SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.serVI número3A saúde mental dos pós-graduandos: Um assunto relevante na formação académica índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

Compartilhar


Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.3 Coimbra dez. 2024  Epub 04-Dez-2024

https://doi.org/10.12707/rvi24ed1 

EDITORIAL

As tecnologias para o cuidado e a formação em enfermagem: Desafios e oportunidades para o futuro

Technologies for nursing care and education: Challenges and opportunities for the Future

Luciana Mara Monti Fonseca1 
http://orcid.org/0000-0002-5831-8789

1 Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, Ribeirão Preto, Brasil


Enquanto formadores de recursos humanos em enfermagem, ainda antes do período pandémico da COVID-19, sentia-se a distância quase intransponível entre como se ensina o cuidado - e muito vem de como se foi ensinado - e como os estudantes, na atualidade, aprendem.

Na pandemia, com o distanciamento social, a tecnologia ganhou centralidade, o que levou a uma rápida alfabetização dos professores e dos cuidadores em enfermagem, quase que descolada de uma reflexão mais aprofundada sobre o uso das tecnologias (Sordi; Fonseca, 2023).

As tecnologias são ferramentas que podem ou não ser poderosos auxiliares no processo ensino-aprendizagem do cuidado e no próprio cuidado. Neste processo, é necessário considerar a intencionalidade do ato de formar e de cuidar em enfermagem e como atingir o que se pretende. Neste sentido, as tecnologias devem ser integradas estra- tegicamente nos processos de aprendizagem e alinhadas com referenciais teóricos da educação e do cuidado, evitando que operem de forma desconectada desses contextos. Neste editorial, destaca-se a tríade Educação-Tecnologia-Cuidado, que tem passado por grandes transformações ao longo dos tempos, ora de forma harmónica, ora desalinhada. Mas, é inegável o papel transformador que cada um destes elementos exerce no outro, nos mais diferentes períodos históricos. O cuidado de enfermagem é permeado de história e afetado por diferentes fatores, desde a globalização, valores, crises, transições e ruturas, programas e políticas em saúde, direitos, até a complexidade dos sistemas de saúde da atualidade.

As crises impactam o cuidado e abrangem as mais diversas dimensões: a crise sanitária reduz o índice de desenvolvimento humano; a crise económica aumenta o nível de desemprego; a crise social intensifica a desigualdade; a crise política exacerba a po- larização e dissemina desinformação; a crise ambiental amplifica eventos extremos; e a crise geopolítica aumenta a imprevisibilidade. Portanto, este panorama de crises resulta em transições e ruturas demográficas, socioeconómicas, geopolíticas, ecológicas e digitais. As crises impactam o cuidado e abrangem as mais diversas dimensões: a crise sanitária reduz o índice de desenvolvimento humano; a crise económica aumenta o nível de desemprego; a crise social intensifica a desigualdade; a crise política exacerba a polarização e dissemina desinformação; a crise ambiental amplifica eventos extremos; e a crise geopolítica aumenta a imprevisibilidade. Portanto, este panorama de crises resulta em transições e ruturas demográficas, socioeconómicas, geopolíticas, ecológicas e digitais (Marcovitch, 2010).

Neste cenário, é imprescindível contar com profissionais proativos, críticos e reflexivos, capazes de enfrentar os desafios desta nova era, que incluem a promoção da sustentabi- lidade ambiental, a consecução dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), a adaptação à globalização, a transição tecnológica e digital, e a promoção da cooperação. Dada a complexidade da educação, da tecnologia e da atenção à saúde, são muitos os desafios dos profissionais de enfermagem para a formação e cuidado com uma visão mais ampla, competente e de alta qualidade. Neste contexto desafiador da formação para o cuidado, ainda marcado por uma abordagem predominantemente conteudista e verticalizada, é fundamental direcionar esforços vigorosos para promover a aprendizagem ativa, que tem o potencial de promover transformações significativas.

