Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza da tristeza de se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor e para ser só perdão
(Vinicius de Moraes, Samba da bênção, 1965)
“Uma mulher tem que ter...”. Sob tal enunciado já se constituíram muitos modos de existir circunscritos como femininos; já se produziram muitas modelagens normativas comumente tomadas como métricas de condutas adequadas do que o Ocidente aprendeu a chamar “mulher”2. De poesias amorosas a reiterações políticas, se reforçam gestos, atitudes, tecnologias e sensibilidades acerca daquilo tido como devidamente feminino - colocados em xeque, felizmente e de modo reiterado, pela crítica feminista desde o seu nascedouro.
Neste texto, gostaríamos de analisar as maneiras pelas quais tais modelos de feminilidades - e, em menor grau, de masculinidades que com eles reverberam - operam ou são subvertidos por meio de uma prática de educação somática3 chamada biodanza, abordagem corporal de caráter necessariamente grupal que se realiza por meio da força imprevisível dos encontros que promove, e também, da instauração de situações vivenciais nas quais modos de viver, sentir e experimentar a si mesmo e ao mundo são colocados diante da alteridade.
1. UM DISPOSITIVO: O FEMININO, O AMOR E SUAS INVENÇÕES
As abordagens desconstrutivas da teoria feminista e queer desafiaram as explicações essencialistas e desestabilizaram as categorias de sexo e gênero, abrindo espaço para se pensar a partir de uma multiplicidade de identidades e práticas (Young, 1972). Influenciadas especialmente pelo pensamento de Michel Foucault e de Jacques Derrida, muitas autoras feministas passaram a sustentar que as subjetividades são construídas através de discursos socialmente reproduzidos e reprodutores de uma estrutura hegemônica, rejeitando um caráter fixo da oposição “masculino versus feminino” e enfatizando a importância da historicização dos sentidos, em lugar de aceitá-los como óbvios ou naturais (Soihet, 1998).
Especialmente através do contributo de Butler (1993), o conceito de identidade - herdeiro de uma tradição metafísica ocidental centrada na ideia de substância - é posto em xeque (Zanello, 2018). Para ela, gênero não é, de maneira alguma, estável, e tão pouco é um locus operativo de onde procederiam os diferentes atos; ele se faz, antes, por meio de identidades debilmente construídas no tempo, instituídas por uma repetição estilizada de atos (Butler, 1993). Qualquer sensação de essência é, portanto, forjada através da repetição de atos performativos reproduzidos ao longo do tempo. A cristalização gerada por meio de tal repetitividade faz surgir o gênero - ele é, sempre, performance.
Por outro lado, a força performativa do gênero, uma vez circunscrito, faz dele um importante constituinte de muitos dos dispositivos que permeiam diferentes modos de subjetivação (Zanello, 2018). Lembremos Foucault quanto à noção de dispositivo:
(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (Foucault, 2000, p. 244)
Agamben (2009), por sua vez, entende o conceito de dispositivo como qualquer coisa que produz verdades, tendo de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos de pessoas (Agamben, 2009). Máquinas subjetivadoras (Zanello, 2018), os dispositivos se difundem por meio das interações sociais e das relações do sujeito consigo - operam ora na dispersão, ora na dobra que produz o “si mesmo”. Inventam o verdadeiro da sexualidade, da saúde, do empreendedorismo… do amor.
Esse processo se dá por meio das interações sociais, mas também a partir da relação do sujeito consigo mesmo, pois os seres humanos são seres auto interpretantes; isto é, o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações (Zanello, 2018).
Ao se articular aos dispositivos de gênero e da sexualidade, o dispositivo amoroso (Swain, 1998; Zanello, 2018), posto em funcionamento a partir de certos sentidos dados às relações sexuais e matrimoniais entre homens e mulheres (Oliveira, 2017), naturaliza e sustenta inferiorizações e subordinações sociais destas em relação àqueles em nossa sociedade. A noção de dispositivo amoroso foi primeiramente difundida pela historiadora feminista Tania Navarro Swain (1998) que, baseando-se em Foucault (1988), o descreveu como um conjunto de estratégias sociais e de biotecnologias de poder que produzem corpos sexuados.
