Introdução
A doença súbita surge na vida das pessoas de forma inesperada, sem preparação e onde a necessidade de hospitalização se impõe sem aviso prévio. Quando esta hospitalização ocorre numa unidade de cuidados intensivos pediátricos (UCIP), devido à necessidade de uma assistência intensiva para manter a vida, envolvendo ações complexas e a uma tecnicidade intensa e altamente sofisticada, a mesma representa uma experiência stressante, de ansiedade e angustiante, que é compartilhada pelos profissionais, pelo doente e pela sua família (Melo, 2020; Mirlashari et al., 2019; Sá, 2023; Walter et al., 2019). Nesse contexto, a presença e participação ativa da família durante a hospitalização desempenham um papel fundamental, podendo ter um efeito apaziguador, constituindo um auxílio e suporte inestimável (Melo, 2020; Waddington et al., 2021; Weber et al., 2021).
A participação da família durante a hospitalização da pessoa tem evoluído significativamente, sendo que, quando as condições o permitirem, a família deve participar nos cuidados, fornecendo informação sobre os hábitos e as necessidades da criança doente. Este envolvimento pode ajudar a a mitigar a desestruturação e a disrupção que a hospitalização pode causar na unidade familiar (Waddington et al., 2021; Weber et al., 2021). Apesar do reconhecimento da importância da participação da família, os estudos indicam que existe uma lacuna entre a teoria e a prática (Melo, 2020; Walter et al., 2019; Waddington et al., 2021).
Assim, importa explorar a importância que a hospitalização e o próprio envolvimento da família do doente numa unidade com estas especificidades podem implicar, bem como analisar a perceção dos enfermeiros relativamente ao envolvimento da família nos cuidados à criança em situação crítica.
Enquadramento
O envolvimento da família em cuidados intensivos pediátricos, no ambiente hostil, desconhecido e complexo de uma unidade de cuidados intensivos, permite que as famílias se sintam úteis e junto do seu familiar, mantendo o vínculo afetivo e o papel parental. No entanto, esta participação efetiva, que envolve todos os intervenientes (família, enfermeiros e criança doente), nem sempre é relatada como eficaz e de fácil aplicabilidade, decorrente de múltiplos constrangimentos relacionados com o ambiente, com as pessoas e a própria cultura institucional (Melo, 2020). Embora os enfermeiros expressem preocupação em proporcionar conforto, informação e proximidade às famílias, poucos realmente convidam ativamente os familiares a participar dos cuidados ao doente (Melo, 2020; Walter et al., 2019). A família deve ser preparada precocemente para estar envolvida na tomada de decisão e nos cuidados, de acordo com sua perceção de conforto, sempre que for clinicamente seguro e razoável (Jaffa & Hwang, 2021). A falta de envolvimento adequado dos familiares, pode levar a sentimentos de ansiedade, depressão e culpa (Bennett & LeBaron, 2019; Jaffa & Hwang, 2021; Wool et al., 2020; Wubben et al., 2021). A parceria entre equipa e família é essencial em unidades de cuidados intensivos pediátricos (Sánchez-Rubio et al., 2021; Rennick et al., 2019). No entanto, para que essa parceria seja eficaz, as equipas devem desenvolver práticas e ações profissionais baseadas na colaboração e na partilha, reconhecendo a importância efetiva da família (Rennick et al., 2019; Walter et al., 2019).
O envolvimento da família nos cuidados é um tema pertinente e premente de ser abordado e investigado, sendo uma necessidade frequentemente reportada, a qual ao ser aplicada, proporcionará ganhos em saúde, com promoção de uma prática de cuidados qualitativamente diferenciada.
Questão de investigação
Que práticas são utilizadas pelos enfermeiros para promover o envolvimento da família no cuidado à criança em situação crítica, em cuidados intensivos pediátricos?
Metodologia
Na sequência da questão de investigação definida, optou-se pela realização de um estudo exploratório descritivo, de natureza qualitativa, recorrendo à realização de focus group para colheita de dados. Os investigadores, ao adotarem uma abordagem qualitativa, tendem a recolher a informação em ambientes naturais, onde os participantes incluídos na investigação vivenciam o problema que está a ser estudado, o que implica um trabalho de proximidade (Polit & Beck, 2019). Este contexto de estudo, em que os indivíduos experienciam o fenómeno in loco, possibilita a obtenção de dados espelhados na realidade e na prática.
