Introdução
Ao longo dos últimos 25 anos, o Brasil tornou-se um dos países com o maior número de práticas participativas da população (Avritzer, 2008), e um exemplo disso é o orçamento participativo e os Conselhos de Saúde, reconhecidos em nível internacional como estratégias democratizantes idóneas para superação dos limites da democracia representativa.
Os Conselhos Municipais de Saúde (CMS), na mesma conceção de outras instâncias gestoras de políticas públicas, concentram a atividade no exercício da participação da sociedade civil numa arquitetura institucional relativamente nova, com potencial para conferir legitimidade e participação social nos processos de decisão política.
Além de possibilitar maior autonomia aos indivíduos que participam dos processos de decisão, conferindo assim maior dignidade às pessoas de modo geral, é certo que a participação social agrega em si um valor instrumental (Organização Mundial de Saúde [OMS], 2011). A literatura assinala diversos argumentos a favor da participação pública nos sistemas de saúde: a) valoriza o saber e a experiência dos/as pessoas, melhorando a qualidade das decisões, conduzindo, consequentemente, a melhores resultados de saúde (Cervia, 2018); b) melhora a representação de grupos sub-representados, reduzindo assim as desigualdades em saúde (de Freitas & Martin, 2015); c) representa também uma importante estratégia para superar o crescente défice democrático que caracteriza os sistemas de saúde (Coulter, 2013).
Contudo, estudos sobre o assunto têm apontado certa limitação nessa arquitetura participativa, que carrega consigo o paradoxo de ser, por um lado, uma potência para influenciar políticas setoriais, ao mesmo tempo em que parece apresentar uma baixa capacidade de equilibrar as forças que conformam o jogo político.
Algumas razões podem levar à baixa participação social em saúde, como a falta de vontade concreta de transferir parcela do poder de decisão às comunidades, conferir-lhes autonomia para de fato intervirem politicamente, e a falta de capacitação (Bastos Filho, 2015; Rocha et al., 2020; Ventura et al., 2018).
Nesse sentido, buscando fortalecer a cultura participativa na formulação de políticas, a OMS desenhou um modelo que enfatiza as dimensões constitutivas para maior aproximação entre a sociedade civil, de um lado, e os governos, de outro (OMS, 2011).
O presente estudo tem como objetivo descrever os arranjos nos quais se articula a participação social num CMS brasileiro, buscando responder à seguinte questão de investigação: Quais os elementos que influenciam a participação social no CMS em estudo, à luz das dimensões componentes da cultura participativa propostas pela OMS?
Enquadramento
As quatro dimensões que estruturam a cultura participativa proposta pela OMS são: i) estruturas e espaços para o exercício da participação; ii) recursos disponíveis para as partes a desempenharem; iii) conhecimento necessário para participar; iv) impacto de políticas e práticas anteriores. Nesse contexto, a sensibilidade governamental sobre a importância da participação e a sociedade civil organizada em defesa dos interesses coletivos são recursos que influenciam a participação social (Ventura et al., 2017). A Figura 1 ilustra as dimensões propostas.
Segundo a OMS, as estruturas - políticas, físicas e institucionais - constituem-se em aspeto decisivo para a medida do sucesso das práticas de participação social que, em última análise, é avaliado a partir da influência dessas ações no processo de formulação de políticas. Recomenda-se, assim, que sejam estruturas transparentes, descentralizadas e que adotem procedimento formal (OMS, 2011). Nesse contexto, também os recursos são ponto nevrálgico para o estabelecimento da cultura participativa, pois a construção de políticas demanda tempo, trabalho (recursos humanos), dinheiro e capacidade institucional.
Por outro lado, também o conhecimento para a participação é imprescindível. Nesse campo, as pessoas envolvidas devem conhecer a matéria sobre a qual estão a deliberar, além de terem a compreensão clara do que pode ser conquistado a partir disso (OMS, 2011). Consequentemente, o impacto de experiências anteriores influi decisivamente na percepção e capacidade de participarem ativamente na formulação de políticas.