Nos interstícios da produção da sexualidade, o dispositivo amoroso faz circular representações que constroem a imagem da “verdadeira mulher” (Zanello, 2018, p. 55) como um corpo dócil, amoroso, erótico, violável, servil, sacrificável, submisso, irracional, fútil, emotivo, dependente e materno (Oliveira, 2017; Swain, 1998). Trata-se de imagens e representações que orientam, modelam e conduzem os sentimentos, as emoções, os corpos, as condutas, as opiniões, as subjetividades e as relações de gênero a partir de uma lógica de gênero binária e hierárquica, baseada na inferiorização e subjugação das mulheres pelos homens (Oliveira, 2017).
Em suas análises, Zanello (2018) propõe uma ressignificação do conceito de dispositivo amoroso, diferenciando as propensões traçadas entre o amor materno e o romântico. A autora ressalta que diversos outros estudos (Esteban 2011; Firestone, 1976; Lagarde, 2011) pensam o amor de forma mais ampla, englobando aspectos que devem ser diferenciados em categorias analíticas distintas, pois implicam conflitos identitários diferentes, bem como emocionalidades específicas. O elo do amor romântico, sobretudo heterossexual, e o vínculo e a disponibilidade para os filhos e a família constituem disposições afetivas diferenciadas.
O dispositivo amoroso é, portanto, um dos elementos constitutivos, como sustenta Lauretis (1994), das “tecnologias de gênero” (p. 228), ou seja, de um conjunto de práticas, discursos e representações que constroem o feminino enquanto ser, e principalmente enquanto ser pronto para ser sacrificado, assujeitado e violentado em nome do amor. Como consequência, as mulheres são apropriadas socialmente pelos homens, construídas como corpos disponíveis e desfrutáveis, com papéis sociais bem definidos que passam pela sedução, casamento, procriação e prostituição (Swain, 1998).
Através de diferentes agentes (ciência, cinema, família, etc.) nos chegam imagens e narrativas sobre as relações amorosas que sustentam valores patriarcais. O exemplo do que acontece com os livros didáticos é um entre muitos que, juntos, reforçam certos modos de ser mulher, de ser mãe e de amar. Nesses contextos, os homens surgem, desde os tempos mais longínquos, como agentes que saem à caça e à pesca, enquanto as mulheres, comumente, permanecem nos acampamentos, coletando frutos e defendendo as crianças. Em tal ordem discursiva, o contrato sexual e o amor têm suas origens nas dificuldades apresentadas pelo cuidado da prole; portanto, a relação com os homens acaba por ser uma forma de obter certas “vantagens” (Oliveira, 2017). Desta forma, o dispositivo amoroso, aliado também ao dispositivo materno, constrói a representação da mulher como corpo materno e de cópula sexual; um corpo que, por causa de necessidades e dificuldades, evolui para buscar o contrato sexual, tornando-se assim dependente dos homens (Oliveira, 2017).
Lagarde (2001) chama a esse processo de “colonização amorosa” (p. 31), pois através dele se mantém um modelo tradicional de amor que convoca as mulheres a colocar o outro em um lugar mais importante do que o de si próprias na vida, implicando em renúncia pessoal e em uma entrega à relação que cria dependência e assujeitamento aos homens (Oliveira, 2017). Por meio de discursividades como essas, os esforços das mulheres passam a girar em torno da necessidade de cativar um homem com a ajuda de todos os artifícios disponíveis. A subjetivação feminina fica mediada, portanto, pelo olhar de um homem que a escolhe, e a necessidade de ser escolhida na “prateleira do amor” e ser validada como especial marca sua identidade (Zanello, 2018). A perda do amor passa, então, a ser algo que coloca em xeque a “mulheridade” e o senso de valor próprio (Silva et al., 2019, vi).
Para as mulheres, o amor diz respeito a sua identidade e passa, assim, a ser sua “razão de ser e viver” (Zanello, 2018, p. 82); ele é, então, afirmado como uma qualidade identitária e um meio de valorização pessoal, de produção de autoestima (Oliveira, 2017). Cada mulher recebe o ‘mandato do amor’ como uma expressão natural do seu ser. Já para os homens, são outros dispositivos que constituem a imagem do “homem de verdade” (Zanello, 2018, p. 31): os dispositivos da “eficácia sexual e laborativa” (p. 179). A virilidade é medida pelo desempenho e frequência de relações sexuais e a eficácia laborativa pelo trabalho reconhecido e remunerado (Oliveira, 2017; Zanello & Gomes, 2010).