Um guia publicado para profissionais da educação, visando alcançar as metas da Agenda 2030 para o desenvolvi- mento sustentável, reflete nitidamente essa visão de formação, enfatizando uma abordagem centrada no estudante, aprendizagem orientada para a ação e a transformação (UNESCO, 2017).

Há mais de duas décadas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) destaca a importância da melhoria das competências em saúde e enfermagem, enfatizando a necessidade de aumentar o conhecimento sobre os aspectos sociais e emocionais dos pacientes e suas famílias (WHO, 2000).

O enfermeiro tem sido reconhecido como elemento-chave para o alcance dos ODS, conforme apontado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2023). No entanto, paradoxalmente, enfrentamos uma escassez deste profissional em todo o mundo, além da falta de valorização e da necessidade premente de desenvolver formação em liderança na área (World Health Organization [WHO], 2020; ICN, 2022). Na educação atual, o mundo conectado e digital expressa-se por meio de modelos de ensino híbrido, com muitas possíveis combinações e junção de estratégias ativas que partem da reflexão crítica e transformadora da realidade num contínuo processo de aprender e transformar(-se), com modelos flexíveis e híbridos que podem trazer contribuições importantes para a formação de profissionais capazes para soluções atuais dos problemas do sistema de saúde (Moran, 2018). A tecnologia tem se estabelecido como uma ferramenta indispensável para enfrentar os desafios na área da saúde e oferecer soluções inovadoras. A sua importância é reconhecida na melhoria da eficácia, eficiência e qualidade dos serviços de saúde (WHO, 2021a).

A OMS expande o conceito de tecnologias em saúde e e-Saúde para Saúde Digital, incluindo consumidores digitais, tratando, ainda, de tecnologias digitais inteligentes e conectadas, como a internet das coisas, a inteligência artificial, os grandes volumes de dados e a robótica, dentre outros (WHO, 2021b).

Dois componentes não podem, na atualidade, ser deixados à margem das discussões e preocupações sobre a Saúde Digital, a segurança do paciente e a inteligência artificial (IA).

Sobre a segurança do paciente, com a produção em larga escala, em especial, de aplicações tecnológicos em saúde, é fundamental implementar medidas de proteção de dados para evitar o acesso não autorizado e a violação da privacidade dos pacientes, e, ainda, melhorar a segurança dos cuidados em vastas aplicações digitais para a educação em saúde, dado que existem inúmeros dispositivos que orientam as ações do paciente sem a devida prática baseada em evidências (WHO, 2021c).

A OMS tem acompanhado com preocupação o desenvolvimento e os usos da inteligência artificial (IA) na área da saúde. Esta preocupação culminou no lançamento de um guia sobre ética e governação da IA para a saúde, que aborda questões fundamentais como autonomia, bem-estar, segurança, interesse público, inclusão, equidade, transparência e a necessidade de uma IA responsiva e sustentável (WHO 2021d). Contudo, face aos rápidos avanços e tendências no desenvolvimento de software assistido por IA neste campo, a OMS não só expressou cautela em relação ao uso da IA em 2023, mas também reeditou o guia revisto para abordar questões chave, como a IA generativa e o deep learning, um tipo de aprendizagem automática que imita o funcionamento do cérebro humano no processamento de dados e geração de padrões para a tomada de decisões. Os modelos de aprendizagem profunda utilizam arquiteturas complexas conhecidas como redes neurais artificiais. Tais redes incluem diversas camadas interconectadas que pro- cessam e transferem informações, imitando o comportamento dos neurónios do cérebro humano, com os chamados Grandes Modelos Multimodais (LMMS). As LMMS possuem a capacidade para realizar tarefas não explicitamente programadas, o que levou a OMS a publicar 40 novas recomendações. O objetivo é garantir que o uso desses modelos esteja alinhado com benefícios éticos e eficazes para a saúde global. Para isso, a OMS estabeleceu cinco campos de aplicação na área da saúde: (i) diagnóstico e atendimento clínico; (ii) uso orientado pelo paciente, investigação de sintomas e tratamentos; (iii) execução de tarefas administrativas e resumo de visitas em registos eletrónicos de saúde; (iv) educação médica e de enfermagem; (v) pesquisa científica e desenvolvimento de medicamentos (WHO, 2024). Na enfermagem, a OMS e o ICN consideram as tecnologias em duas vertentes: para a formação e para a prática do cuidado. Essas tecnologias potencializam os espaços de atuação dos profissionais, corroboradas por outras, como a telessaúde, tecnologias para simulação, internet das coisas, robótica, alfabetização digital, realidade virtual, apren- dizagem ao longo da vida, tecnologia móvel de apoio ao cuidado e IA, entre outras (WHO, 2020; ICN, 2023).

