças e conhecimentos sobre VC, poderão dever-se ao facto da formação de nível superior dos respondentes poder determinar uma menor concordância com as crenças legitimadoras da violência, quando comparados com os participantes com menos habilitações (Faria, 2019; Mendes & Cláudio, 2010).
O estudo desenvolvido apresentou limitações tais como: amostra reduzida, constituída por EF de um único ACeS, limitando a generalização de resultados e a não-representatividade da amostra para os EF portugueses. Como sugestão para estudos futuros, poderia ser uma opção, a amostragem por quotas, de modo a obter um número significativo por grupo (e.g., etário). Também a opção pelo questionário online, provavelmente limitou a obtenção de uma taxa de resposta mais elevada, apesar do envio de e-mail de reforço para aumentar a taxa de resposta durante o período de recolha de dados. Contudo, como o estudo foi desenvolvido durante a pandemia COVID-19, deparamo-nos com algumas barreiras na divulgação do instrumento de recolha de dados e na participação dos enfermeiros.
Uma vez que os estudos realizados com EF, no âmbito dos CSP, também foram escassos na literatura, lacuna que este estudo procurou responder, sugere-se, o desenvolvimento de mais estudos com a inclusão de outros profissionais das equipas de saúde familiar para uma melhor compreensão do fenómeno.
Conclusão
Os EF percecionam situações de VC no âmbito da sua intervenção junto dos utentes/famílias, mas pela falta de formação específica nesta área, e dificuldades na abordagem e intervenção perante vítimas de VC, atuam sobretudo no encaminhamento para outros profissionais, optando menos pela denúncia.
Neste estudo, evidenciou-se que os EF apresentaram baixos scores de crenças sobre VC e score aceitável de conhecimentos. O género influenciou significativamente as suas crenças, sendo o sexo masculino que mais parece tolerar e aceitar a VC.
Decorrente dos resultados, sugerem-se como medidas facilitadoras para melhor abordagem da VC pelo EF, no contexto das equipas de saúde familiar: a melhoria da formação, contínua e estruturada nesta área, a todos os enfermeiros, iniciada no percurso académico, e reforçada pelas unidades, aumentando os conhecimentos e focando as crenças, de forma a esclarecer, inequivocamente, o seu papel na avaliação de risco e atuação perante uma suspeita de VC, fazendo notificação nos sistemas de informação, melhorando a capacitação efetiva destes profissionais e a articulação organizacional e interinstitucional, através da criação de manuais de boas práticas e de protocolos de articulação, tal como já acontece com outras áreas. Neste sentido, desde o términus do estudo desenvolvido, tem vindo a ser desenvolvido um projeto de capacitação dos EF de algumas USF no ACeS BM que visa a avaliação sistemática e eficaz de situações de risco de utentes/famílias. Assim a formação e treino dos EF nesta temática poderá reforçar competências que lhes permitem planear e desenvolver intervenções junto das famílias, promover relações de intimidade e conjugalidade saudáveis, sensibilizar para a perceção de situações de violência, sinalizar e identificar vítimas, tendo um papel importante na interrupção do ciclo de violência e prevenção neste âmbito.