Enquanto formadores de recursos humanos em enfermagem, ainda antes do período pandémico da COVID-19, sentia-se a distância quase intransponível entre como se ensina o cuidado - e muito vem de como se foi ensinado - e como os estudantes, na atualidade, aprendem.
Na pandemia, com o distanciamento social, a tecnologia ganhou centralidade, o que levou a uma rápida alfabetização dos professores e dos cuidadores em enfermagem, quase que descolada de uma reflexão mais aprofundada sobre o uso das tecnologias (Sordi; Fonseca, 2023).
As tecnologias são ferramentas que podem ou não ser poderosos auxiliares no processo ensino-aprendizagem do cuidado e no próprio cuidado. Neste processo, é necessário considerar a intencionalidade do ato de formar e de cuidar em enfermagem e como atingir o que se pretende. Neste sentido, as tecnologias devem ser integradas estra- tegicamente nos processos de aprendizagem e alinhadas com referenciais teóricos da educação e do cuidado, evitando que operem de forma desconectada desses contextos. Neste editorial, destaca-se a tríade Educação-Tecnologia-Cuidado, que tem passado por grandes transformações ao longo dos tempos, ora de forma harmónica, ora desalinhada. Mas, é inegável o papel transformador que cada um destes elementos exerce no outro, nos mais diferentes períodos históricos. O cuidado de enfermagem é permeado de história e afetado por diferentes fatores, desde a globalização, valores, crises, transições e ruturas, programas e políticas em saúde, direitos, até a complexidade dos sistemas de saúde da atualidade.
As crises impactam o cuidado e abrangem as mais diversas dimensões: a crise sanitária reduz o índice de desenvolvimento humano; a crise económica aumenta o nível de desemprego; a crise social intensifica a desigualdade; a crise política exacerba a po- larização e dissemina desinformação; a crise ambiental amplifica eventos extremos; e a crise geopolítica aumenta a imprevisibilidade. Portanto, este panorama de crises resulta em transições e ruturas demográficas, socioeconómicas, geopolíticas, ecológicas e digitais. As crises impactam o cuidado e abrangem as mais diversas dimensões: a crise sanitária reduz o índice de desenvolvimento humano; a crise económica aumenta o nível de desemprego; a crise social intensifica a desigualdade; a crise política exacerba a polarização e dissemina desinformação; a crise ambiental amplifica eventos extremos; e a crise geopolítica aumenta a imprevisibilidade. Portanto, este panorama de crises resulta em transições e ruturas demográficas, socioeconómicas, geopolíticas, ecológicas e digitais (Marcovitch, 2010).
Neste cenário, é imprescindível contar com profissionais proativos, críticos e reflexivos, capazes de enfrentar os desafios desta nova era, que incluem a promoção da sustentabi- lidade ambiental, a consecução dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), a adaptação à globalização, a transição tecnológica e digital, e a promoção da cooperação. Dada a complexidade da educação, da tecnologia e da atenção à saúde, são muitos os desafios dos profissionais de enfermagem para a formação e cuidado com uma visão mais ampla, competente e de alta qualidade. Neste contexto desafiador da formação para o cuidado, ainda marcado por uma abordagem predominantemente conteudista e verticalizada, é fundamental direcionar esforços vigorosos para promover a aprendizagem ativa, que tem o potencial de promover transformações significativas.
Um guia publicado para profissionais da educação, visando alcançar as metas da Agenda 2030 para o desenvolvi- mento sustentável, reflete nitidamente essa visão de formação, enfatizando uma abordagem centrada no estudante, aprendizagem orientada para a ação e a transformação (UNESCO, 2017).
Há mais de duas décadas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) destaca a importância da melhoria das competências em saúde e enfermagem, enfatizando a necessidade de aumentar o conhecimento sobre os aspectos sociais e emocionais dos pacientes e suas famílias (WHO, 2000).