No entanto, para uma interação efetiva da tríade educação-tecnologia-cuidado, capaz de alcançar os resultados esperados, a enfermagem tem vindo a ser instigada a refletir e agir para superar desafios e promover melhorias futuras. Estas reflexões e ações são direcionadas para a evolução da profissão, abordando questões como a falta de profissionais qualificados, liderança e protagonismo na enfermagem, atratividade da carreira e a necessidade de formação adequada em temas contemporâneos. Existem diversos desafios a serem enfrentados no desenvolvimento e implementação de tecnologias na área da saúde. Isso inclui a necessidade de formar equipas multidisciplinares, o tempo prolongado necessário para desenvolver produtos tecnológicos, os altos custos financeiros envolvidos na construção dessas tecnologias e a importância de criar e aprimorar políticas de fomento. Além disso, é crucial acompanhar as últimas novidades em inovação, lidar com o pouco conhecimento sobre a construção de algoritmos de IA, mitigar a desinformação em saúde, especialmente através de meios digitais, e buscar experts qualificados para validar as tecnologias. Outros desafios incluem os processos demorados para registos e patentes, a escassez de bases de dados para o armazenamento das tecnologias, a questão do acesso e acessibilidade das tecnologias, a falta de auditoria das produções e as preocupações com a segurança dos dados. Além disso, é importante considerar a escolha das temáticas das tecnologias com base na intencionalidade do processo formativo e de cuidado, tendo em conta a complexidade dos sistemas de saúde e a necessidade de expandir as pesquisas em saúde pública para abordar questões culturais, disparidades em saúde e populações vulneráveis.

Ademais, são apontados outros desafios a serem superados para oportunidades futuras na enfermagem, como a criação de redes visando o desenvolvimento de sociedades do conhecimento, a construção de centros de excelência e o estímulo à internacionalização. Além disso, é importante estabelecer parcerias e intercâmbios em diversas realidades, alinhar as diretrizes curriculares para a formação e os projetos pedagógicos dos cursos, capacitar docentes e profissionais de enfermagem para o uso das tecnologias, valorizar ensaios randomizados e estudos multicêntricos, promover pesquisas colaborativas para fortalecer os resultados do uso de tecnologias e melhorar a disseminação dos produtos e processos. A translação do conhecimento e uma maior visibilidade do impacto social no uso das tecnologias também são importantes.

Cabe ressaltar que as tecnologias devem ser utilizadas como ferramentas complementares e não substitutas do cuidado humano. A empatia e a escuta atenta são elementos essenciais na prática da enfermagem, e as tecnologias devem ser utilizadas para potencializar essas habilidades, e não para as substituir.

Além disso, existe o risco excludente da tecnologia e, assim, atenuar a exclusão digital e melhorar a qualidade do cuidado e do ensino em enfermagem são essenciais na contemporaneidade.

Para concluir este Editorial, reforça-se que a tecnologia desempenha um papel fundamental no ensino-aprendizagem e na prática do cuidado em enfermagem. É essencial enfrentar desafios para atender aos desafios atuais da saúde mundial e dos ODS, que orientam ações globais em direção a um futuro mais sustentável, inclusivo e equitativo. Mesmo que as metas específicas dos ODS não sejam integralmente alcançadas, a estrutura e os princípios subjacentes a esses objetivos continuam a ser fundamentais para as futuras gerações, que podem aproveitar o potencial das tecnologias para melhorar a eficácia e eficiência dos serviços de saúde. As tecnologias têm possibilitado o acesso a recursos educacionais de qualidade, aprimorando a formação dos estudantes e preparando-os para a prática profissional. No entanto, é crucial considerar os desafios e garantir que as tecnologias sejam utilizadas de forma equilibrada, ética, segura e complementar ao cuidado humano. Em suma, o futuro da enfermagem está intimamente ligado ao avanço tecnológico, e cabe aos profissionais e educadores explorar todo o potencial das tecnologias para promover um cuidado de enfermagem cada vez mais seguro, eficiente e humanizado.