Em outras palavras, a vivência do amor circunscreve espaços diferentes de subjetivação aos homens e às mulheres, produzindo implicações identitárias capazes de produzir e reproduzir situações de desigualdade dentro e fora do campo afetivo (Zanello, 2018). Dentro desta lógica, a representação social de fragilidade e dependência feminina está recorrentemente colocada, bem como sua associação à beleza, havendo cada vez menos tolerância para os desvios nos padrões estéticos socialmente estabelecidos (Novaes & Vilhena, 2003).
Em seu artigo De Cinderela a moura torta: Sobre a relação mulher, beleza e feiura, Novaes e Vilhena (2003) explicitam a feiura como uma das formas mais presentes de exclusão social feminina atualmente. As autoras sugerem que as atitudes em relação à feiura (quer seja ver-se feia, quer seja atribuir feiura a alguém) produzem certos vínculos sociais, havendo cada vez menos tolerância para os desvios nos padrões estéticos socialmente estabelecidos. E a gordura, aqui, tem um lugar discursivo singular: é tomada como o paradigma da feiura, gerando processos de exclusão para aquele(as) que nela se enquadram. No caso do dispositivo amoroso, percebe-se que a beleza é central para a composição identitária “da mulher de verdade”: a mulher escolhida.
Novaes e Vilhena (2003) destacam ainda que modelos de beleza sempre foram impostos às mulheres. Entretanto, a partir do discurso higienista do século XIX, a beleza é transformada numa obrigação. Ser bela passa a ser resultado de um trabalho que o sujeito faz sobre si, passando a ser sua responsabilidade. Podemos observar uma “moralização do corpo feminino” que indica a passagem de uma estética para uma ética do corpo (Baudrillard apudNovaes & Vilhena, 2003). O cuidado de si, então, torna-se gradativamente uma responsabilidade ética associada à boa forma, e para nela se manter é preciso submeter-se a sacrifícios e cuidados múltiplos.
Belezas, lugares de escolha, noções de amor e de adequabilidade se concatenam na invenção contemporânea do “ser mulher”. O dispositivo amoroso, como elemento que de certa forma lhes costura, está na base da produção desses sentidos. Mas como serão eles manejados em meio a uma prática somática que tem, justamente no encontro entre corpos, sua centralidade?
2. MUITOS CORPOS: PRODUÇÕES, REPRODUÇÕES E SUBVERSÕES DOS MODELOS HETERONORMATIVOS ATRAVÉS DE UMA PRÁTICA CORPORAL
Porque nem toda
feiticeira é
corcunda
Nem toda brasileira
é bunda
Meu peito não é de
Silicone
Sou mais macho
que muito homem
(Rita Lee, Porque nem toda feiticeira é corcunda, 1980)
Nos aproximamos, portanto, de praticantes de biodanza, inquirindo-os(as) sobre as modificações experimentadas, ao longo de seu contato com tal abordagem somática, na relação com seu corpo, sexualidade e experiência de si. Os estudos apoiados na prática da biodanza têm se debruçado, sobretudo, sobre suas correlações com contextos comunitários (Pinho et al., 2009), processos clínicos, de atenção ao envelhecimento (D’Alencar et al., 2008) e de criação existencial (Reis, 2013). Ao mesmo tempo que encontram efeitos positivos da abordagem no controle de doenças como a fibromialgia (Carbonell-Baeza et al., 2010) ou na capacidade de exposição dos corpos à presença do outro e ao toque (Bocchetti, 2022), tais intentos investigativos não deixam de problematizar a sobrecarga afetiva comumente visível nas aulas (Bocchetti, 2017) e os regimes de representação que por vezes mantêm os participantes em modos identitários enquistados (Bocchetti, 2022). De todo modo, houve até aqui certo alheamento das pesquisas no que se refere aos cruzamentos com questões ligadas à produção de gênero, sobre as quais estamos debruçados nessas linhas.
Há uma ênfase clara, no dispositivo operacional colocado em prática pela biodanza, naquilo a que seu criador chama de “inversão epistemológica” (Toro, 1991, p. 11), pela qual a experiência e o vivenciado assumem prioridade metodológica em relação aos processos de significação. Concebendo cognição como ação no mundo, a aprendizagem e a subjetivação pensadas no interior desse trabalho se dão através daquilo que o corpo pode experimentar - seu movimento e os afetos que lhe atravessam. Tal modo de operar, continuamente, pode ter uma capacidade de reiteração de outros modos de experienciar o gênero que sejam capazes de provocar desvios subjetivos frente às lógicas binárias de constituição de si mesmo(a). Com tal hipótese, nos colocamos em campo.
As análises aqui desenvolvidas se valeram de um processo investigativo no qual foram entrevistadas(os) cinco mulheres e cinco homens, praticantes de biodanza e residentes em Lisboa: dentre estes, quatro são brasileiras(os), um é argentino - todas elas(os) residindo há vários anos na Europa - e cinco são portuguesas(es). A idade desse grupo variou entre 37 e 57 anos, tendo todas(os) participantes nível de qualificação elevado, no mínimo, ensino superior concluído.
Compararam-se, por um lado, as narrativas de homens e, principalmente, de mulheres praticantes de biodanza para discutir as reproduções de padrões binários de gênero, e de suas reverberações amorosas, sexuais e de cuidado, em suas narrativas; e, por outro, os aspectos que apontaram para a subversão desses padrões. A interrogação geral que percorreu a investigação foi desdobrada em três temas específicos: a experiência do próprio corpo, a sexualidade e a experiência de si. A investigação incluiu a separação entre indivíduos designados como homens e mulheres em busca de mapear possíveis diferenças nas experiências de cada grupo, a partir das marcas da divisão binária de gênero que permitem circunscrevê-los; é sobretudo na narrativa das mulheres que se visibilizam claramente os aspectos de produção e reiteração do dispositivo amoroso como aqui discutido, com suas prateleiras do amor e colonizações afetivas - razão pela qual são principalmente as falas das mulheres que seguem, nessas linhas, privilegiadas.
As mulheres entrevistadas habitam, sobretudo, uma discursividade capaz de promover uma intensa atenção ao próprio corpo, mas a partir do crivo estético que reforça fortemente a já comentada indesejabilidade da feiura. Muito do que se reitera nas falas das participantes, ao narrarem o modo como se veem no início de suas relações com a prática da biodanza, nasce de ideais principescos; de uma cobrança estética extremada e comumente acompanhada de uma sensação de menos valia: “Eu me julgava demais. Achava que não era boa o suficiente, bonita o suficiente, que tinha alguma coisa que não posso mostrar, é feio, tenho que me arrumar, tenho que esconder isso, tenho que fazer aquilo” (Ent. Joana, jan. 2020)4.
Eu não aceitava o meu corpo, achava que tinha mamas muito grandes (…). Eu acho que tem a ver com a aceitação da minha… do que eu sou, do meu corpo. Na verdade, não é aceitação, é processo de aceitação. Da imagem de beleza que eu tinha na minha cabeça, de eu não me enquadrar dentro dessa estrutura e de me sentir mal comigo mesma, e de achar que eu não era uma pessoa interessante por isso. (Ent. Márcia, jan. 2020)
Ao narrarem o que consideram seus modos de viver no passado, as participantes dão visibilidade ao dispositivo amoroso no qual estão imersas, compondo a figura da mulher que precisa ser bela para se colocar em pé de igualdade com outras, sendo sua autoestima e seu poder de sedução gestados a partir disso (Novaes & Vilhena, 2003). As verdades legitimadas em tal modelo discursivo ensejam laços de domínio que geram desigualdades e dependência. E o amor, então, como enunciado em seu interior, se apresenta talvez como a maior forma de desempoderamento, sobretudo, das mulheres (Firestone, 1976) - algo claramente narrado pelas entrevistadas e diretamente relacionado ao jogo entre cobrança estética e insatisfação corporal:
A autoestima também (...) ainda hoje, eu luto para me estimar porque geralmente há uma desvalorização (...) sinto que é uma lacuna, uma ferida que existe ainda muito… (…). Olha, essa coisa do complexo de inferioridade me levava para um lugar de não ter valor. E eu não tendo valor, eu me submetia. Eu me sentia inferior a qualquer pessoa, e isso influenciava a maneira como eu me relacionava. Na forma como eu sou tratada, ‘tá entendendo? (Ent. Márcia, jan. 2020)
Para muitas dessas mulheres, a “prateleira do amor”, como enunciada por Zanello (2018, p. 84), operava fortemente, acondicionando o ideal estético de ser branca, loura, jovem e magra para melhor estar disponível ao olhar dos homens. Afastar-se desse ideal, para algumas delas, era ampliar os abalos em sua autoestima - e a sensação, em muitos casos, de estarem “encalhadas”.
