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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.2 supl.1 Coimbra dez. 2023  Epub 15-Jun-2023

https://doi.org/10.12707/rv21126 

Artigo Teórico/Ensaio

Contribuições da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz para o cuidado em enfermagem na saúde mental

The contributions of Alfred Schutz’s theory of Social Phenomenology to mental health nursing care

Contribuciones de la sociología fenomenológica de Alfred Schutz a los cuidados de enfermería en salud mental

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

2 Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), Coimbra, Portugal


Resumo

Enquadramento:

O cuidado em enfermagem constitui-se como uma importante ferramenta dentro das relações sociais entre profissionais e as pessoas cuidadas no campo da saúde mental.

Objetivos:

Este estudo tem como objetivo refletir sobre as contribuições da fenomenologia social de Alfred Schutz na construção do cuidado em enfermagem na saúde mental.

Principais tópicos em análise:

O cuidado em enfermagem na saúde mental está baseado na compreensão do outro enquanto ser singular no mundo da vida. Além disso, as relações sociais diretas entre o enfermeiro e o utente, vinda da relação compartilhada e imediata, são fundamentais pa ra a construção do cuidado em saúde mental.

Conclusão:

A fenomenologia social de Alfred Schutz promove a reflexão tanto de si, na posição de cuidador, como também na compreensão do outro, inseridos no mundo social mediados pelas relações sociais diretas.

Palavras-chave: cuidado de enfermagem; saúde mental; filosofia; sociologia

Abstract

Background:

Nursing care is essential for the social relationship between mental health professionals and patients.

Objective:

This study aims to reflect on the contributions of Alfred Schutz’s theory of Social Phenomenology to developing mental health nursing care.

Main topics under analysis:

Mental health nursing care is based on understanding the other as a unique being in the “life-world”. The direct social relationship established between nurses and patients, resulting from their shared and immediate connection, is essential to providing mental health care.

Conclusion:

Alfred Schutz’s theory of Social Phenomenology promotes the Ego’s reflection as a caregiver and understanding of the “other self” as beings integrated into the “social world” and mediated by direct social relationships.

Keywords: nursing care; mental health; philosophy; sociology

Resumen

Marco contextual:

El cuidado de enfermería constituye una herramienta importante dentro de las relaciones sociales entre los profesionales y las personas cuidadas en el ámbito de la salud mental.

Objetivos:

Este estudio pretende reflexionar sobre las contribuciones de la fenomenología social de Alfred Schutz a la construcción de los cuidados de enfermería en salud mental.

Principales temas en análisis:

Los cuidados de enfermería en salud mental se basan en la comprensión del otro como un ser único en el mundo de la vida. Además, las relaciones sociales directas entre el enfermero y el usuario, procedentes de la relación compartida e inmediata, son esenciales para la construcción de los cuidados en salud mental.

Conclusión:

La fenomenología social de Alfred Schutz promueve la reflexión tanto sobre uno mismo, en posición de cuidador, como sobre la comprensión del otro, inmerso en el mundo social mediado por las relaciones sociales directas.

Palabras clave: atención de enfermería; salud mental; filosofía; sociologia

Introdução

O núcleo de enfermagem representa um dos maiores grupos de trabalho nos diferentes sistemas de saúde em todo o mundo. Os profissionais de enfermagem, como líderes de equipa, possuem uma importante função ligada a princípios como responsabilidade, respeito e comprometimento, a fim de proporcionar qualidade e proximidade no cuidar de pessoas nos serviços de saúde (Mosier et al., 2019).

O ano de 2020 foi denominado pela Assembleia Mundial da Saúde, o órgão decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS), como o “Ano dos Profissionais de Enfermagem e Obstetrícia”. Esse legado tem como objetivo reconhecer o trabalho desses (as) profissionais em todo o mundo e promover ações de incentivo a melhorias, entre elas a educação e o desenvolvimento profissional (World Health Organization, 2020). O destaque trazido aos profissionais de enfermagem traz visibilidade à profissão e o fortalecimento de um atendimento de qualidade à população, sendo necessário que esse olhar se estenda do Ano Internacional destinado a esses profissionais, ao olhar implicado nos diferentes contextos do cuidar (Reynolds, 2020).

O cuidar em saúde mental traz à equipa multiprofissional uma atenção integral às pessoas em sofrimento mental e/ou abuso de álcool e outras drogas. A enfermagem, como integrante da equipa multiprofissional possui um papel importante no cuidado em saúde mental percebido tanto no olhar da equipa como dos utentes. O profissional de enfermagem é visto como aquele que tem mais vínculo com as pessoas, por articular o cuidado inicial nos serviços de saúde mental, ser dotado de habilidades, ter capacidade de comunicação entre o utente e a equipa e, ainda, por ser facilitador e integrador das ações de cuidado (Almeida et al., 2020).

As ações em saúde da enfermagem, na área da saúde mental, construídas por meio dos pressupostos da sociologia fenomenológica, são focadas nas pessoas através das suas experiências vividas, o que as torna essencial para as ações de cuidado. O referencial fenomenológico de Alfred Schutz propõe, através da compreensão das ações humanas no mundo da vida, por meio das relações sociais, revelar os significados que as pessoas atribuem às suas vivências através do acervo de conhecimento, subjetividade, singularidade, individualidade e motivações. Assim, o referencial Schutziano favorece a implementação de ações de cuidado em saúde mental pautadas nas necessidades sociais (Schneider et al., 2017).

Estas reflexões tornam-se relevantes, pois trará perceções acerca do cuidado em enfermagem às pessoas em sofrimento mental e/ou abuso de álcool e outras drogas, visto que o cuidado em saúde mental exige uma imersão no outro para assim construir formas subjetivas de cuidado.

Este estudo de exposição lógico-reflexiva, tem ênfase na sociologia fenomenológica fundamentada nas contribuições teóricas fenomenológicas de Alfred Schutz. Por meio das obras de Schutz e de pesquisas que utilizaram este referencial na sua análise, procurou-se, na composição deste ensaio, fazer numa relação entre os pressupostos de Alfred Schutz e o cuidado da enfermagem no campo da saúde mental. Desta forma, o estudo tem como objetivo refletir sobre as contribuições da fenomenologia social de Alfred Schutz na construção do cuidado em enfermagem na saúde mental.

Desenvolvimento

A fenomenologia social de Alfred Schutz

O filósofo e sociólogo Alfred Schutz (1899-1959) nasceu em Viena, na Áustria, e faleceu em Nova Iorque. Estudou Direito e Ciências Sociais em Viena e por ter formação em ciências sociais tinha o propósito de estabelecer os fundamentos numa sociologia compreensiva (Schutz, 2012). Alfred Schutz dedicou anos dos seus estudos às obras de Max Weber e Husserl. Frente às obras de Weber, Schutz preocupou-se apenas em desenvolver conceitos sem a necessidade de refutá-los, desse modo procura explorar conceitos da Sociologia como ação, ação social e compreensão para a construção da Sociologia fenomenológica. Toda a conduta que é prevista, ou seja, baseada em um projeto preconcebido, é descrita como uma ação; e essa ação pode ser aberta, aquela que vem ao mundo por meio de movimentos corporais ou encoberta, que é um desempenho mediante um processo de pensamento. Toda a ação pode ter uma intenção de existir e de se tornar real ou não. As ações que possuem um significado contemplado por definições pessoais são definidas como um comportamento motivado (Schutz, 2012).