Todo esse enfeixe de componentes necessita da sensibilidade dos governos locais, que precisam identificar os grupos socialmente vulneráveis e garantir que estes sejam, de facto, representados. A monitorização dos compromissos assumidos e a demonstração de resultados, no contexto da participação social, podem ser realizados pela sociedade civil organizada, que também se mostra como uma dimensão importante da cultura participativa, segundo o modelo da OMS (2011).
Metodologia
Trata-se de estudo de caso, com abordagem qualitativa e transversal, que foi realizado por meio de análise documental (atas do período de 2013 a 2019), observação não participante e de entrevistas semiestruturadas nos anos de 2020 e 2021 com os conselheiros do CMS de uma cidade brasileira do interior do Estado de São Paulo.
Antes disso, foi possível realizar um breve período de observação da dinâmica de funcionamento do CMS por meio da técnica da observação não participante, uma vez que devido à pandemia por SARS-CoV-2 as reuniões ordinárias e extraordinárias do Conselho Municipal sob estudo ocorreram em grupo fechado de WhatsApp criado para esta finalidade. Nesse contexto, além da pandemia, reconhece-se como limitação da investigação a defasamento entre o número de participantes que oficialmente ocupavam o cargo de conselheiros municipais de saúde e a quantidade destes que aceitaram participar.
Inicialmente foi realizado estudo documental por meio de análise sistemática de 90 atas de reuniões ordinárias e extraordinárias do CMS sob estudo. Os principais aspetos estudados nesses documentos foram a dinâmica de participação nas reuniões (quantidade de falas e envolvimento dos membros de cada segmento) e a qualidade das informações dispostas nas atas.
Na sequência, realizaram-se entrevistas semiestruturadas de maneira integralmente online, através das ferramentas Google meet e WhatsApp, devido à necessidade de adoção de medidas de distanciamento social devido à pandemia por SARS-CoV-2 (Schmidt et al., 2020). As entrevistas visaram conhecer e aprofundar os aspectos da representatividade do CMS e de seus membros, o seu nível de participação e a própria opinião dos diferentes conselheiros sobre os limites e potencialidades destes fóruns institucionais.
O contacto com os conselheiros foi realizado em 13/10/2020, por meio do envio de convite individual por e-mail, que foi disponibilizado pela secretaria do CMS, juntamente com o arquivo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Tendo em vista que poucos responderam a este primeiro contato, o segundo contacto deu-se por meio de ligações ou mensagem no Whastapp. A tentativa de contatar os conselheiros foi frutífera, uma vez que 16 dos 36 conselheiros assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e participaram das entrevistas de modo remoto. Para garantir segurança e fidedignidade quanto ao conteúdo das entrevistas, estas foram gravadas e transcritas posteriormente. De modo geral, as entrevistas tiveram duração de 40 minutos. Neste caso, a técnica de amostragem utilizada foi a da saturação teórica, considerando-se saturada a colheita de dados quando não foram mais identificados novos elementos para ampliar a compreensão do fenómeno em estudo.
Os dados das entrevistas foram categorizados por meio de análise de conteúdo (Bardin, 1995), com auxílio da ferramenta computacional Atlas TI. A análise das atas foi realizada a partir da leitura exaustiva destes documentos, com o propósito de obter dados quantitativos quanto à presença de membros por segmento e participação nas reuniões, e qualitativos quanto à qualidade do processo participativo e a dinâmica de funcionamento do referido CMS. Toda a análise foi realizada com embasamento teórico das dimensões da participação social (OMS, 2011).
Por fim, adotou-se a triangulação de dados (Patton, 1999) como forma de análise dos resultados, o que permitiu o aprofundamento dos diferentes aspectos da participação no CMS estudado.
O estudo foi aprovado pelo Comissão de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, sob o n.º 4.307.794/2020.
Resultados
Do total de conselheiros titulares e suplentes no ano de 2020, 16 aceitaram participar do estudo, sendo 8 conselheiros do segmento dos utilizadores, 6 representantes do segmento dos trabalhadores e prestadores, e 2 do segmento dos gestores, distribuídos de maneira equanime quanto ao género.
Para preservar a identidade dos participantes do estudo, estes foram identificados com uma sigla e o respectivo número da entrevista. As siglas utilizadas foram: U para utilizador; T para trabalhadores e prestadores; e G para gestores.
A seguir, apresentam-se as unidades temáticas que emergiram da pesquisa, cujas subcategorias foram organizadas segundo as quatro dimensões do contexto destacadas pela OMS que influenciam a cultura participativa e estão abaixo descritas:
Categorias | Subcategorias |
---|---|
Estruturas e espaços | Burocratização do CMS Dificuldades institucionais na dinâmica de funcionamento Interesses pessoais versus interesse coletivo |
Recursos | |
Conhecimento | Falta de capacitação Aprendizagem Falta de representatividade |
Impacto das políticas e práticas anteriores | Histórico participativo Desafios à influência do segmento dos utilizadores |
Recursos que influenciam a participação social |
Estruturas e espaços
Segundo a OMS, as estruturas físicas, institucionais e políticas, dependendo da sua arquitetura, podem estimular ou inibir a participação social. Para que atinjam a primeira finalidade, são necessários processos transparentes e que sejam operados a partir de mecanismos estáveis, “para que se possa institucionalizar a participação como parte central do processo de formulação de políticas” (OMS, 2011, p. 19).
No CMS estudado, os aspectos formais, em que pese sua relevância, foram descritos como empecilho ao exercício de participação social livre e produtiva, e se pareceram bastante incompreendidos por conselheiros de segmentos diversos, conforme se verifica nas subcategorias seguintes.
Burocratização do CMS
A burocratização foi um tema que emergiu das falas dos participantes do estudo. Para muitos conselheiros, a dinâmica institucional foi resumida como técnico-burocrática, em detrimento de uma mais efetiva produção em matéria de políticas públicas no âmbito do CMS.
Um conselheiro do segmento dos utilizadores (U7) ressentiu-se por haver integrado um espaço que denominou como meramente protocolar e, a partir da sua experiência, admite não acreditar que o CMS sob estudo seja uma instância de efetivação do direito à saúde dos representados, opinião que também foi compartilhada para outros conselheiros, inclusive da gestão.
A relação de forças é desproporcional . . . Isso torna esse espaço meramente protocolar. Vem aqui a gente carimba o “sim” e vai pra onde tem que ir, sendo que a população, tanto nas suas demandas, quanto nos seus próprios direitos não os vejo atendidos . . . desses dois anos que eu passei lá, acabei verificando como é o procedimento do próprio conselho que não passar de protocolar. (U7)
Dificuldades institucionais na dinâmica de funcionamento
Entre as dificuldades institucionais observadas na dinâmica de funcionamento do CMS estão a curta duração das reuniões e o tempo dispensado com formalidades e agradecimentos sem muita importância para as discussões que compõem a pauta do dia. Na observação não participante, a maior parte dos encontros destinou-se à apresentação de dados pela gestão.
Um conselheiro afirmou que não havia abertura para que utilizadores que frequentassem as reuniões opinassem ou participassem de alguma forma do que estava sendo deliberado: “Se você esteve lá, você viu que é uma vez ou outra que aparece usuário e ele não tem a palavra pra opinar sobre aquilo que tá sendo votado. É um negócio complicado” (T8).
Nesta dimensão, destaca-se também a falta de estrutura para a realização das reuniões do CMS no período da pandemia por SARS-CoV-2, que aconteceram por conversas num grupo fechado de WhatsApp, sem que houvesse, segundo descreveram alguns conselheiros, organização quanto à ordem de falas.