A “ditadura da beleza” como responsabilidade pessoal, apontada nas narrativas, reorienta sonhos, expectativas e desejos de sucesso privado, em lógicas de poder que se constituem na informalidade e na relacionalidade cotidianas (Lipovetsky, 2000, p. 149). O que está em questão, aqui, é a legitimidade da mulher através da necessidade de ser validada pelo comportamento desejante de um homem. E, para isso, é preciso esforço, na produção de um sentido de conquista pessoal que parte da valoração estética previamente enunciada por ele.
Mas, ao narrarem as relações que estabelecem com a prática da biodanza, as entrevistadas reconhecem mudanças significativas em seus modos de se relacionar com os crivos estéticos que lhes interpelam. Embora não se trate de uma transformação imediata: “Foi um processo demorado, não foi imediato, durou anos. Se calhar é uma área minha muito represada, não é? Muito reprimida”, diz uma participante (Ent. Luíza, jan. 2020). Observamos nas narrativas certos elementos que atribuem a transformação na relação consigo à biodanza, explicitando o desenvolvimento de uma atitude mais ativa e assertiva entre as mulheres.
O assujeitamento feminino instituído pelo dispositivo amoroso determina um corpo dócil, servil, submisso e dependente (Oliveira, 2017; Swain, 1998). Como Zanello (2018) aponta, o dispositivo amoroso constrói corpos-mulher sempre prontos a se sacrificar por amor a outrem. Ainda mais, a posição na prateleira do amor de “ser a escolhida” suscita comumente uma atitude passiva de espera; como princípio, estar na prateleira pressupõe uma “atitude de não escolha”.
Com a prática de biodanza, identifica-se uma certa subversão dessa esperada docilidade:
Eu era muito, assim, receptiva, eu esperava muito. Eu não era muito ativa, sempre esperava, sempre ‘tava. Tinha muito tabu ainda, apesar de achar que eu já era super assim liberal em relação a estereótipos (...). E aí eu comecei também a ver que eu também tenho o meu lado masculino. Eu comecei a ativar esse lado masculino meu também. (...) onde eu podia colocar para fora a ação, eu vou pegar, eu vou agarrar, eu quero, eu vou conquistar, eu vou seduzir e eu vou, eu vou, sou eu que vou. (Ent. Joana, jan. 2020)
Não obstante, as respondentes acabam por associar essa atitude ativa como uma “expressão masculina”. As respostas dadas às perguntas “o que é o masculino?” ou “o que é o feminino?” vão originar repetições que constituem as representações e a materialidade de sexo e de gênero (Butler, 2018). Esse tipo de enunciado equaciona um determinado tipo de retórica sobre uma representação do conjunto de corpos masculinos e uma representação do conjunto de corpos femininos (Tavares, 2020). Na repetição desse discurso, os sujeitos se conformam com essa divisão, recriando relações de poder.
O Yin e o Yang total de que quando sou mais animal sou mais bruta, sou mais masculina, uma energia mais yang, e isso também quando sou mais yin, mais sensível, no lugar de ser cuidada em lugar de cuidar. E eu acho que é importante perceber isso e na biodanza aconteceu. (Ent. Cláudia, jan. 2020)
A interpretação das experiências dentro dessa matriz perceptiva é uma forma de reproduzir essa materialidade, reforçando a divisão entre homens e mulheres (Tavares, 2020). As entrevistadas, portanto, ao manterem um discurso binarizado, muito comumente reforçam uma posição de não pertença à esfera da assertividade circunscrita como masculina, e consequentemente não se apropriam por completo dessa experiência, tratando-a como algo exterior ao seu mundo.
