Após o surto inicial do vírus SARS-CoV-2 na China no final de 2019, a epidemia de COVID-19 espalhou-se rapidamente por todo o mundo. A 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o estado de pandemia global. O início rápido desta grave e desafiadora emergência sanitária colocou imediatamente os sistemas de saúde sob enorme pressão, tanto do ponto de vista organizacional quanto clínico (Gualano et al., 2021). O vírus SARS-CoV-2 é um coronavírus do tipo beta e a transmissão da infecção é feita por gotículas e aerossóis através do contato direto com pessoas infetadas. Os sintomas clínicos da doença COVID-19 são comparáveis aos da gripe e incluem tosse seca, febre, alterações do cheiro ou do sabor podendo evoluir para pneumonia grave. Pacientes idosos e pacientes com doenças pré-existentes têm maior risco de progressão para doença grave ou mesmo fatal. Mutações repetidas têm originado variantes que, diferem principalmente, na sua capacidade infeciosas e agressividade. No início de Julho de 2021, mais de 184 milhões de casos e 3,95 milhões de mortes já tinham sido registadas em todo o mundo (Hannemann et al., 2022). Os profissionais de saúde são um grupo de alto risco para a infecção por SARS-CoV-2, sendo a seroprevalência de anticorpos contra o SARS-CoV-2, entre os profissionais de saúde, bastante maior do que na população geral (Galanis et al., 2021).
Há um crescendo de evidência demonstrando que durante uma epidemia ou uma pandemia os trabalhadores da saúde experimentam um significativo aumento do sofrimento psicológico (Chigwedere et al., 2021). O burnout é uma resposta afectiva tridimensional ao stresse continuado relacionado com o trabalho, sendo comum nos locais de trabalho onde os funcionários passam muito tempo cuidando de outras pessoas. O burnout inclui três dimensões: a exaustão emocional, a despersonalização e uma perda de realização pessoal. A exaustão emocional ocorre quando os funcionários se sentem cansados ou com pouca energia para se envolverem emocionalmente. A despersonalização consiste no desenvolvimento de atitudes e sentimentos negativos em relação aos outros que realizam trabalho com eles. Aqueles que experimentam uma perda da realização profissional tendem a subestimar as suas capacidades para realizar tarefas e interagir com outros.
Durante a pandemia de COVID-19, aumentaram as pesquisas sobre burnout em profissionais de saúde. O burnout tem repercussões não só sobre as equipes de saúde mas também sobre os pacientes. O burnout entre os profissionais de saúde foi exacerbado pela pandemia de COVID-19. Quase metade dos profissionais de saúde sofreram de burnout durante a pandemia, mesmo aqueles que trabalharam fora da linha da frente (Ghahramani, 2021). O burnout pode induzir emoções negativas e diminuir as emoções positivas. Os estudos feitos com profissionais de saúde têm evidenciado uma relação directa e significativa entre stress e burnout. A pressão do trabalho juntamente com a depressão e a ansiedade exacerbam o burnout (Zareei et al., 2022). O burnout já era um problema relevante nos profissionais de saúde antes da pandemia de COVID-19, condicionando fortemente o seu bem-estar ocupacional. O aumento na prevalência de burnout com a pandemia tornou-se um fenómeno de grande preocupação uma vez que o problema se ampliou (Aymerich et al., 2022).
Os surtos de doenças infeciosas causam um aumento inesperado na morbilidade e na mortalidade, que por sua vez provoca um aumento da procura das unidades de saúde. O rápido aumento de doentes reduz drasticamente a proporção de profissionais de saúde por paciente, traduzindo-se numa carga de trabalho crescente. Os profissionais de saúde sofrem de fadiga física e mental porque as jornadas de trabalho são aumentadas não tendo o tempo suficiente para dormir, descansar e recuperar (Chigwedere et al., 2021). O burnout, parece ter estado associado ao aumento das taxas de hospitalização no decurso da pandemia e ao consequente aumento das jornadas de trabalho, principalmente entre os profissionais da linha de frente (Chutiyami et al., 2022). Há evidências que os profissionais de saúde sofrem um agravamento do burnout ao longo do tempo (Ghahramani et al., 2021).
O burnout tem consequências negativas a nível pessoal, organizacional e nos cuidados prestados e está associado a uma maior probabilidade de erro, atendimento abaixo do nível desejado e menor satisfação profissional. No plano organizacional aparece associado a taxas mais elevadas de absentismo, desgaste, rotatividade de pessoal e redução da produtividade (Tement et al., 2021). A exposição prolongada aos desafios da COVID-19 também pode levar a sintomas inespecíficos de mal-estar como insónia, dor inexplicável, palpitações, falta de ar, tremores, náuseas, alterações de humor (Annaloro et al., 2021). Nos profissionais de saúde, expostos à pandemia de COVID-19 em todo o Mundo, foi encontrada uma prevalência significativa de sintomas preocupantes numa ampla gama de problemas de saúde mental. Trata-se de uma população especialmente vulnerável e já mais propensa a problemas de saúde mental do que a população em geral (Aymerich et al., 2022). Durante crises como uma pandemia, os profissionais de saúde têm as suas relações com os membros da família afetadas e isso predispõe a doença mental (Nowrouzi-Kia et al., 2021).