O enfermeiro tem sido reconhecido como elemento-chave para o alcance dos ODS, conforme apontado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2023). No entanto, paradoxalmente, enfrentamos uma escassez deste profissional em todo o mundo, além da falta de valorização e da necessidade premente de desenvolver formação em liderança na área (World Health Organization [WHO], 2020; ICN, 2022). Na educação atual, o mundo conectado e digital expressa-se por meio de modelos de ensino híbrido, com muitas possíveis combinações e junção de estratégias ativas que partem da reflexão crítica e transformadora da realidade num contínuo processo de aprender e transformar(-se), com modelos flexíveis e híbridos que podem trazer contribuições importantes para a formação de profissionais capazes para soluções atuais dos problemas do sistema de saúde (Moran, 2018). A tecnologia tem se estabelecido como uma ferramenta indispensável para enfrentar os desafios na área da saúde e oferecer soluções inovadoras. A sua importância é reconhecida na melhoria da eficácia, eficiência e qualidade dos serviços de saúde (WHO, 2021a).
A OMS expande o conceito de tecnologias em saúde e e-Saúde para Saúde Digital, incluindo consumidores digitais, tratando, ainda, de tecnologias digitais inteligentes e conectadas, como a internet das coisas, a inteligência artificial, os grandes volumes de dados e a robótica, dentre outros (WHO, 2021b).
Dois componentes não podem, na atualidade, ser deixados à margem das discussões e preocupações sobre a Saúde Digital, a segurança do paciente e a inteligência artificial (IA).
Sobre a segurança do paciente, com a produção em larga escala, em especial, de aplicações tecnológicos em saúde, é fundamental implementar medidas de proteção de dados para evitar o acesso não autorizado e a violação da privacidade dos pacientes, e, ainda, melhorar a segurança dos cuidados em vastas aplicações digitais para a educação em saúde, dado que existem inúmeros dispositivos que orientam as ações do paciente sem a devida prática baseada em evidências (WHO, 2021c).
A OMS tem acompanhado com preocupação o desenvolvimento e os usos da inteligência artificial (IA) na área da saúde. Esta preocupação culminou no lançamento de um guia sobre ética e governação da IA para a saúde, que aborda questões fundamentais como autonomia, bem-estar, segurança, interesse público, inclusão, equidade, transparência e a necessidade de uma IA responsiva e sustentável (WHO 2021d). Contudo, face aos rápidos avanços e tendências no desenvolvimento de software assistido por IA neste campo, a OMS não só expressou cautela em relação ao uso da IA em 2023, mas também reeditou o guia revisto para abordar questões chave, como a IA generativa e o deep learning, um tipo de aprendizagem automática que imita o funcionamento do cérebro humano no processamento de dados e geração de padrões para a tomada de decisões. Os modelos de aprendizagem profunda utilizam arquiteturas complexas conhecidas como redes neurais artificiais. Tais redes incluem diversas camadas interconectadas que pro- cessam e transferem informações, imitando o comportamento dos neurónios do cérebro humano, com os chamados Grandes Modelos Multimodais (LMMS). As LMMS possuem a capacidade para realizar tarefas não explicitamente programadas, o que levou a OMS a publicar 40 novas recomendações. O objetivo é garantir que o uso desses modelos esteja alinhado com benefícios éticos e eficazes para a saúde global. Para isso, a OMS estabeleceu cinco campos de aplicação na área da saúde: (i) diagnóstico e atendimento clínico; (ii) uso orientado pelo paciente, investigação de sintomas e tratamentos; (iii) execução de tarefas administrativas e resumo de visitas em registos eletrónicos de saúde; (iv) educação médica e de enfermagem; (v) pesquisa científica e desenvolvimento de medicamentos (WHO, 2024). Na enfermagem, a OMS e o ICN consideram as tecnologias em duas vertentes: para a formação e para a prática do cuidado. Essas tecnologias potencializam os espaços de atuação dos profissionais, corroboradas por outras, como a telessaúde, tecnologias para simulação, internet das coisas, robótica, alfabetização digital, realidade virtual, apren- dizagem ao longo da vida, tecnologia móvel de apoio ao cuidado e IA, entre outras (WHO, 2020; ICN, 2023).
No entanto, para uma interação efetiva da tríade educação-tecnologia-cuidado, capaz de alcançar os resultados esperados, a enfermagem tem vindo a ser instigada a refletir e agir para superar desafios e promover melhorias futuras. Estas reflexões e ações são direcionadas para a evolução da profissão, abordando questões como a falta de profissionais qualificados, liderança e protagonismo na enfermagem, atratividade da carreira e a necessidade de formação adequada em temas contemporâneos. Existem diversos desafios a serem enfrentados no desenvolvimento e implementação de tecnologias na área da saúde. Isso inclui a necessidade de formar equipas multidisciplinares, o tempo prolongado necessário para desenvolver produtos tecnológicos, os altos custos financeiros envolvidos na construção dessas tecnologias e a importância de criar e aprimorar políticas de fomento. Além disso, é crucial acompanhar as últimas novidades em inovação, lidar com o pouco conhecimento sobre a construção de algoritmos de IA, mitigar a desinformação em saúde, especialmente através de meios digitais, e buscar experts qualificados para validar as tecnologias. Outros desafios incluem os processos demorados para registos e patentes, a escassez de bases de dados para o armazenamento das tecnologias, a questão do acesso e acessibilidade das tecnologias, a falta de auditoria das produções e as preocupações com a segurança dos dados. Além disso, é importante considerar a escolha das temáticas das tecnologias com base na intencionalidade do processo formativo e de cuidado, tendo em conta a complexidade dos sistemas de saúde e a necessidade de expandir as pesquisas em saúde pública para abordar questões culturais, disparidades em saúde e populações vulneráveis.
Ademais, são apontados outros desafios a serem superados para oportunidades futuras na enfermagem, como a criação de redes visando o desenvolvimento de sociedades do conhecimento, a construção de centros de excelência e o estímulo à internacionalização. Além disso, é importante estabelecer parcerias e intercâmbios em diversas realidades, alinhar as diretrizes curriculares para a formação e os projetos pedagógicos dos cursos, capacitar docentes e profissionais de enfermagem para o uso das tecnologias, valorizar ensaios randomizados e estudos multicêntricos, promover pesquisas colaborativas para fortalecer os resultados do uso de tecnologias e melhorar a disseminação dos produtos e processos. A translação do conhecimento e uma maior visibilidade do impacto social no uso das tecnologias também são importantes.
Cabe ressaltar que as tecnologias devem ser utilizadas como ferramentas complementares e não substitutas do cuidado humano. A empatia e a escuta atenta são elementos essenciais na prática da enfermagem, e as tecnologias devem ser utilizadas para potencializar essas habilidades, e não para as substituir.
Além disso, existe o risco excludente da tecnologia e, assim, atenuar a exclusão digital e melhorar a qualidade do cuidado e do ensino em enfermagem são essenciais na contemporaneidade.
Para concluir este Editorial, reforça-se que a tecnologia desempenha um papel fundamental no ensino-aprendizagem e na prática do cuidado em enfermagem. É essencial enfrentar desafios para atender aos desafios atuais da saúde mundial e dos ODS, que orientam ações globais em direção a um futuro mais sustentável, inclusivo e equitativo. Mesmo que as metas específicas dos ODS não sejam integralmente alcançadas, a estrutura e os princípios subjacentes a esses objetivos continuam a ser fundamentais para as futuras gerações, que podem aproveitar o potencial das tecnologias para melhorar a eficácia e eficiência dos serviços de saúde. As tecnologias têm possibilitado o acesso a recursos educacionais de qualidade, aprimorando a formação dos estudantes e preparando-os para a prática profissional. No entanto, é crucial considerar os desafios e garantir que as tecnologias sejam utilizadas de forma equilibrada, ética, segura e complementar ao cuidado humano. Em suma, o futuro da enfermagem está intimamente ligado ao avanço tecnológico, e cabe aos profissionais e educadores explorar todo o potencial das tecnologias para promover um cuidado de enfermagem cada vez mais seguro, eficiente e humanizado.