Schutz explora o caráter da motivação por meio da teoria da motivação. Deste modo, o autor defende que os homens agem segundo motivos para o alcance de metas que apontam para o futuro, aos quais chama de “motivos com a finalidade de” ou “motivos para” (Schutz, 2012). Ainda que os homens possuam “razões” para as suas ações, as quais são ligadas a experiências passadas e na personalidade que o homem desenvolveu no decorrer da sua vida, Schütz os denomina como “motivos porque”. Quando o indivíduo age, ele não está consciente de seus “motivos porque”, no entanto, pode apreendê-los de forma retrospetiva, após a ação ter sido concluída (Schutz, 2012, 2018).

A compreensão do outro está dirigida a algo significativo e somente algo compreendido é investido de significado. O ser humano, na atitude natural, compreende o mundo ao interpretar suas experiências sobre ele, sejam coisas inanimadas, animais ou seu semelhante. Ou seja, a compreensão do outro consiste em atos de autointerpretação das próprias vivências do observador (Schutz, 2018).

Em relação aos estudos de Husserl, Schutz utiliza conceitos como mundo vivido, intencionalidade e intersubjetividade. O mundo vivido ou o mundo da vida ou o mundo da vida quotidiana é considerado como o mundo intersubjetivo, o qual é constituído quando um sujeito se torna intencionalmente consciente do semelhante, onde partilham do mesmo tempo e espaço, por meio da experiência comum do mundo do ‘nós’. O mundo da vida é experienciado pelo homem como em uma estreita rede de relações sociais, de sistemas de signos e símbolos. O significado de todos esses elementos, na sua diversidade, é assumido como algo natural, caracterizados como costumes internos de um grupo através da herança social. A experiência da vida quotidiana do mundo social do indivíduo está em consonância relação com os semelhantes, por meio do mundo dos antecessores, sucessores e o mundo dos contemporâneos (Schutz, 1993). Contudo, um indivíduo pode fazer parte simultaneamente de numerosos grupos sociais, apesar de muitas vezes o grupo interno e externo não compartilharem das mesmas ideias eles podem tentar mudar suas atitudes, mediante um processo educacional (Schutz, 2018).

A intencionalidade é sempre a consciência de algo, a qual é determinada pelo objeto intencional em relação ao qual existe uma consciência. O objeto intencional é tudo aquilo que aparece na reflexão como num fenómeno. O ato intencionado é qualquer ato no qual e pelo qual um indivíduo experiencia um objeto, seja físico ou ideal. A intersubjetividade é trazida como algo comum a vários indivíduos na vida cotidiana; o problema da intersubjetividade traz algumas questões referente a interação bem- sucedida e a compreensão do outro, trazido como o “outro eu”, a compreensão de ambos entre si (Schutz, 2012, p. 347).

O ser humano, na atitude natural, compreende o mundo ao interpretar suas experiências sobre ele, sejam coisas inanimadas, animais ou seu semelhante. Ou seja, a compreensão do outro consiste em atos de autointerpretação das próprias vivências do observador (Schutz, 2018).

A compreensão fenomenológica como uma ferramenta para o cuidado na saúde mental

O cuidado em enfermagem na saúde mental baseia-se em um fazer subjetivo, em que, por meio da escuta sensível, da observação e estabelecimento de vínculo, o enfermeiro busca compreender os significados que as pessoas atribuem às suas experiências no mundo da vida, para que assim possam pensar, em conjunto com o utente, novas possibilidades de vida. A fenomenologia está presente no ato de cuidar na saúde mental quando o profissional enfermeiro se preocupa com a construção de uma rede de cuidados a partir do que realmente faz sentido para as pessoas, e não na imposição nas formas de cuidar. Considerar a subjetividade do outro, na relação de cuidado em saúde mental, permite que o enfermeiro transforme o cuidado bio logicista, focado na patologia e no diagnóstico psiquiátrico, num cuidado que considere as pessoas enquanto ser existente no mundo social.

Para isso é fundamental que o enfermeiro compreenda o outro, a fim de interpretar as suas experiências e ações subjetivas. A sociologia fenomenológica permite a compreensão do significado das ações, das interações e das experiências que o ser humano experimenta no mundo da vida, como sendo intersubjetivo, bem como a perceção sobre as suas vivências (Schutz, 2012). Para compreender o outro, na sua subjetividade, como um ser ontológico, é necessário que o enfermeiro se aproxime das pessoas que estão na sofrimento mental nas quais tem a intenção de promover o cuidado. A relação de anonimato tende a prejudicar no alcance para os atos de compreensão. Logo, a compreensão do outro, enquanto ser, está relacionada às relações interativas entre o profissional enfermeiro e o utente de saúde mental.

Quanto mais se distancia do contemporâneo, cada vez mais a experiência em relação ao outro torna-se remota e anónima. A relação anónima entre as pessoas impossibilita a compreensão do outro na sua subjetividade. Na relação de anonimato o outro não é percebido na sua singularidade, ele é apenas “um alguém” que se apresenta destituído de significado e, por vezes, é despersonalizado enquanto ser (Schutz, 2003).

O mundo da vida não é privado de um indivíduo, mas comum a todos, experienciado e interpretado por antecessores, toda a interpretação desse mundo é baseada sobre um conhecimento, que é transmitido sob a forma de “conhecimento à mão” (Schutz, 2012, p. 84). O acervo de conhecimento a mão refere-se à biografia do indivíduo, ou seja, ao acervo de conhecimento adquirido ao longo de sua vida, por meio das suas vivências e experiências no mundo social que é manifestado como um esquema de referência para interpretação do mundo (Schutz, 2018). O cuidado de enfermagem às pessoas, tanto num contexto individual quanto num coletivo, está inserido num contexto sócio histórico e cultural, sendo fundamental que esses fatores sejam valorizados no ato de cuidar. Assim, a situação biográfica das pessoas é importante para a organização e execução das ações do cuidado em enfermagem (Jesus et al., 2013). O contexto social emerge num espectro determinante no ato de cuidar, tanto para as pessoas que são cuidadas como para o profissional. E ainda permite que os profissionais de saúde proporcionem a atenção a saúde de modo acolhedor e resolutivo (Silva, 2019).

Para compreender o outro em essência, a fenomenologia propõe, ao ser humano, superar a atitude natural para alcançar a atitude fenomenológica, ou seja, colocar toda a sua existência do mundo entre parênteses, em epoché. Através da atitude fenomenológica é possível interpretar o mundo exatamente como ele é apresentado, por meio da suspensão de qualquer crença e valores a priore (Schutz, 2012).

Shutz (2018) menciona que a compreensão do outro está dirigido a algo significativo e somente algo compreendido é investido de significado. O enfermeiro enquanto cuidador na saúde mental possui acervo de conhecimento à mão e, através dele, interpreta e experiencia o mundo da vida. Para alcançar os atos de compreensão é necessário que o profissional de enfermagem alcance a atitude fenomenológica, coloque sua epoché particular em suspensão, a fim de interpretar o “outro eu” e assim compreendê-lo na sua totalidade integrada no mundo social.

Superar a atitude natural, construída por meio do acervo de conhecimento à mão e alcançar a atitude fenomenológica, ou a redução fenomenológica, impõe ao profissional enfermeiro da saúde mental, enquanto ser social, um grande desafio, pois é necessário estar disponível ao outro e despir-se dos seus pressupostos até então construídos como algo dado. A atitude fenomenológica torna-se extremamente essencial, a fim de contribuir para a construção do cuidado em saúde mental, no desvelar dos significados subjetivos das pessoas que serão cuidadas.

Na compreensão da ação subjetiva do outro, Schutz explora o caráter da motivação, onde afirma que as pessoas agem para o alcance de metas que apontam para o futuro, o qual chama de “motivos com a finalidade de” ou “motivos para”. E que possuem “razões” para suas ações, ligadas a experiências passadas que denomina de “motivos porque”. Schutz traz que é impossível compreender o outro sem conhecer os motivos de seus atos, ou seja, as atividades humanas só são compreensíveis quando revelam seus motivos. Compreender os atos de outras pessoas também implica na capacidade de imaginar-se, realizando tais atos estando na mesma situação, orientado pelos mesmos motivos (Schutz, 2018).