Interesses pessoais versus interesse coletivo
Alguns conselheiros representantes dos utilizadores descreveram que as disputas de interesses, embora esperadas nas esferas políticas, ocorrem de modo escancarado em algumas ocasiões na esfera do CMS:
A gente sabe que há uma disputa de interesse, e que isso é previsto dentro do sistema democrático, mas isso não significa que as coisas devam se dar da forma que se deram pelo menos nesses 2 anos que eu estou lá. (U7)
Outro conselheiro do mesmo segmento destacou que a baixa rotatividade dos seus membros contribui para a permanência da defesa de interesses de apenas um grupo representado.
Ainda na temática de sobreposição dos interesses pessoais em relação aos interesses coletivos, o mesmo conselheiro dos utilizadores (U7) menciona que as propostas a serem votadas são, em sua maioria, decididas previamente, sendo a palavra concedida por mera formalidade, sem possibilidade de um debate profícuo que mude o resultado.
Recursos
A leitura das atas possibilitou compreender, nessa dimensão, que a escassez de recursos é uma realidade na saúde mental, área que demanda complementação para a manutenção dos serviços implantandos na área, posto que a manutenção mensal tem custo alto e diversos são os “problemas enfrentados por diversos prefeitos, em virtude de suplementar a saúde, não conseguirem fechar seus caixas” (Atas, 2013)
Nas entrevistas, a dimensão dos recursos também foi compartilhada por alguns conselheiros, que destacaram que o dinheiro público é mal gasto.
Conhecimento
Falta de Capacitação
Por meio da análise das entrevistas, alguns conselheiros descreveram que as capacitações não são uma exigência do CMS, o que pode resultar na falta de interesse em iniciar alguma capacitação.
Para um conselheiro do segmento dos trabalhadores de saúde (T2), existem iniciativas dos próprios conselheiros em buscar informações sobre o seu funcionamento, cuja aprendizagem se constrói pela própria vivência no CMS.
Foi possível identificar pela análise das atas que, entre os anos de 2013 e 2015, os conselheiros solicitaram a realização de curso de capacitação para análise e manuseio de documentos relacionados às contas públicas. Por outro lado, neste mesmo período, os membros da gestão reclamaram ser baixa a participação dos conselheiros em eventos relacionados com essa temática.
A análise deste período permite apreender insegurança por parte dos conselheiros nos assuntos económico-financeiros relacionados com a saúde do município, que em muitas situações aprovaram documentos sem conhecer da assunto.
Aprendizagem
A aprendizagem foi referida por todas as categorias representativas do CMS, que reconhecem no desempenho da função de conselheiro uma oportunidade de aprendizagem constante por meio da própria experiência e da construção coletiva de práticas em saúde.
Você transmite coisas e aprende também coisas. Impacto nas duas direções. Você ensina e aprende muita coisa com eles. Mas eu acho que poderia ser melhor. Mas sim, há uma aprendizagem em torno das leis, em torno das normas de saúde, da própria organização do Sistema Único de Saúde, como são as leis da saúde. Há uma aprendizagem, sim. (T4)
Falta de representatividade
Para muitos conselheiros, exemplificada na fala de um do segmento dos trabalhadores em saúde (T2), não há conhecimento da população a respeito do poder de controle social que possui.
Eu entendo que o conselho é super importante, mas a gente vê que a população não se apropria daquilo que é de direito . . . . As pessoas não entendem o que elas têm na mão, o poder que elas têm na mão, o poder de voz, e talvez por isso que a gente não consiga brigar tanto pela saúde (T2).
Observando o próprio endereço eletrónico do CMS, onde estão disponibilizadas as atas, notou-se que inexistem canais de comunicação ou organização de documentos contendo informações sobre encaminhamento de projetos, aprovação e implementação à sociedade.
Por outro lado, por vezes a representatividade pareceu ser mal compreendida também pelos próprios conselheiros. A observação não participante e a análise das atas permitiram identificar que muitos conselheiros tomam a palavra para fazer elogios ou agradecimentos em demasia durante a reunião, ou mesmo para relatar a frequência a cursos que não contribuem para a discussão de formulação de políticas públicas ou de melhorias para a saúde municipal.