Contudo, apesar da manutenção dessa modelagem binária no interior da biodanza, nota-se uma diminuição progressiva da crítica, pelas mulheres, em relação a seus corpos e suas ações: “Noto um maior desfrute e também aceitação. Sinto-me muito menos crítica do meu próprio corpo” (Ent. Luíza, jan. 2020). As mulheres expressam uma maior aceitação de si mesmas, de seus desejos e inclinações. A confiança em si mesmas expande o espaço para se assumirem em sua própria diferença: “Fez sentir que tenho, que eu posso dar para mim mesma, eu tenho esse continente afetivo para mim mesma. Então é a questão da identidade, para depois ser muito mais autêntico com o outro” (Ent. Joana, jan. 2020).
À medida que percebem a suspensão/diluição dessa crítica, as entrevistadas demonstram também uma coragem para viver baseada no resgate de sua confiança e estima. Já não se comportam como corpos dóceis e conformados, mas com capacidade de atuar, de expressar, de ir ao mundo e tomar as coisas pelas mãos.
Mas a autoestima com certeza a biodanza me deu, me deu coragem de viver, porque no ano seguinte, em 99, eu simplesmente peguei na vontade e disse que essa realidade não é mais para mim. Que a realidade era uma família desestruturada, com violência doméstica e eu queria mudar a minha família. (Ent. Maria, jan. 2020)
Essa reconstrução da confiança nos aspectos da própria experiência com a prática da biodanza parece ganhar vida e passa a inspirar as entrevistadas em seus processos decisórios. Assim, a partir dessa escuta, percebem-se mais corajosas para viver. Coragem, que em geral, é uma característica bastante reforçada da masculinidade (Mira, 2017).
Sim, eu acho que uma das mensagens fortes da biodanza, das consignas, é muito a questão de ir para o mundo e fazer as nossas escolhas. E entra um pouco naquela de não ter medo daquilo que os outros vão pensar, ou não ter vergonha. Seguir o instinto, seguir o desejo, aquilo que me faz feliz, a vida vai. E da abundância, ou seja, é abundante, temos é que estar em movimento. (Ent. Cláudia, jan. 2020)
Sim, coragem de viver, de tomar as decisões, mas a partir do coração. E sempre fui movida por isso. Desde o primeiro momento em que eu conheci a biodanza e tem sido sempre assim. Vou motivada pelo coração. Eu decido e vou. E confio. (Ent. Márcia, jan. 2020)
Os homens, por sua vez, demonstram uma atitude de desconfiança e escassa familiaridade com sua sensibilidade e suas emoções, característica acompanhada por uma racionalidade dominante e uma falta de atenção estética com seus corpos, prévias à prática de biodanza. As inseguranças demonstram estar conectadas a aspectos econômicos, à cobrança do papel característico de provedor da lógica binária de gênero (Tavares, 2020). Muitas vezes, expressam uma pressão para performar de forma ativa, agressiva e assertiva, marcadores característicos da masculinidade dominante (Connell, 2005). Zanello (2018) refere-se aos dispositivos da eficiência como estruturantes da subjetividade masculina.
Para os homens, como estabelecem Novaes e Vilhena (2003), as preocupações com a má aparência mostraram-se mais sutis, pois há uma condescendência com a feiura masculina, uma vez que a valoração como a sedução da imagem masculina dá-se a partir de conquistas sociais e econômicas. Mesmo homens que fogem totalmente ao padrão estético sentem-se normalmente em posição privilegiada para avaliar as mulheres. Aliás, nos relatos masculinos percebe-se uma despreocupação estética:
Em termos do meu corpo tenho de dizer que nunca tive muitos problemas. É mais o problema que tinha porque sou muito hedonista (…). Efetivamente, sempre tive uma consciência do corpo muito... vendo o corpo como uma coisa muito espontânea. (Ent. Samuel, jan. 2020)
Geralmente, as preocupações dos homens são expressas dentro dos limites de se concentrarem no corpo como um instrumento de ação, e não como essencial para obter uma aparência específica. Ser dominante é uma parte central das expectativas do papel de gênero dos homens e existem outras maneiras de expressar domínio para além do corpo musculoso, como o trabalho, a competição e o status social (Tavares, 2020).
Cunha (2008) sugere que, embora haja uma crescente preocupação masculina com a forma corporal na atualidade, a valorização da imagem corporal ainda está mais ligada ao gênero feminino. Percebemos que as descrições dos homens em relação ao próprio corpo não vêm tão permeadas por conflitos, não há críticas extremas ou necessidade de adaptação aos padrões de beleza. Alguns entrevistados referiram-se à estatura baixa, ou a se sentirem “franzinos”; contudo, isso não lhes causava incômodo:
Eu vivo as coisas muito corporalmente. Eu acho que isso é algo natural em mim que está muito presente. Sempre fui muito corpóreo, vivi muito a corporeidade na minha infância, sempre fui muito… O meu desenvolvimento era sempre muito de mexer, de movimento, e eu sentia e sinto muitas coisas corporalmente. (Ent. Pedro, jan. 2020)
Le Breton (1991) defende que o homem vive com uma imagem do seu próprio corpo que lhe dá acesso a uma forma que reconhece como sua, experimentada como uma unidade e bem delimitada no espaço; um sentido que lhe permite habitar o seu corpo como um universo familiar e coerente, e não como um caos de sensações estranhas e hostis. Nas narrativas dos entrevistados, podemos observar essa confiança e conforto com seu próprio corpo, a qual reflete segurança e também liberdade sexual:
Efetivamente, sempre tive uma consciência do corpo muito... vendo o corpo como uma coisa muito espontânea. Inclusive com as minhas filhas, com a minha ex-mulher, sempre foi tudo muito livre (...). Portanto, de lá para cá, talvez seja um bocadinho mais difícil fazer a relação dos benefícios sobre o impacto da biodanza na sexualidade porque sempre me senti muitíssimo livre. (Ent. Samuel, dez. 2019)
Com a prática da biodanza, os homens relatam que a afetividade passa a ser um dado fiável na construção de suas decisões:
Melhorou também muito a minha empatia. Compaixão, um lugar de afeto, saber expressar afeto, não ter vergonha, estar mais sensível, ter uma sensibilidade diferente. (Ent. Henrique, jan. 2020)
O cuidado estético também se alia às outras transformações experimentadas, mas aparece com uma atitude de maior contato consigo próprio e não por uma cobrança para se encaixar em ideais estéticos:
Sim, à medida que fui fazer biodanza fui ficando mais preocupado com meu corpo, quer em termos de saúde, quer em termos estéticos (...). Comecei a olhar mais para o meu corpo e a preocupar-me com a imagem que projetava, sim. (Ent. Charles, jan. 2020)
Aos poucos, com a prática da biodanza, os relatos falam de uma resistência que cede lugar a uma presença tida como mais sensível, uma maior seletividade, a sensação de congruência e assertividade e, consequentemente, maior autoestima. Nota-se que as avaliações que os sujeitos fazem sobre si já não ficam somente sujeitas aos marcadores de masculinidade - força física, agressividade, status econômico e controle -, mas incluem uma sensibilidade e uma escuta afetiva experimentadas como congruência nos atos decisórios:
Com a biodanza, pelo menos, eu consegui começar a escutar um pouco mais as minhas emoções. Eu tenho alguma dificuldade em aceder ao meu universo emocional. Sou mais sensação do que emoção, as emoções normalmente acabam sempre sendo facilmente interpretadas pela razão. Durante muito tempo eu nem dava conta, era cabeça, cabeça, cabeça, cabeça, cabeça. Com a biodanza eu já venho me dando conta de que há emoção no processo, mas normalmente a cabeça é predominante. É muito ruim, mas é um bocado aí. (Ent. Charles, jan. 2020)
Contrariamente ao que acontece com o grupo dos homens, no universo feminino a rigidez é de tal ordem que não há justificativa para o não atendimento dos imperativos da beleza, como podemos perceber nos relatos. Enquanto no universo masculino o desvio com relação ao padrão de beleza pode estar vinculado à falta de tempo e à vida profissional, para as mulheres, não cultivar a beleza é falta de vaidade - um qualificativo depreciativo da moral (Novaes & Vilhena, 2003).
Os relatos acima destacados reafirmam o dispositivo amoroso e da colonização afetiva como eixos performativos identitários. Para as mulheres, fica claro que ser magra é o melhor capital de inclusão social. Já para os homens a força, a sexualidade e a eficiência são marcadores de destaque social (Novaes & Vilhena, 2003). A grande descoberta subversiva à heteronormatividade relatada pelas mulheres entrevistadas foi a diminuição relativa da cobrança estética para se tornarem mais ativas e confiantes, enquanto para os homens a integração da sensibilidade e da afetividade expressou-se como eixo de subversão à subjetivação normativa binária de gênero.