Assim, o contexto de estudo é uma UCIP, nível III, polivalente, indicada para internamento de doentes com idade inferior a 18 anos, que apresentam doenças graves e potencialmente reversíveis.
Neste estudo, a população-alvo foi constituída pelos enfermeiros a exercer funções numa UCIP, integrada num centro hospitalar.
Para a seleção dos participantes, optou-se por integrar toda a equipa de enfermagem. Contudo, considerando o fenómeno em estudo, estabeleceu-se como critério de inclusão trabalhar na unidade há pelo menos 6 meses, prestar cuidados quotidianamente à criança em situação crítica, acolher os familiares na unidade e aceitar participar no estudo voluntariamente (Melo, 2020). Assim, foram excluídos todos os enfermeiros que estavam em processo de integração no serviço, aqueles que estavam a realizar estágio ou que ocupavam funções de gestão e chefia, e que, na sua prática diária, não acolhiam familiares na unidade. A equipa era constituída por 32 enfermeiros, contudo, apenas 26 enfermeiros participaram na investigação atendendo aos critérios de exclusão definidos.
Assim, realizaram-se quatro focus group, codificados com A, B, C e D. Os participantes tinham idade compreendida entre os 31 e 63 anos e a maioria era do sexo feminino. Os participantes do sexo masculino foram divididos em dois grupos diferentes. Relativamente à formação académica e profissional, em cada grupo participaram enfermeiros licenciados e enfermeiros especialistas, isto é, a equipa em estudo é uma equipa com experiência profissional que varia entre os 8 e os 38 anos e com tempo de serviço em cuidados intensivos superior a 3 anos, sendo que existem profissionais em que este é de 28 anos. A organização dos grupos também foi heterogénea embora no grupo focal A o tempo médio de serviço na profissão e na unidade seja mais elevado que nos restantes. Como instrumento de colheita de dados foi utilizada a entrevista em grupos focais, tendo sido constituídos quatro grupos de enfermeiros: dois compostos por seis enfermeiros e os outros dois por sete enfermeiros. A duração média de cada focus group foi entre 40 a 50 minutos. Assim, a constituição dos grupos atendeu a critérios de heterogeneidade, considerando a experiência profissional, a características comunicacionais, a características demográficas, de formação e de tempo de serviço, o que favoreceu uma discussão enriquecedora baseada em opiniões e perspetivas diferentes. As sessões decorreram entre 9 de maio e 8 de junho de 2019. Os dados recolhidos foram registados em áudio para minimizar as perdas de informação, orientados por um entrevistador (a investigadora) e um observador, permitindo, deste modo, a aquisição pormenorizada da informação, no que diz respeito à linguagem não-verbal. De seguida, efetuou-se a transcrição das entrevistas e posterior análise do conteúdo das mesmas, tendo por base Flick (2013). Por último, no que diz respeito à metodologia e tendo em conta questões ético-legais, foi solicitado parecer favorável ao conselho de administração e comissão de ética, do centro hospitalar onde se realizou o estudo, tendo sido obtido em abril de 2019, com o código 135-18. Os participantes foram informados sobre as fases da investigação e o objetivo do estudo, sendo-lhes fornecido o consentimento informado para preencherem e assinarem, onde estava expresso o anonimato, confidencialidade, respeito pela intimidade e dignidade humana e que o participante poderia desistir em qualquer momento do estudo, sem que isso implicasse qualquer prejuízo.
Resultados
Os resultados obtidos, após análise detalhada das entrevistas aos grupos focais, permitiram estabelecer um tema principal do estudo Envolver a família no cuidado. Este tema agrupou várias categorias: Práticas utilizadas; Estratégias de envolvimento; Tipologia de cuidados.
Além disso, os resultados permitiram uma compreensão mais aprofundada das perceções dos enfermeiros relativamente ao envolvimento da família no cuidado à pessoa em situação crítica, especialmente num contexto adverso, que apresenta múltiplos desafios e constrangimentos. Esse entendimento é crucial para melhorar as práticas de cuidados e fortalecer a colaboração entre a equipe de enfermagem e as famílias dos pacientes.
A avaliação das competências dos familiares é uma prática relevante e que tem de estar subjacente ao envolvimento da família no cuidado. Essa avaliação permite compreender as capacidades que o familiar detém, se estão aptos e se já tiveram experiências prévias, isto é, qual o seu nível de capacitação e a sua disponibilidade e/ou vontade para ter um papel colaborativo. As expressões seguintes evidenciam esta prática.