Impacto das políticas e práticas anteriores
Histórico participativo
A experiência com a participação social em saúde anterior ao CMS foi um tema recorrente nas entrevistas. Conselheiros de todos os segmentos relataram um histórico de participação ativa na sociedade e em outras instituições deliberativas, como os conselhos vinculados à profissão e às Conferências Municipais de Saúde.
O Conselho Local de Saúde apresentou-se também como um dos órgãos de participação inicial de alguns conselheiros representantes dos utilizadores no CMS, que tiveram atuação como presidente, membros ou mesmo fundadores daqueles Conselhos.
Nesta subcategoria, também emergiu o sentido da motivação dos conselheiros, o que os levou a iniciar a sua trajetória de participação social no CMS. Na visão de alguns, a participação no CMS serve como ponte para iniciar a carreira política.
Desafios à influência do segmento dos utilizadores
Nessa subcategoria, emergiam os sentidos dos participantes acerca da influência exercida pelos representantes dos utilizadores nos processos de decisão e se este segmento traz demandas para as discussões no Conselho.
Os dados quantitativos obtidos na análise das atas indicaram maior quantidade de falas dos membros do segmento dos utilizadores nas reuniões do Conselho Municipal de Saúde entre os anos de 2013 a 2019 que, entretanto, contabilizaram menor frequência média no referido período (Tabela 2).
Segmento | Quantidade de falas | Frequência média |
Utilizadores | 43,4% | 46,03 |
Trabalhadores | 28,6% | 67,69 |
Gestores | 27,4% | 64,15 |
Quando questionados a respeito do grau de influência do segmento dos utilizadores nos processos de decisão, a maior parte dos conselheiros reconheceu uma participação significativa, seja pelo número de representantes, como pela proximidade com a base de apoio. No entanto, estes não souberam mencionar exemplos de sucesso dessa influência.
Por outro lado, a dependência dos conselheiros do segmento dos utilizadores em relação ao Presidente do Conselho foi um tema que emergiu das entrevistas. Uma conselheira reconheceu uma espécie cooptação de pessoas que, segundo suas impressões, apoiariam algumas decisões devido à indicação de origem. Sentido semelhante foi compartilhado por outra conselheira, que menciona a facilidade com que conselheiros dos utilizadores são manipulados pela gestão.
Recursos que influenciam a participação social
Nesse contexto, os dados produzidos permitiram compreender o impacto que alguns recursos influenciadores da participação social apresentam. Assim, quanto à sensibilidade governamental, a influência do partido que ocupa atualmente o executivo local emergiu da fala de alguns conselheiros do segmento dos utilizadores e dos trabalhadores e prestadores, que também perceberam a politização dos interesses em jogo na última composição do Conselho Municipal.
Além disso, um dos participantes do segmento dos utilizadores (U7) relatou as manobras regimentais que observou de um grupo de conselheiros ligados ao presidente do Conselho, que não aprovaram a nova redação do Regimento Interno, que permitia a reeleição dos membros do Conselho Local de Saúde, para evitar que uma conselheira mais participativa, trabalhadora da saúde, pudesse se reeleger. Nas entrevistas houve destaque, por um conselheiro do segmento dos utilizadores (U7), à maneira como são redigidas determinadas pautas, que acabam por direcionar, subliminarmente, a atuação dos conselheiros, a exemplo do que ocorre com o termo “aprovação de contas” e outros assuntos da gestão, que são escritos de forma tendenciosa:
Para você ter uma ideia, a nossa consternação com esse processo do conselho municipal de saúde é que vinha, depois a gente pode te fornecer, e vc tambem tem acesso a isso, ja vinham escrito “aprovação de tal coisa”. Isso é uma coisa absurda. Ao inves de votação, estava escrito “aprovação”, então ja estava subliminar o que tava para ser aprovado e o que era votado, voce vai ver lá, você ja viu né, tem coisa que está escrito votação. (U7)
No aspeto da organização da sociedade civil, observou-se a divergência nas perspetivas trazidas pelos conselheiros em relação à base de apoio, alguns reconhecendo que existe uma conexão, ao passo que outros a negam. Nessa mesma dimensão também foi observada baixa participação social por parte da população local. Alguns conselheiros atribuem o baixo engajamento a alguns motivos, dentre elesa falta de conhecimento das pessoas sobre o seu papel, falta de interesse ou ausênica de cultura participativa e de luta por direitos.