Para compreender o outro é importante que o enfermeiro conheça as motivações que levam as ações das pessoas relacionadas aos motivos que as influenciam agir da forma que agem no mundo social. Alguns motivos podem estar atrelados ao passado dos utentes, a fatos que já aconteceram, que hoje, são motivos para suas ações, atos ou comportamentos. Contudo, o agir dos utentes também pode estar relacionado com expectativas futuras que impulsionam a maneira de agir. Todo agir intencional possui um motivo e é importante conhecê-lo para a construção e reflexões acerca do cuidado em saúde mental.

Pesquisa realizada num Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) mostra que o “motivo para” procurar tratamento tem em vista a reconstrução de suas relações familiares e a expectativa de reinserção social. Ao direcionarem o seu olhar para o passado, atrelados no “motivo porque” os utentes mencionaram como perdas a desestrutura familiar e o abandono de pais e filhos, de companheiros de confiança, da moral e do respeito, sendo estes motivos para a procura de tratamento (Siqueira et al., 2018).

O enfermeiro, na posição de observador, ao interpretar as motivações das ações dos utentes da saúde mental, compreende o significado subjetivo do agir do outro. É a partir da compreensão dos motivos “para” e “porque” das ações das pessoas em sofrimento mental e/ou abuso de álcool e outras drogas, que o enfermeiro, dentro da perspetiva Schutziana, conhece o mundo social vivenciado pelas pessoas de forma singular, desperta para um agir sem julgamento e também organiza as suas ações de cuidado. Ainda no olhar de Schutz, o profissional precisa imaginar-se vivenciando as mesmas situações guiados pelos mesmos motivos para conseguir compreender.

Por vezes, os “motivos para” e “motivos porque” de uma pessoa podem ser, também, os motivos do agir de outras pessoas no mundo social. A tipificação corresponde às motivações de um grupo social e é construído pelo conhecimento que o grupo tem sobre o mundo, oriundos da herança social. É um processo que permite a construção dos tipos ideais, ou seja, a identificação comum dos significados atribuídos a certa ação. Assim, pode-se chegar ao típico vivido ou ao típico da ação. O típico da ação define que um indivíduo é conhecido como pertencente a um grupo que tem caraterísticas comuns (Schutz, 2012).

O típico de uma ação, ou seja, o que aparece em comum nas motivações de um grupo social na forma de agir, por vezes, pode ajudar o profissional enfermeiro na construção do cuidado em saúde mental. Desse modo, a compreensão dos motivos da ação subjetiva pode ser também uma característica interna de um grupo social, o qual age com motivações semelhantes, no entanto, inseridos na sua situação biográfica. Neste contexto, Schutz reforça que a situação biográfica é singular, ou seja, subjetiva de cada pessoa, assim jamais duas pessoas poderão vivenciar a mesma situação da mesma forma, as quais envolvem o ambiente físico e sociocultural definido por ele mesmo, no qual ocupa uma posição social, moral e ideológica (Schutz, 2012).

O profissional enfermeiro, enquanto cuidador na saúde mental ao compreender o típico da ação de diferentes grupos sociais como: pessoas que abusam de substâncias psicoativas, pessoas em situação de rua, pessoas que ouvem vozes ou com ideação suicidas entre outros grupos, pode desenvolver atividades coletivas dentro dos serviços de saúde mental que sejam benéficas para esses grupos sociais frente as suas experiências e padrões de comportamento comuns no mundo social, no entanto dentro da singularidade advinda da situação biográfica de cada pessoa.

As relações sociais e o cuidar em enfermagem na saúde mental

Estar no mundo social implica que terá uma relação social sempre que tiver um ato de orientação consciente e intencional que podem ser referidos a outra pessoa e também dirigidos a si. A interação social ou a relação de orientação tem como pressuposto não uma ação recíproca, mas de ser fundamentado num operar social (Schutz, 2018).

O enfermeiro, enquanto agente social, ao operar sobre as pessoas, através do cuidado, constrói uma interação social, independente se o utente sentir o efeito desse operar social. Quando o enfermeiro cria expectativas, ou seja, quando tem em vista o efeito do cuidado realizado, ele promove uma interação social com os utentes. Ao interagir com os utentes no mundo social, o enfermeiro compartilha com ele tempo e espaço em comum, logo, tem consciência do outro, de outra pessoa, como ser humano, presente, diante de si. Desse modo, o enfermeiro passa a estar orientado-pelo-tu unilateral pelo fato de perceber a presença do outro, reconhecê-lo e experienciá-lo, atribuindo-lhe vida e consciência numa relação social compartilhada, numa relação face a face ou relacionamento social diretamente vivenciado. Essa relação social direta entre o profissional e o utente da saúde mental permite maior envolvimento de ambos nas ações de cuidado, ainda quando essa relação é recíproca, caso estejam mutuamente conscientes um do outro, potencializa ainda mais o cuidado.

As relações sociais diretas acontecem quando há orientação unilateral, ou seja, quando apenas um dos sujeitos percebe a presença do outro, nesse caso do sujeito (Eu) para o semelhante (Tu), surgindo assim a “orientação para o Tu”. A “orientação- pelo-tu” é quando eu tenho consciência da existência de outra pessoa, porém deixando de lado as caraterísticas dessa pessoa (Schutz, 2012). As relações sociais diretas ocorrem também quando há orientação mútua e recíproca entre sujeito e semelhante, concretizando o “relacionamento do nós”, caraterizadas pelo caráter intersubjetivo e social, da possibilidade de apreender o semelhante de maneira mais direta, vivenciando-o de forma imediata (Schutz, 1979). Na relação social indireta a pessoa está voltada para o seu semelhante na “orientação para o Eles”, onde não está consciente do fluxo em curso da consciência do outro, mas sim de suas próprias experiências e interpretações. Assim, é estabelecida uma relação de anonimato onde o contemporâneo é vivenciado de forma mediata, indireta e impessoal (Schutz, 2012).

A fenomenologia social de Alfred Schutz desperta-nos para a importância das relações interativas entre o enfermeiro e o utente no cuidado em saúde mental, bem como a relevância da relação social direta, vinda da relação compartilhada e imediata, entre ambos. Ao possuir uma relação de anonimato com o utente, a situação face a face fica em retrospetiva apenas presente na memória e na própria interpretação do enfermeiro sobre o utente, fato que dificulta o cuidar em saúde mental, na forma de experienciá-lo e de compartilhar tempo e espaço em presença corpórea.

Ao compartilhar tempo e espaço, pessoas em sofrimento mental e o profissional enfermeiro interagem e comunicam-se entre si. A comunicação entre as pessoas, segundo Schutz (1979), é manifestada no relacionamento face a face, através do corpo do outro, em decorrência dos eventos que nele ocorrem, os movimentos e atividades por ele desempenhadas, assim são apreendidas pelo intérprete através de signos. No entanto, quando não há uma relação face a face, essa apreensão também pode ser trazida por meio de lembranças (Schutz, 2012).

A comunicação entre semelhantes está ligada principalmente pelos signos propositais, os quais são constituídos por gestos e também por conversas. As expressões gesticuladas são expressas por movimentos corporais que acompanham numa conversa, ambos interpretados como signos no pensamento do outro. O gesto proposital está direcionado ao que a pessoa que desempenha deseja transmitir, assim, quem comunica tem a intenção de fazer entender pela pessoa a quem se dirige. Os signos utilizados na comunicação é sempre um signo dirigido a uma pessoa ou a um intérprete anónimo (Schutz, 2012).

