Eu travesti,/ assumi que sou divina./ E criei a mim mesma./ Somos criadoras,/ Crias de dores./ A vida se faz/ Frente à morte voraz. Letícia Nascimento
Letícia Carolina Nascimento, mulher travesti brasileira, ativista trans, pedagoga e professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), traz-nos nesta obra o apriorismo coletivo e pessoal de construir um debate para os transfeminismos enquanto campo de luta política e epistemológica feminista que reflete o lugar marginal das identidades trans, não bináries e intersexo, em sociedades hierarquicamente marcadas pelo colonialismo de género (Lugones, 2014).
Inserida em “Feminismos Plurais”, coleção que, como o nome sugere, se debruça sobre diversas temáticas feministas, esta obra coloca em evidência as interseccionais experiências de opressão femininas e o modo como as estruturas de opressão patriarcais, sexistas, machistas, coloniais e imperialistas são partilhadas entre as diferentes subjetividades ontológicas e formas de performatizar o género e os corpos femininos.
Partindo do seu lugar de fala, a autora explora a realidade política e intelectual das identidades trans femininas e o seu contributo para a criação de novas alianças políticas e proposições teóricas feministas. Para isto, a relação que estabelece entre teóricas feministas do Sul global e produções feministas anglo-americanas desvela a importância dos diversos ângulos e olhares feministas na compreensão e relação das questões de género com raça, etnia, classe, sexualidade, orientação sexual e nacionalidade, nos processos de construção social das “feminilidades” e da pluralidade de formas de viver e ser “mulher”.
Organizada em sete capítulos, esta obra principia com o resgate da histórica afirmação de Sojourner Truth, “E eu não sou uma mulher?”, para problematizar as fronteiras entre quem pode ou não ser sujeito/a do feminismo. Apropriando-se da asserção de Sojourner, Nascimento levanta a provocação: “E eu não posso ser mulher?”, para denunciar a matriz biológica que determina que tipos de vida são “autênticos” e/ou “originais” para o reconhecimento da feminilidade/feminista: a mulher cis, heterossexual, branca, de classe média, magra e sem deficiências (Nascimento, 2021, p. 30).
Mostrando como as mulheres trans são ainda outsiders do feminismo, encontramos no texto as limitações trans excludentes que grupos de feministas radicais colocam à compreensão do sexo anatómico feminino como destino natural, essencialista e universal da “mulher”. Tornando ininteligíveis as performances de género experimentadas por corpos trans, intersexo e não bináries, entre outras identidades e/ou expressões de género femininas não limitadas a um corpo com vagina, o fundamentalismo biológico e binário advogado pelos discursos essencialistas trans excludentes reforçam silenciamentos sobre a pluralidade de existências femininas, bem como o retrocesso teórico e político do movimento feminista.
Fazendo a justaposição dos conceitos de cisgeneridade e transgeneridade, a autora mostra a importância dos termos para evidenciar a construção da abissalidade entre corpos cis e corpos trans femininos, nos últimos dos quais recaem os estigmas da patologização, da anormalidade e do desvio quando comparados com a normatividade dos primeiros. Do mesmo modo, obedecendo à inspeção das normas e técnicas regulatórias médicas, legais e sociais, estes corpos/identidades continuam a ser impossibilitados de agenciamento e autodeterminação num jogo assimétrico de construção da individualidade ontológica e das expectativas coletivas que produzem identidades “abjetas”.
Resgatando a célebre obra de Gayatri Spivak Pode a Subalterna Falar? (2010), Nascimento mostra o lugar periférico das identidades trans dentro da hierarquia das diferenças subalternas, fazendo-nos questionar o reconhecimento do lugar de fala das mulheres trans e das suas produções epistemológicas:
Em quantos espaços e eventos acadêmicos, sobre gênero ou não, as mulheres transexuais e travestis circulam e são convidadas para falar como agentes epistemológicas, e não apenas como relatos de experiência? (Nascimento, 2021, p. 83)
E, ainda:
Onde estão as mulheres transexuais e travestis nas manifestações de 8 de março? Nos debates sobre saúde, segurança e educação? (Nascimento, 2021, p. 84)
As problemáticas levantadas apelam à produção de conhecimento “sobre” e “com” pessoas trans, de forma a resgatar as suas memórias, vozes e percursos históricos que, até então, mostram ser sujeitas a escasso reconhecimento e marginalização. A pertinência destas questões não poderia deixar de levantar inquietações quanto à realidade transfeminina em Portugal, entre as quais: Considerando o feminismo de Estado português (Monteiro, 2011), qual o reconhecimento das mulheres e feminilidades trans nos movimentos feministas portugueses? Quais as agendas e demandas transfeministas no país? Qual o lugar de fala das mulheres trans nos espaços científicos/académicos? Quem tem produzido sobre estas identidades na academia?
A dificuldade em responder a estas questões pode ser elucidativa da (in)visibilidade e marginalidade conferida às questões trans e identidades e/ou expressões de género não normativas no país. Neste sentido, encontramos em Transfeminismo a importância da leitura sobre as experiências, epistemologias e reivindicações políticas trans, de forma a produzir espaços para uma luta coletiva feminista capaz de combater categorias abstratas criadas pelo poder hegemónico do Norte global, assim como combater a patologização, invalidação e deslegitimação associadas aos corpos e identidades trans femininas, não bináries e/ou intersexo (Valencia & Zhuravleva, 2019).
Ainda que a violência de género e casos de feminicídio no Brasil mostrem ser, por diversas razões, exponencialmente mais complexos quando comparados com a realidade portuguesa, nomeadamente aqueles perpetuados por motivações transfóbicas, importa considerar os contributos teóricos e políticos transfeministas do Sul global de forma a iluminar práticas sociais delatoras da arquitetura ideológica da exploração e poder de género encarnada nas formas de violência transfóbica. O projeto transfeminista não só revela a possibilidade de combate à necropolítica da colonialidade de género (Valencia & Zhuravleva, 2019), como frisa a necessidade de visibilizar as experiências concretas e plurais das mulheres no sentido de uma sociedade mais justa com espaços de agenciamento, autodeterminação e solidariedade feminina.