“Avaliar as capacidades deles. Depois . . . tentar, independente das capacidades, se eles estão aptos ou não. Alguns não querem muito, porque eles estão todos cheios de fios e é muito difícil “(A2).
“Acho que uma das coisas que nós fazemos, com esse intuito, é questionar um pouco como é que é . . . quais são os gostos, os hábitos . . . de forma a envolve-los um pouco nesse processo” (A3).
A capacitação dos familiares é uma prática frequentemente mencionada pelos entrevistados em todos os grupos focais. Os enfermeiros destacam a importância de informar, educar e ensinar os familiares para que possam participar ativamente nos cuidados, considerando sempre o ambiente em que se encontram. Esse processo de capacitação envolve não apenas a transmissão de informações, mas também o ensino prático e o treino para a execução de cuidados específicos, tendo em mente as dependências e necessidades futuras que possam ser afetadas.
A capacitação tem em vista o envolvimento gradual do familiar, como referido “depois de avaliar as capacidades, tentar ensinar algumas coisas eventualmente, ou instruí-los ou ensiná-los, ou . . . e tentar que eles sejam autónomos nalgumas coisas, nalguns cuidados, nalguns cuidados de parceria” (A2); “Vamos capacitá-los para a nova realidade . . . treiná-los e adaptá-los. É o nosso papel, capacitá-los para isso” (B2).
As práticas utilizadas para o envolvimento da família podem estar condicionadas e variar em função do estado de saúde do doente, pois, de acordo com a perceção dos participantes, elas devem atender à situação clínica. No caso de um doente que apresenta uma dependência transitória, o envolvimento familiar não é considerado primordial. Contudo, quando se trata de um doente com uma condição clínica crónica que continuará a necessitar de cuidados posteriormente, ou se os familiares já desempenham o papel de cuidadores, as práticas de envolvimento a utilizar serão diferentes.
“E temos situações más, graves, em situações crónicas onde já há uma formação de base por trás . . . aí o envolvimento tem que ser diferente” (B١).
“Se é uma situação que é hospitalar e que se resolva no hospital já não. E depois há outras situações que não se resolvem e vão para a enfermaria, politraumatizados e assim . . ., mas também não vou neste momento, eu, ensinar alimentação” (B2).
É transversal aos quatro grupos focais que, no processo de envolvimento da família, devem ser considerados determinados requisitos. Na perceção dos participantes, o envolvimento é um processo gradual que exige disponibilidade por parte do enfermeiro, além de envolver a transmissão de confiança e respeito pela vontade da pessoa. Importa ainda que haja coerência na prática diária e no desempenho dos profissionais, atendendo às preferências do doente e ao seu consentimento perante a possibilidade de envolver um familiar nos cuidados. As frases seguintes são exemplificativas desses requisitos. “Porque depois eles sentem que vão ganhando confiança . . . dia-a-dia, vão conseguindo participar em mais cuidados” (C1).
A parceria tem que ser voluntária, não pode ser o enfermeiro a impor a negociação . . . têm que ser os pais a demonstrar iniciativa, vontade e disponibilidade. Apesar de estarem aqui vários dias, se eles nunca mostrarem disponibilidade e vontade, isso tem que ser respeitado. (C5)
De acordo com a perceção dos enfermeiros participantes, a supervisão das atividades dos familiares, a necessidade de informar para a tomada de decisão, a negociação com os familiares e a personalização da unidade são estratégias de envolvimento utilizadas e mencionadas nos grupos focais. Estas estratégias visam proporcionar um maior envolvimento da família nos cuidados. Recorrendo ao que foi discutido num dos grupos focais, os participantes perceberam que uma das estratégias de envolvimento se relaciona com a supervisão das atividades dos familiares. Após avaliar as capacidades dos familiares, os enfermeiros orientam e supervisionam suas ações, promovendo assim sentimentos de confiança nos familiares, como referido, “Mas há coisas que eles podem fazer o que faziam em casa. Nós supervisionamos, orientamos” (A5).
Outro ponto abordado pelos participantes como uma estratégia utilizada para envolver a família, passa por informar para a tomada de decisão. Os enfermeiros explicam aos familiares quais atividades podem ou não ser realizadas, fornecendo informações de forma oportuna. Isso permite que os familiares, posteriormente, ajam e tomem decisões informadas, conscientes e ajustadas às necessidades do seu familiar.
“Mantendo as regras de quem decide somos nós, mas dar-lhe um espaço nas situações crónicas . . . às vezes é preciso dar-lhe um espaço diferente” (B1).
“Se é um momento inicial, em que tudo assusta, eles até têm medo de lhe tocar e também temos que ser nós a ir dizer o que é que podem fazer ou que não podem... ou se é oportuno, . . . se é o momento em que ele pode mesmo estimular ou não” (C3). “Envolve-se, mas temos que lhe dar algumas regras que têm que cumprir” (B2).
É ainda estratégia referenciada pelos participantes, para o envolvimento do familiar no cuidado, o reforço positivo, ferramenta fundamental para o incentivo e motivação dos familiares, funcionando este como um recurso para posteriores intervenções daquele familiar, evidenciado na unidade de significado “E outra coisa muito importante é, no final, elogiar sempre. Dar sempre um reforço positivo, acho que isso é fundamental” (C3).
A negociação com os familiares, mencionada frequentemente nos grupos focais, é essencial para promover o seu envolvimento no ambiente de cuidados intensivos. Esta estratégia promove confiança, respeito mútuo e e estabelece uma colaboração eficaz entre o enfermeiro e os familiares. A negociação permite definir quais os cuidados a prestar e quando os prestar, permitindo a execução cronológica dos mesmos de acordo com a capacidade e disponibilidade dos familiares e da rotina diária num serviço de UCIP. O diálogo está subjacente e presente em todo este processo.
“numa maneira geral, nós conseguimos arranjar forma de, com o diálogo, conversando com eles, chegar a um acordo, de os envolver nos cuidados” (A1).
A personalização da unidade, tornando mais familiar e aconchegante o ambiente da unidade, pela introdução de um ou outro objeto pessoal que seja significativo para o doente ou satisfazendo um gosto que lhe conhecemos, é referido pelos participantes e percecionada como sendo uma estratégia empregada.
Que seja mais dele, que tenha o bonequinho dele, que tenha a mantinha dele, que tenha a roupa dele. Coisinhas assim pequenas e que os pais possam realmente ter alguma forma de . . . pronto . . . participar e tentar fazer com que aquele espaço seja o espaço do filho deles e que não seja o espaço do hospital. (C1)
Relativamente à tipologia de cuidados, os vários grupos focais explicitaram que os familiares são envolvidos, ou há tentativas de envolvimento, em determinados cuidados, considerando as necessidades e dependências do doente, bem como as capacidades do familiar. A análise desta informação permitiu identificar que esse envolvimento se concentra em cuidados de ordem fisiológica ou de resposta às necessidades básicas (cuidados fisiológicos), cuidados de ordem emocional e afetiva, e também cuidados especializados com algum grau de diferenciação (cuidados diferenciados).
De acordo com o relatado pelos participantes, há uma tentativa de envolver os familiares nos cuidados fisiológicos ou básicos, como a higiene, a alimentação e a colaboração no posicionamento do doente. O envolvimento nestes cuidados parece justificar-se, por um lado, pelo facto de serem cuidados que poderiam já ser realizados em casa e, por outro, pelas exigências de aprendizagem que se antecipam para os familiares, considerando a continuidade dos cuidados após a alta hospitalar. “Cuidados de higiene. Às vezes, numa avaliação de temperatura . . . na alimentação, quando podem ser eles a dar a alimentação” (A1).
“Ajudar a posicionar ou a tapar ou a pôr creme no fim do banho, quando está tudo estabilizado. . .” (C7).
Os participantes referiram igualmente que envolviam os familiares em cuidados de ordem emocional e/ou afetiva. Dessa forma, é criada a oportunidade para que os familiares possam tocar o doente, realizar gestos de carinho e, sempre que possível, proporcionar conforto.
“A primeira coisa que eu lhes proponho é tocarem no filho. Caso seja possível, é tocar no filho, o toque acho que é o mínimo que eles poderão fazer . . . também são o conforto, os mimos, o carinho . . .” (D2).
Para além dos cuidados básicos e emocionais, todos os grupos focais mencionaram o envolvimento dos familiares em cuidados especializados e/ou diferenciados. Esta situação é mais frequente quando já existe uma aprendizagem anterior ao internamento na UCI ou em situações particulares em que se prevê que o doente terá uma dependência permanente ou a necessitará de cuidados diferenciados no domicílio.
“É uma situação muito particular, as ostomias, seja ela traqueostomia ou outras, se é um miúdo que vai para casa com isso tem que se envolver os pais e fazer ensinos adequados depois à prestação de cuidados em casa” (B7).
Nos doentes crónicos, já estão habituados . . . já vêm com essa prática também de administrar alimentação por gastrostomias, por sonda nasogástrica, até a aspirar secreções nos meninos traqueostomizados que estão em casa. A fazer os pensos, as colostomias, então envolvemos nesses cuidados. (D2)
Discussão
Para envolver a família no cuidado, os enfermeiros avaliam as competências dos familiares, verificando os conhecimentos e capacidades que detêm, bem como se estão preparados e integrados para se envolver e estar presente junto do familiar naquele ambiente. Nesta avaliação importa entender se os familiares estão disponíveis para colaborar ativamente nos cuidados, pois independentemente da integração e apelo ao envolvimento, pode não haver disponibilidade para tal. Esta situação está diretamente relacionada com o contexto, que é dificultador da intervenção dos familiares pela insegurança em causar dano ao doente ou ao equipamento. Além disso, a não-aceitação da gravidade da situação clínica do seu familiar poderá tornar mais difícil o envolvimento ativo nos cuidados. Assim, a avaliação das competências dos familiares é fundamental e realizada em contexto de UCIP, o que permite aos enfermeiros definirem a sua atuação atendendo à realidade e individualidade da família. Hetland et al. (2018), concluíram, num estudo com enfermeiros, que estes avaliam as capacidades dos familiares, considerando aspetos como força física, a vontade de se envolver, a estabilidade emocional, o conhecimento sobre o processo de doença, os conhecimentos preexistentes, e a capacidades de relacionamento entre o familiar e o doente, para determinar se estão aptos ou se têm competências para prestar cuidados. Waddington et al. (2021) e Boyamian et al. (2021) também destacam a importância de avaliar as necessidades e potencialidades da família antes de incluí-la no processo de cuidados, evidenciando os efeitos benéficos da inclusão. A capacitação do familiar é fundamental, pois é essencial ensinar e educar os familiares sobre os cuidados que podem prestar, assim como alertá-los para situações excecionais. Essa capacitação depende da situação clínica do doente; em casos de dependência transitória ou quando se prevê que o internamento será breve, o processo educativo pode não ser implementado. Esse processo educativo é relevante apenas para familiares de doentes que, previsivelmente, apresentarão alterações que exigirão cuidados de apoio ou substituição por um familiar. Na literatura consultada, não foram encontrados dados que contraponham ou esclareçam os resultados deste estudo em relação à envolvência da família, considerando a situação clínica como transitória ou não. Assim, esse representa um achado significativo na investigação.
A revisão de Burns et al. (2018) destaca que os enfermeiros tendem a envolver os familiares quanto maior é o tempo de permanência em cuidados intensivos, mas não menciona especificamente que não há envolvimento quando a dependência é transitória. No entanto, quando os familiares são incluídos no cuidado, isso ocorre principalmente em cuidados fisiológicos/básicos e emocionais/afetivos, uma vez que esses cuidados são percebidos como os que trazem mais benefícios tanto para o doente quanto para a família, incluindo segurança, conforto, tranquilidade e a manutenção do vínculo afetivo. Os cuidados de higiene, a avaliação da temperatura corporal, a alimentação, a massagem com creme corporal e o posicionamento são exemplos de cuidados básicos em que os enfermeiros envolvem os familiares. A possibilidade de tocar no doente, oferecer carinho e atenção, e, quando possível, pegá-lo ao colo são também cuidados de ordem emocional e/ou afetiva em que os familiares são envolvidos. Contudo, nos cuidados especializados, como os relacionados com ostomias, a execução de tratamentos, a aspiração de secreções e administração de alimentação por sonda nasogástrica ou gastrostomia, os familiares são envolvidos comente quando já detêm conhecimentos prévios ou quando é necessário que sejam ativos nesses cuidados, exigindo, assim, um ensino focalizado nas necessidades específicas do problema. De forma semelhante, no estudo de Hetland el al. (2018), os enfermeiros relataram que consideravam difícil o envolvimento dos familiares em cuidados complexos e especializados, nomeadamente na aspiração de secreções através da traqueostomia ou na cinesiterapia respiratória, devido a preocupações com a segurança do doente e do próprio familiar, além das possíveis repercussões legais que daí poderiam advir. A presente investigação também vai ao encontro das conclusões destes autores, ao demonstrar que os enfermeiros tendem a envolver, principalmente em cuidados básicos, como a higiene corporal e oral, bem como na massagem corporal (Hetland et al., 2018; Waddington et al., 2021).
Os enfermeiros, ao avaliarem as competências e capacitação dos familiares, atendem a um conjunto de requisitos. Assim, o envolvimento dos familiares no cuidado ao doente crítico é um processo gradual, sustentado numa relação de confiança entre enfermeiro e familiar, que se desenvolve com base na avaliação das competências dos familiares e no estado clínico do doente.
São ainda requisitos à implementação e concretização do envolvimento, o respeito pelas decisões dos familiares e pela coerência das informações transmitidas em todo este processo. O enfermeiro deve manter uma conduta congruente nas suas ações, para não comprometer a confiança estabelecida, o que poderia dificultar o envolvimento futuro dos familiares.
No que respeita à análise das estratégias para envolver a família no cuidado à pessoa em situação crítica, constatou-se que incentivar a presença e participação da família nos cuidados, com a devida orientação para a supervisão transmite confiança e segurança para ambas as partes. Durante o processo de supervisão e orientação no/para os cuidados, o elogio da forma participativa, proporciona um reforço positivo para aquele familiar.
Informar a família para a tomada de decisão é considerado fundamental, pois ao fornecer informações claras sobre as atividades que podem realizar e os limites que devem ser respeitados, tendo em conta a situação clínica do doente, o contexto ou o constrangimento que este envolvimento pode provocar, permite que a família seja capaz de tomar decisões informadas, contextualizadas e conscientes. Aspeto corroborado pelo estudo de Mirlashari et al. (2019), Waddington et al. (2021), e Weber et al. (2021).
A participação e envolvimento da família acontecem a partir da negociação e do estabelecimento de diálogo com os familiares, logo desde a admissão em UCIP. No entanto, este processo pode ser dificultado pela ansiedade dos pais, dos próprios profissionais, pela comunicação e pela relação estabelecida (Araújo et al., 2021; Sá, 2023). Para tornar o ambiente de UCI mais acolhedor, humanizado, familiar e não tão amedrontador, a personalização do espaço envolvente com objetos pessoais e com valor simbólico assim como a satisfação de gostos pessoais, torna-se estratégia facilitadora do envolvimento. Contudo, este resultado não foi evidenciado em outros estudos consultados.
A discussão dos resultados permite compreender as práticas dos enfermeiros em relação ao envolvimento da família no cuidado à criança em situação crítica em UCIP revelando novos resultados relativamente à temática assim como a constatação da existência de resultados consonantes com o que já foi estudado e apresentado na literatura.
Conclusão
A importância do envolvimento da família no cuidado à criança em situação crítica, surge como um elemento fundamental, no cuidado, tanto no suporte emocional à criança, quanto no apoio aos familiares. Neste sentido, importa destacar a importância das estratégias desenvolvidas pelos enfermeiros, na sua atividade diária, de forma a enquadrar o envolvimento da família no cuidado à criança em situação crítica e a adequação das diferentes estratégias à tipologia de cuidados. A humanização dos cuidados, os cuidados holísticos e personalizados e o consequente envolvimento da família nesses cuidados, tem assumido um caráter prioritário tanto para os profissionais como para as instituições de saúde. No entanto, apesar da relevância desta temática para a saúde e a prática de enfermagem, verificou-se uma escassez de publicações focadas na atuação dos enfermeiros em relação ao envolvimento famíliar no cuidado ao doente crítico, especificamente no contexto de cuidados intensivos pediátricos. A investigação permitiu constatar que os enfermeiros de UCIP valorizam o envolvimento da família nos cuidados. Contudo, este processo enfrenta constrangimentos relacionados com os próprios profissionais, os familiares, a instituição e a situação clínica da criança. Para colmatar esses desafios, os enfermeiros a práticas e estratégias desenvolvidas. Em síntese, o envolvimento da família no cuidado à criança em situação crítica, proporciona mais-valias em vários domínios e pode ser implementado através de estratégias, que visam avaliar, capacitar, negociar e informar os familiares, de modo a garantir que se sintam seguros e confiantes no ambiente da UCIP. Esse processo contribui para que a família ultrapasse as dificuldades e experiências decorrentes do internamento. Todavia, é essencial minimizar os constrangimentos que incluem a necessidade de preparação e integração efetiva com o contexto, a disponibilidade de recursos humanos suficientes, e uma formação específica que capacite os profissionais para o envolvimento familiar nos cuidados, promovendo, assim uma prática de cuidados qualitativamente diferenciada.