Um estudo realizado com Redutores de Danos, a exercer funções numa equipa de Consultório na Rua no Brasil, mostra que o redutor de danos percebe a afetividade dos utentes através da comunicação expressa por signos, em gestos corporais. Essa interpretação desperta no redutor de danos uma relação recíproca de afeto e satisfação em suas ações (Tisott et al., 2019). Através desse meio compartilhado, emerge um meio comunicativo comum, experienciado pela subjetividade de cada um e preenchido por objetos e eventos percebidos por ambos, assim as relações interativas e comunicativas são experienciadas simultaneamente (Schutz, 2012).

Em saúde mental a comunicação interpessoal por signos torna-se essencial para o cuidado, no sentido de ir além da comunicação por movimentos intencionais por meio da fala, mas de observar e interpretar propósitos comunicativos, expressos pela pessoa em sofrimento mental, por outras manifestações corpóreas. É fundamental que a comunicação por signos numa relação face a face, na relação social direta com os utentes, seja apreendida pelo enfermeiro através de gestos, escritas, atividades realizadas, fatos ou evento ocorridos no mundo social.

Conclusão

A fenomenologia social de Alfred Schutz contribui para a construção do cuidado em enfermagem na área da saúde mental, pois promove a reflexão de si, enquanto cuidador, o qual percebe-se inserido no mundo social, constituído por um acervo de conhecimento adquirido ao logo da vida, envolto por grupos e de relações sociais, sendo que todos esses fatores influenciam as ações de cuidado junto as pessoas. A fenomenologia social traz ainda a reflexão do outro, no sentido de que esse outro também está inserido no mundo social de relações e experiências subjetivas de vida.

A fenomenologia social como potencializadora no cuidado em saúde mental, através dos pressupostos Schutzianos, fundamenta para construção de um cuidado baseado na compreensão do outro em subjetividade e enquanto grupo social, na perspetiva do típico da ação. O cuidado de enfermagem, realizado através dos atos de compreensão do outro, exige do profissional a superação da atitude natural para o alcance da atitude fenomenológica e o conhecimento das motivações do agir das pessoas de quem cuida atrelado ao passado e ao futuro. Schutz mostra a relevância da relação social direta e da comunicação social entre o profissional enfermeiro e as pessoas em sofrimento mental e/ou abuso de álcool e outras drogas, no ato de cuidar em saúde mental. Este estudo permite a reflexão, logo, a implementação de ações de cuidado nos serviços de saúde mental diante da compreensão mediada pelas relações sociais diretas. Espera-se que este ensaio reflexivo desperte para um cuidado em saúde mental implicado no outro enquanto contemporâneo inserido no mundo social comum a todos. Também, que inspire novas pesquisas e experiências que reflitam as contribuições da fenomenologia social de Alfred Schutz na enfermagem e na saúde mental.

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Como citar este artigo: Tisott, Z. L., Nasi, C., & Barroso, T. (2023). Contribuições da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz para o cuidado em enfermagem na saúde mental. Revista de Enfermagem Referência, 6(2, Supl. 1), e21126. https://doi.org/10.12707/RV21126

Recebido: 06 de Outubro de 2021; Aceito: 21 de Julho de 2022

Autor de correspondência Zaira Letícia Tisott E-mail: zairatisott10@gmail.com

Conceptualização: Tisott, Z. L.

Tratamento de dados: Tisott, Z. L.

Análise formal: Tisott, Z. L.

Investigação: Tisott, Z. L.

Metodologia: Tisott, Z. L.

Visualização: Tisott, Z. L.

Apresentação de dados: Tisott, Z. L.

Redação - rascunho original: Tisott, Z. L., Nasi, C., & Barroso, T.

Redação - revisão e edição: Tisott, Z. L., Nasi, C., & Barroso, T.

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