Dentro dos profissionais de saúde, os enfermeiros são a classe profissional mais exposta ao burnout (Annaloro et al., 2021). Nas diferentes áreas da saúde mental, a evidência mostra, que os enfermeiros têm sofrido um impacto da pandemia de COVID-19 marcadamente mais intenso que os médicos (Kunz et al., 2021). Várias intervenções demonstraram ser eficazes na prevenção ou redução dos níveis de burnout entre os profissionais de saúde, tanto a nível individual quanto a nível organizacional ou estrutural (Gualano et al., 2021). Os profissionais de saúde (enfermeiras, médicos, auxiliares de saúde e outros) enfrentaram vários desafios na área da saúde mental durante a pandemia de COVID-19 pelo que, se recomendam, intervenções e políticas de saúde dirigidas especificamente a estes profissionais em situações de crises semelhantes no futuro (Chutiyami et al., 2022).
Método
Foi realizada uma pesquisa na PubMed, que é um mecanismo de busca para acesso gratuito à base de dados MEDLINE de citações e resumos da investigação biomédica, desenvolvida pela National Library of Medicine (NLM), utilizando os termos MeSH: COVID-19, burnout, metanalysis e review selecionando-se os artigos publicados no espaço de um ano entre Maio de 2021 e Maio de 2022. Para a estruturação desta análise aplicou-se o modelo PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-analyses) considerado como indispensável para elaborar uma revisão sistemática ou meta-análise (Liberati et al., 2009).
Critérios de inclusão e exclusão
Os critérios de inclusão foram serem meta-análises ou artigos de revisão sobre Covid-19 e burnout, terem sido realizados no âmbito de profissões da saúde, estarem redigidos em língua inglesa e terem sido publicados no intervalo de tempo definido. Foram critérios de exclusão: artigos duplicados, artigos escritos em outras línguas que não a inglesa, artigos de natureza diversa nomeadamente artigos de opinião, artigos baseados em casos clínicos e artigos não relacionados com a temática em estudo.
Resultados
A pesquisa efetuada resultou na identificação de 30 artigos e na escolha de 23 que respeitavam todos os critérios de inclusão e de exclusão. A figura 1 representa o fluxograma da seleção dos estudos.
Aspetos gerais
A frequência de surtos de doenças infeciosas aumentou ao longo do século passado devido a vários fatores como o crescimento populacional, a maior interconexão mundial, a adaptação e mudança dos agentes microbianos, o desenvolvimento económico, as mudanças na agricultura e as alterações climáticas. As doenças infeciosas que causaram epidemias nas últimas duas décadas incluem a síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003, o vírus Influenza A subtipo H1N1 em 2009, o coronavírus da Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS-CoV) em 2012, o vírus Ébola em 2014, o vírus influenza A subtipo H7N9 e a Síndrome Respiratória Aguda Grave do coronavírus 2 (SARS-CoV-2) em dezembro de 2019, que resultou na pandemia de COVID-19 (Chigwedere et al., 2021). Ao longo da história, observou-se que durante uma crise sanitária, as equipes de saúde tendem a mobilizar-se mais ativamente, fazendo com que se esqueçam do risco de transmissibilidade da infeção. Por exemplo, durante o surto da SARS em 2003, 18% a 57% dos profissionais de saúde apresentaram sérios problemas emocionais e sintomas psiquiátricos durante e após o acontecimento. Em 2015, durante a epidemia de MERS-CoV na Coreia do Sul, depressão e stress foram observados entre os profissionais de saúde. Os profissionais da linha de frente demonstraram estar em maior risco de desenvolver Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT). Há também estudos que mostram níveis aumentados de stress, depressão, ansiedade e PSPT entre profissionais que se prolongaram mesmo após a situação de crise (Medeiros et al., 2021). O aumento dos problemas de saúde mental foi massivamente documentado durante a pandemia de COVID-19 tendo a sua prevalência variado entre 20 a 36%. Os trabalhadores da saúde apresentaram uma maior prevalência de stress psicofisiológico do que a população geral (Sousa et al., 2021). Nas epidemias a prática clínica habitual é significativamente alterada, muitos profissionais são afastados dos seus locais de trabalho habituais e redirecionados para trabalhos na linha da frente onde o risco é maior ao mesmo tempo em que precisam de se adaptar a diretrizes que mudam constantemente. A literatura publicada durante as epidemias de SARS e MERS há mais de uma década sugere que os profissionais de saúde apresentam, por tudo isso, um risco aumentado de sofrer de perturbações mentais em situações de epidemias (Aymerich et al., 2022).