Referências bibliográficas

International Council of Nurses. (2022). The greatest threat to global health is the workforce shortage: International Council of Nurses Interna- tional Nurses Day demands action on investment in nursing, protection and safety of nurses. https://www.icn.ch/news/greatest-threat-glob- al-health-workforce-shortage-international-council-nurses-internationalLinks ]

International Council of Nurses. (2023). Position Statement: Digital health transformation and nursing practice. https://www.icn.ch/sites/default/ files/2023-08/ICN%20Position%20Statement%20Digital%20Health%20FINAL%2030.06_EN.pdfLinks ]

Marcovitch, J. (2010). A crise mundial e a construção do futuro. Revista da USP, 85, 6-15. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i85p6-15 [ Links ]

Moran, J. M. (2018). Metodologias ativas para uma aprendizagem mais profunda. In L. Bacich & J. M. Moran (Orgs.), Metodologias ativas para uma educação inovadora: Uma abordagem teórico-prática (pp. 238). Penso. [ Links ]

Organização Pan-Americana da Saúde. (2023). Enfermagem na região das Américas. https://www.paho.org/pt/topicos/enfermagem/enferma- gem-na-regiao-das-americas-2023Links ]

Sordi, M. R., & Fonseca, L. M. (2023). Aprendizagem mediada por tecnologias: Reflexões (im)pertinentes? In E. K. Adamy & M. R. Cubas (Orgs.), Os sentidos da inovação tecnológica no ensino e na prática do cuidado em enfermagem: Reflexões do 18 SENADEN e 15 SINADEN (pp. 21-29). ABen. [ Links ]

United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2017). Education for sustainable development goals: Learning objectives. https://www.unesco.org/en/articles/education-sustainable-development-goals-learning-objectivesLinks ]

World Health Organization. (2021a). Who compendium of innovative health technologies for low-resource settings 2021: COVID-19 and other health priorities. https://www.who.int/publications/i/item/9789240032507Links ]

World Health Organization. (2021b). Ethics and governance of artificial intelligence for health: Who guidance. https://hash.theacademy.co.ug/ wp-content/uploads/2022/05/WHO-guidance-Ethics-and-Governance-of-AI-for-Health.pdfLinks ]

World Health Organization. (2024). Ethics and governance of artificial intelligence for health: Guidance on large multi-modal models. https:// www.who.int/publications/i/item/9789240084759Links ]

World Health Organization. (2021c). Global patient safety action plan 2021-2030: Towards eliminating avoidable harm in health care. https:// www.who.int/publications/i/item/9789240032705Links ]

World Health Organization. (2021d). Global strategy on digital health 2020-2025. https://www.who.int/docs/default-source/documents/ gs4dhdaa2a9f352b0445bafbc79ca799dce4d.pdfLinks ]

World Health Organization. (2020). State of the world’s nursing 2020: Investing in education, jobs and leadership. https://www.who.int/pub- lications/i/item/9789240003279Links ]

World Health Organization. (2000). The Ottawa charter for health promotion. https://www.who.int/teams/health-promotion/enhanced-well- being/first-global-conferenceLinks ]

1Como citar: Fonseca, L. M. M. (2024). As tecnologias para o cuidado e a formação em enfermagem: Desafios e oportunidades para o futuro. Revista de Enfermagem Referência, 6(4), e24ED1. https://doi.org/10.12707/RVI24ED1

Autor de correspondência Luciana Mara Monti Fonseca E-mail: lumonti@eerp.usp.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons