A palavra violência deriva do latim violentus que significa “o que age pela força”. Tratada como questão de Saúde Pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência desferida contra adolescentes pode abranger inúmeras formas levando a diversas repercussões negativas nessa fase tão importante do desenvolvimento (Burns et al., 2017).
Dentre as inúmeras variantes, a violência sexual ou abuso sexual na adolescência é o segundo tipo de violência mais frequente entre os 10 aos 14 anos, ficando atrás somente da violência física (Brasil, 2013). Uma em cada cinco mulheres e um em cada treze homens foram acometidos por violência sexual na infância ou adolescência sendo ela, na maioria dos casos, acometida por pessoas próximas e conhecidas do adolescente (Brasil, 2014).
Os sinais que permitem identificar adolescentes suspeitos de abuso podem se apresentar desde uma mudança de comportamento até lesões físicas propriamente ditas. Na maioria dos casos, os perpetradores são familiares ou pessoas do convívio próximo do adolescente, geralmente do sexo masculino, o que torna ainda mais difícil a detecção dos casos, já que a família, que deveria ser o suporte, torna-se algoz (Burns et al., 2017; Pfeiffer, 2005).
Se na maioria dos casos de abuso alguém da família está envolvido a articulação de uma rede de apoio que inclua escola, assistência à saúde integral e interdisciplinar e o poder público torna-se primordial. Quanto à assistência à saúde, nota-se que a maioria dos profissionais de saúde tem dificuldade no processo de tomada de decisões quando colocados em frente a situações de abuso sexual na adolescência (Batista et al., 2016). No mesmo caminho, adolescentes encontram dificuldades no acesso às redes de apoio e aos profissionais de saúde, desde a comunicação até a adesão a tratamentos, que atendam suas demandas.
Em função disso, esse estudo visa abordar, de uma forma ampla, a assistência à saúde dos adolescentes vítimas ou com suspeita de abuso sexual com foco nos desafiadores problemas da prática cotidiana, não só na identificação precoce de sinais e sintomas de violência sexual, mas, essencialmente, na maneira de acolher e encaminhar esses pacientes em suas singularidades e com seus desdobramentos. Mais do que nunca romper o “muro de silêncio” na assistência à saúde torna-se imperativo tendo em vista as consequências desse problema, que em sua maioria, se tornam irreversíveis (Batista et al., 2016; PAHO-Pan American Health Organization, 2017).
Método
Estratégia de busca
A revisão de literatura foi realizada a partir da busca ativa de informações na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS - www.bireme.br) nas bases de dados LILACS e MEDLINE. Para tanto, foram adotados os seguintes descritores: “Abuso sexual”, “adolescente”, “assistência à saúde” (DeCs/MeSH), combinados pelo operador booleano AND (Figura 1). O processo de busca e análise foi conduzido por três pesquisadores e a última consulta às publicações foi realizada em abril de 2019.
Critérios de elegibilidade dos artigos
Foram incluídos estudos originais que tenham como tema central o abuso sexual envolvendo o adolescente e a assistência à saúde, considerando os sujeitos com idades entre 10 e 19 anos. A busca foi limitada a publicações nos idiomas inglês, espanhol e português; e do tipo artigo científico. O período de publicação considerado foi de 2014 a 2018. Revisões, metanálises, teses e relatos de caso foram excluídos. Como critérios de inclusão: ter relação com a pergunta condutora (qual a assistência que recebem os adolescentes vítimas de abuso sexual?) e o uso dos descritores (abuso sexual, adolescente, assistência à saúde). Como critérios de exclusão: fuga ao tema, faixa etária não relacionada ao adolescente (OMS como base), relato de caso, artigos repetidos, revisão sistemática ou metanálise, estudos qualitativos.
Seleção das publicações e extração dos dados
O processo de análise para avaliação e seleção dos artigos foi realizado por dois pesquisadores, de forma independente, com posterior confronto dos resultados para obtenção dos textos selecionados por consenso. Para os casos de divergências ou dúvidas quanto à inclusão dos artigos, houve a participação de um terceiro pesquisador avaliador. Dessa forma, a seleção das publicações foi conduzida em duas fases: (1) seleção pela leitura dos resumos, e (2) análise qualitativa dos textos na íntegra (Figura 1). Esta metodologia seguiu as recomendações PRISMA (Principais Itens para Relatar Revisões sistemáticas e Metanálises). Além dos artigos analisados nesse trabalho foram utilizadas outras referências da literatura (cartilhas e constituições) com abordagens sobre o abuso sexual em adolescentes e/ou quanto à assistência deles. Seguem detalhadas na bibliografia deste trabalho suas respectivas referências (Brasil, 2007, Brasil, 2012, Brasil, 2013, Brasil, 2014; Brasil, 2015, Brasil, 2017, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988; Conanda, 2013; Cordeiro, 2006; ECA-Estatuto da Criança e do Adolescente, 2015; PAHO-Pan American Health Organization, 2017; Ministério da Saúde, 2007, Ministério da Saúde, 2013; OMS, 1995; Sociedade Brasileira de Pediatria, 2018).
Resultados
Dos 17 estudos selecionados, verificou-se que os estudos foram realizados na América do Norte (n= 7), Europa (n= 5), América do Sul (n= 3), África (n=1) e Oceania (n=1). Em todos os artigos, verificou-se que o sexo feminino foi o mais acometido como vítima pelo abuso sexual, o que condiz com as referências literárias existentes sobre violência de gênero (OMS, 2004).
Com relação à fonte de informações, observou-se que quatro estudos consideraram o ponto de vista da própria vítima, com suas perspectivas em relação à assistência à saúde prestada pelos profissionais de saúde (Diaz et al., 2017; Denis et al., 2016; Hicks et al., 2017; Westwood et al., 2016). Quanto à população-alvo, dois artigos abordam exclusivamente indivíduos que se encontram na faixa etária da adolescência preconizada pela OMS (Schilling et al., 2015; Vloet et al., 2105). Três artigos abordam pesquisas em Centros de saúde especializados nos atendimentos de vítimas de abuso sexual (Al-Jilaihawi et al., 2017; Du Mont et al., 2014; Zijlstra et al., 2017). Destaca-se a participação de profissionais qualificados e equipe multiprofissional. No Quadro 1 estão relacionadas as estratégias de acolhimento do adolescente vítima de abuso sexual citadas nos estudos selecionados e no Quadro 2 encontram-se as dificuldades de assistência em casos de abuso sexual entre adolescentes.
Discussão
Pesquisa de Lokuge et al. (2016) relata a proporção de 87,8% de perpetradores conhecidos, em sua maioria familiares, que abordam crianças com menos de 16 anos, corroborando o que afirma o balanço geral de denúncias do Disque 100 de abuso sexual contra crianças e adolescentes (2014). É verificado também que o sexo feminino é o mais acometido em todos os estudos o que reafirma a violência de gênero (Lokuge et al., 2016).
Sinais e sintomas precoces podem identificar adolescentes acometidos por abuso sexual mesmo por pessoas da família. Brattabo et al. (2018) analisaram a identificação, por parte de profissionais da saúde bucal, indícios de maus-tratos, incluindo abuso sexual. Al-Jilaihawi et al. (2017) através de estudo em uma clínica pediátrica especializada mostrou a importância de uma avaliação pediátrica baseada numa visão holística e integrada no diagnóstico diferencial, que inclui uma visão médica qualificada para distinguir um sinal ou sintoma precoce de abuso sexual de um padrão de comportamento normal. Países que dispõem de centros de saúde com equipes treinadas e multidisciplinares apresentam melhor eficácia na identificação e, consequentemente, condução precoce dos casos (Brink et al., 2015). Além disso, a chance de revitimização reduz-se significativamente através de acompanhamento psicossocial adequado (Zijlstra et al., 2017).
Muitas sequelas são deixadas decorrentes do abuso sexual desses adolescentes incluindo diversos transtornos psiquiátricos, sendo o principal o transtorno de estresse pós-traumático. Tratamento e seguimentos adequados levam a uma redução significativa dos sintomas (Vloet et al., 2015). Arrom et al. (2015), afirmam um atraso em média de dois anos entre o abuso sexual e a primeira consulta psiquiátrica, dificultando ainda mais a resposta a um tratamento. Tal atraso se justifica pelo medo, desinformação, falta de apoio e acesso desses adolescentes entre outros fatores concorrentes para a manutenção da violência. O uso prévio de serviço de saúde mental foi o mais forte preditor de uso do tratamento ao longo de 6 meses segundo Price et al. (2014). Tal prerrogativa pode ser explicada pelo fato desses pacientes se sentirem mais confortáveis de voltar para um serviço no qual uma relação já foi estabelecida.
Inúmeros protocolos de profilaxia contra doenças sexualmente transmissíveis e gravidez são seguidos por profissionais de saúde quando do atendimento dos adolescentes vítimas de abuso sexual. A falta de um protocolo padronizado e diretrizes que venham a nortear esses profissionais é preocupante à medida que dificulta um tratamento adequado e a sua aderência. Além disso, profissionais com diversas formações podem discordar sobre a melhor forma de tratar e acompanhar esses pacientes (Schilling et al., 2015). Além da falta diretrizes padronizadas, a ausência de capacitação desses profissionais no atendimento a essas vítimas, associada muitas vezes à subnotificação, torna o problema abordado muito mais danoso para essa vítima (Vieira et al., 2014).
Pessoas traficadas necessitam de um cuidado com a saúde física, sexual e psicológica, por apresentarem um contexto de vulnerabilidade aos adoecimentos. O estudo de Westwood et al. (2016) indicou que essas pessoas não foram capazes de acessar serviços de saúde quando precisavam por uma variedade de razões. Era muitas vezes negado o acesso aos serviços de saúde quando traficadas, encontrando barreiras administrativas durante o período pós-tráfico. Além disso, não dispunham de recursos pessoais necessários para alcançarem os serviços de saúde.
Mais que atender de maneira adequada aqueles adolescentes que já sofreram violência sexual é realizar a prevenção primária de tais eventos. Intervir na comunidade, em escolas e através de meios de comunicação são recursos que devem ser utilizados como ferramenta na assistência à saúde. Segundo Abeid et al. (2015) a intervenção comunitária através de programas de rádio, informações, materiais de comunicação e reuniões de advocacia com líderes locais teve um efeito não apenas sobre a consciência das consequências da violência para a saúde, mas também um aumento de mais de 50% no número de sobreviventes de abuso que buscaram os serviços de saúde.
O uso de tecnologia móvel através da criação de aplicativos e comunicação facilitada com profissionais de saúde ainda é pouco estudado com necessidade de mais pesquisas sobre a utilização dessas intervenções, mas parece ser promissora tendo em vista o fácil acesso e o grande uso por adolescentes dessa ferramenta (Hicks et al., 2017). Por fim, atender às necessidades dessa população com suas excentricidades, que são características intrínsecas dessa fase, demanda promoção de relações e vínculos protetivos baseados na confiança e respeito mútuos, além da comunicação adequada que aborde os dilemas da adolescência.
Com base nos artigos pesquisados, foi possível observar o assunto de forma diversificada. Porém, no que se refere à assistência à saúde no contexto da revisão em questão, ainda é um assunto pouco explorado. A assistência à saúde dos adolescentes vitimados ou com suspeita de abuso sexual ocorre de forma fragilizada, no que se refere à saúde pública, e em um contexto mundial.
A assistência à saúde dos adolescentes vitimados ou com suspeita de abuso sexual foi observada de forma integral e integrada apenas em alguns artigos encontrados que referenciaram centros especializados no atendimento a essas vítimas. O atendimento realizado de forma ampla, multidisciplinar e intersetorial, fornece tratamento aconselhamento e acompanhamento para as vítimas e seus cuidadores com redução das sequelas a curto e longo prazo. Porém, referências de assistência, exemplares e integrativas para as vítimas, se encontram em centros localizados em Países desenvolvidos. A realidade dos países subdesenvolvidos, como o Brasil, se restringe a diretrizes e procedimentos não padronizados, profissionais não capacitados e altas taxas de subnotificação.
Enxergar o paciente em condições fragilizadas e carecida de atenção e cuidados psicossociais, também foram fatores em consenso nas abordagens. Entretanto, lacunas na dinâmica da rede de acompanhamento (fluxo intersetorial) deixam claro a necessidade de profissionais capacitados (identificar, atender, acompanhar, encaminhar, notificar) que saibam acolher essas vítimas, direcioná-las para os serviços necessários de atenção à saúde e judicial, acompanhar a reinserção das mesmas no contexto social e, quando necessário, realizar busca ativa dessas vítimas na própria sociedade. Além disso, a existência de programas e unidades de acolhimento são fatores relevantes para mudar o cenário atual frente a esses jovens vitimados. Faz-se necessário mais estudos voltados para esse problema de saúde pública para que haja enfrentamento condizente com a proposta atual.