Discussão
O Brasil apresenta um modelo importante de participação e controle social que, embora específico, pode servir de base para outras realidades, considerando-se a importância do debate da cultura participativa na área da saúde. No entanto, estudos descrevem o enfraquecimento da participação da sociedade civil devido a gestões demasiadamente influenciadoras das atitudes dos representantes ou fragilidade da relação entre estes e as entidades (Bispo & Serapioni, 2021; Rocha et al., 2020).
Nesse contexto, a arquitetura institucional, política e de estrutura física desenhada pela OMS possibilita a ampliação da participação social, aproximando sociedade civil e os governos. Assim, as quatro dimensões que a estruturam, bem como os recursos que a influenciam, foram analisadas no presente estudo. Na dimensão das estruturas e espaços, observou-se que as atividades protocolares e deliberações se mostram profundamente burocráticas, como ocorre com a aprovação de contas públicas, de projetos e planos de saúde, parecendo retirar do centro dos debates assuntos de maior relevância para a saúde local, o que afasta sensivelmente o CMS da função de órgão estruturante de políticas públicas de saúde. Assim, assuntos técnico-burocráticos foram observados em demasia na maioria das reuniões do Conselho Municipal estudado. A maior parte das reuniões reduziu-se à manifestação sobre relatórios de gestão e prestação de contas, o que reforça a ideia de que os Conselhos Municipais ainda trabalham a partir de uma visão fragmentada da saúde, e que os assuntos tratados não são estruturantes do setor (Jorge, 2013; Stralen, 2010).
No âmbito dos recursos financeiros, que são elemento imprescindível à participação social, ficou evidenciado que a desigualdade na distribuição de recursos provoca desvantagens para parcela da população que participa do controle social.
A dimensão do conhecimento mostra-se fulcral na presente discussão. Estudos apontam dificuldades na participação social ligadas ao predomínio do discurso técnico de gestores e à persistência de uma cultura política autoritária nos conselhos municipais, que desprivilegiaria a participação de indivíduos sem formação técnica na área.
Alguns estudos descrevem que o conhecimento especializado de algumas categorias, especialmente a dos trabalhadores e prestadores de serviços e da gestão, na sua maioria compostas por conselheiros com formação superior, pode contribuir para a despolitização da participação desses segmentos, mascarando interesses sociais e burocratizando a atuação dos conselheiros (Kezh et al., 2016).
A capacitação é uma ferramenta importante para suprir carências também quanto à consulta e prestação de contas (Bezerra & Araújo, 2009) e utilização de recursos públicos destinados à saúde municipal, o que se mostra imprescindível no estágio atual de amadurecimento da democracia brasileira.
Embora o CMS se constitua em espaço não tradicional de ensino, muitos conselheiros descreveram a aprendizagem no desempenho desta função, o que é corroborado por outros estudos (Bortoli & Kovaleski, 2019).
Além da dimensão do conhecimento, reconhece-se que a falta de compreensão, por parte de muitos conselheiros, do papel que desempenham também é uma fragilidade que merece atenção, pois impacta decisivamente na postura que adotarão durante a realização dos trabalhos do CMS. Ventura et al. (2018) orientam, nesse debate, que o fortalecimento da cultura participativa não se deve pautar apenas na relação estabelecida com o ente estatal e os governantes/gestores, uma vez que perpassa também pela consideração do contexto atual no qual os cidadãos estão inseridos, o que implica reconhecer as condições deficitárias de acesso à informação, de formação, além da consideração da frustração proveniente de tentativas inócuas de participação, o que prejudica profundamente o interesse e a mobilização da sociedade civil. Salienta-se, nesse aspecto, a relevância da educação em direitos (Ventura et al., 2017). Quanto à sensibilidade governamental sobre a importância da participação, as entrevistas permitiram conhecer também situações de interferência no exercício livre de voto pelos representantes dos utilizadores, o que é amplamente debatido na literatura (Farias Filho et al., 2014).