CONCLUSÃO
O dispositivo da sexualidade reproduz, inventa, penetra os corpos de maneira cada vez mais detalhada (Foucault, 1988). A sexualidade, nesta perspectiva, não está no domínio do natural, mas no da produção discursiva do sexo-verdade e do sexo-identidade. O dispositivo, portanto, define e molda corpos nesses regimes de verdades. A ele se aliam o dispositivo amoroso e materno (Swain, 1998; Zanello, 2018), que produzem sujeição, silêncio e abnegação associados a uma pressão constante para alcançar um ideal estético como projeto moral - de trabalho do sujeito sobre si mesmo.
Na relação com a prática da biodanza, os jogos entre a reiteração das normatizações produzidas no interior desses dispositivos e os espaços de desvio e liberação ficam bastante visíveis. De fato, a análise dos conteúdos das entrevistas realizadas indiciou algumas possibilidades de abertura e questionamento aos regimes identitários pelos quais pessoas afirmam novas expressões de si que não se encaixam nos padrões performativos binários de gênero. Mas, ao mesmo tempo, constatamos também uma tendência de reproduzir ainda uma interpretação igualmente binária em suas novas experiências, além da insistência de algumas reproduções performativas majoritárias em determinadas narrativas.
Dentre as repetições identificadas, foi clara entre as mulheres entrevistadas uma reiteração dos ideais principescos da performatividade feminina e da cobrança estética com uma consequente sensação de inadequação pela não conformidade aos ideais de beleza. A cobrança excessiva com seus corpos vem acompanhada de uma sensação de menos valia, o que, por sua vez, também estabelece uma rede de opressão para as mulheres. Quanto menos confortáveis com sua corporeidade, mais identificam a sensação de falta de legitimidade perante o mundo.
Por outro lado, algumas experiências narradas apontaram caminhos importantes na produção de transformações na corporeidade que talvez possamos considerar insurgentes. Notamos, nesse sentido, nas mulheres, a abertura de expressões e modos de conceber a si mesmas que passam pela descoberta de dimensões mais ativas, de uma crescente assertividade e de um maior contato com sua corporeidade, que impactou na expressão e descoberta de novas nuances de sua sexualidade, para além de uma maior clareza para expressarem-se e maior coragem para agir. No caso dos homens, narram-se progressivos aumentos de sensibilidade e abertura a um mundo mais pensado em termos de afetos e encontros.
As mudanças mapeadas nas entrevistas nos apontam, portanto, para a importância de continuarmos a pensar nas possibilidades de desacomodação de normas produzidas em dispositivos constituidores de relação de gênero mediante experiências somáticas envolvendo o movimento e a valorização da imprevisibilidade do encontro, centrais a práticas como a da biodanza. Por sua qualidade vivencial, abordagens como essa podem por vezes, pela intempestividade da presença do outro, nos fazer escapar de modelos universais de aprendizagens que permeiam formas de conceber e experimentar a si mesmo(a). A vivência carrega justamente o que é próprio do acontecimento que abre uma brecha; “é algo que sempre escapa, que foge ao controle” e que gera “possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto” (Gallo, 2002, p. 175) - o que, no caso da experiência corporal, pode criar modos outros de subjetivação e construção de relações de gênero.
Finalmente, vale lembrar que talvez não seja necessário nos livrarmos de uma vez por todas do amor. Já há algum tempo, Bell Hooks (2000) nos ajudou a redefini-lo como uma “vontade de nutrir o crescimento espiritual” (p. 48) de nós mesmos e daqueles com os quais nos encontramos - pensando tal espiritualidade enquanto “compromisso com uma forma de pensar e agir que honre os princípios de interconexão e simbiose” (p. 115). Se, então, o amor se aproxima assim de um vínculo solidário e ecológico, talvez possamos escapar daquilo que, como mulheres e homens, “temos que”, em favor de lógicas mais pautadas na potência das comunidades que, mantendo-nos em exposição uns(umas) aos(às) outros(as), nos ajudem a continuar a questionar o que temos nos tornado, e a inventar outros modos de existir.