Por fim, é importante registar que o contexto atual de pandemia por SARS-CoV-2 acarretou inúmeros prejuízos à participação social no âmbito do CMS estudado, uma vez que praticamente todas as reuniões do ano de 2020 foram realizadas por WhatsApp, com perda da qualidade das discussões, dificuldades no repasse de informações e nas deliberações em reuniões.
Regista-se também que o mesmo contexto impôs algumas limitações ao estudo, dentre elas o menos alcance dos participantes para as entrevistas (muitos não retornaram após serem contactados). Para além destas, também houve limitação quanto à revisão de literatura, perante a ausência de referências a outros estudos neste tema.
Conclusão
No presente estudo, foi possível identificar alguns dos elementos que influenciam o grau de participação social em um CMS à luz das dimensões componentes da cultura participativa propostas pela OMS.
Em relação ao sentido de participação social por meio da experiência vivida pelos membros do CMS, o discurso de todos apontou a importância do desempenho da função que realizam, especialmente a de representar cidadãos na luta por melhores condições no Sistema Único de Saúde. No entanto, a consciência da importância foi questionada por outros conselheiros, especialmente do segmento dos trabalhadores, que relatam existir cooptação de alguns conselheiros dos utilizadores por parte da gestão.
A dinâmica institucional foi definida por muitos como técnico-burocrática, com desperdício do tempo de reunião para assuntos voltados a formalidades sem conteúdo de formulação de política pública de saúde. Nesse contexto, a centralização da produção da informação na tecnoburocracia acaba por conferir certo protagonismo a apenas um segmento, o que também ocorre no julgamento de contas públicas, matéria que exige um conhecimento específico. Aqui reside, possivelmente, uma das grandes contribuições da presente investigação, pois se tratam de demandas que exigem um saber técnico que muito provavelmente quase nenhum conselheiro possui e que, diante da ausência de formação oferecida pelo próprio CMS para o desempenho desta função, aprofundará desigualdade pré-existentes entre eles.
Questiona-se, portanto, o papel desenvolvido pelos representantes dos utilizadores e, em particular, a influência exercida por este segmento nos processos decisórios, que foram descritos por muitos conselheiros como ferramentas usadas pela gestão para cumprir as burocracias exigidas na lei.
Contudo, apesar dessa percepção, os participantes reforçaram a proximidade do segmento dos utilizadores com a base de apoio (já que muitos integram Conselhos Locais de Saúde, associações de bairro, entre outras instâncias de participação popular), o que revela o fortalecimento da dimensão impacto das políticas e práticas anteriores, o que também pode ser observado pela quantidade de falas e manifestações durante as reuniões no período estudado.
O CMS constitui espaço propulsor de cultura cívica e de acesso à saúde, com potencial para desempenhar um papel importante de mudança social. Contudo, a medida deste potencial está diretamente relacionada ao comprometimento dos conselheiros com a publicitação das suas ações como forma de se aproximarem da população que representam. Por isso, enfatiza-se a necessidade de fortalecimento da cultura participativa no espaço do CMS investigado, destacando-se a premente necessidade de divulgação das ações desenvolvidas no CMS e de mais pesquisas neste campo, uma vez que este modelo de participação social tem ganhado visibilidade internacional como estratégia democratizante, o que atualmente representa uma urgência no contexto político de muitos países do mundo. Por fim, a situação de desigualdade no acesso e no uso das tecnologias por parte de muitos conselheiros pode ter ocasionado profundas assimetrias nos processos decisórios dos CMS, que merecerão estudos posteriormente.