Os profissionais de saúde que trabalharam na linha de frente ou tiveram contacto com casos confirmados foram mais propensos a apresentar burnout quando comparados com profissionais de saúde que não estiveram na linha de frente ou que não tiveram contato direto com casos confirmados. Os que estiveram mais tempo em quarentena apresentaram maior propensão para o burnout. Altos níveis de ansiedade implicam altos níveis de burnout. Níveis baixos de apoio organizacional, stress no trabalho e recursos precários estão diretamente relacionados com o burnout sendo que este se correlaciona negativamente com a autoeficácia, a resiliência e o apoio familiar (Chigwedere et al., 2021). O aumento na taxa de burnout, nas dimensões de exaustão emocional, despersonalização bem como uma redução na realização pessoal foram documentados em numerosos estudos. Os principais fatores de risco associados ao burnout foram ansiedade, depressão e insónia, bem como algumas variáveis socio-demográficas como ser mulher ou enfermeira ou trabalhar diretamente com pacientes COVID-19. Os principais fatores de proteção foram a resiliência e o suporte social (Lluch et al., 2022).
A preparação inadequada para trabalhar durante uma grave pandemia foi determinante. A maioria dos profissionais de saúde afirmaram ter ficado sobrecarregados e afetados física e emocionalmente. Tiveram de enfrentar os desafios colocados por vários tipos de emoções como a angústia que se desenvolveu durante a pandemia, o medo, o estigma, a ansiedade e a depressão. Muitas vezes não existia o equipamento necessário e a informação sobre a pandemia era insuficiente. O esgotamento devido ao trabalho atingiu enormes proporções. A maioria dos prestadores de cuidados de saúde em todo o mundo esteve sobrecarregado com a carga de trabalho devido à insuficiência do pessoal de saúde e à rapidez de disseminação da doença enquanto se apercebiam das desigualdades dentro do sistema de saúde. Mais de metade dos trabalhadores da linha da frente sofreram de esgotamento (Koontalay et al., 2021).
Xiong et al. (2022) encontrou problemas de saúde mental mais intensos em trabalhadores do sexo feminino, enfermeiros e profissionais de saúde trabalhando na linha da frente especialmente nos serviços de doenças infeciosas e nas unidades de cuidados intensivos, o que está de acordo com o seu nível de exposição e proximidade com doentes com COVID-19. As evidências destacam grupos específicos com maior risco de desenvolver problemas de saúde mental como são por exemplo os que tem contacto com pacientes infetados, ou que têm filhos menores a cargo, os que são mais jovens, aqueles que tem menos apoio ou os que passam mais tempo em quarentena. Os pontos na linha do tempo em que o risco pode aumentar também estão bem definidos sendo maiores na fase inicial de resposta ou nas situações de quarentena (Waring & Giles, 2021). A prevalência de burnout foi maior entre as mulheres e nos profissionais mais jovens. O fraco apoio social, menos anos de experiência (abaixo dos 5 anos), mais horas de trabalho em áreas de isolamento, recursos insuficientes, cargas de trabalho elevadas e pouco treino especializado foram fatores de risco significativos para burnout. Entre os profissionais de saúde, os enfermeiros e os trabalhadores da linha de frente estiveram em maior risco de desenvolver burnout do que os outros profissionais de saúde (Chutiyami et al., 2022). Relativamente aos profissionais da linha de frente, ter um problema de saúde diagnosticado e ter contato direto com pessoas infetadas foram fatores de risco estatisticamente independentes para o burnout tal como a morte de parente ou amigo durante o período de pandemia (Hannemann et al., 2022).
A resiliência oferece uma proteção significativa relativamente ao burnout relacionado com o trabalho. A resiliência pode ser definida como um conglomerado de características (traços) como autoeficácia, senso de humor, paciência, otimismo e fé ou como uma variável de processo relacionada com a capacidade de recuperar do stress. Outro fator protetor identificado para o burnout foi o apoio social especialmente nas situações de alto risco de estigmatização, medo de ser infetado, aumento da carga de trabalho, pertencer a um grupo de risco e de preocupação com os familiares próximos. (Hannemann et al., 2022).
No sofrimento psicológico, o medo parece ser o problema mais comum identificado entre os trabalhadores da saúde que estiveram ao serviço durante a pandemia de COVID-19 na Ásia seguido de perto pelo burnout, ansiedade, depressão e finalmente o stress. O burnout foi o segundo problema mais identificado. Uma possível explicação pode ser as jornadas de trabalho longas e irregulares bem como a elevada carga de trabalho (Ching et al., 2021). Deve-se notar que o SARS-CoV-2 atingiu fortemente toda a força de trabalho da saúde, que enfrentou um enorme e repentino aumento de carga de trabalho, num cenário marcado pela incerteza, tendo ficado claro que o burnout representa apenas uma das possíveis consequências para a saúde mental. De facto, várias revisões focaram-se noutros resultados de saúde mental entre os profissionais de saúde. Por exemplo a prevalência de depressão, ansiedade e stress pós-traumático, acabou sendo notavelmente alta, mas não atingindo metade dos trabalhadores. Curiosamente, tanto o stress quanto a insónia atingiram uma prevalência comparável à do burnout (Gualano et al., 2021).
Os enfermeiros e o burnout durante a pandemia
Os enfermeiros estão em contacto muito próximo com os doentes e, portanto, têm um alto risco de contraírem infeção e a doença COVID-19. Devido a este risco sofrem de medo e ansiedade que podem diretamente conduzir a burnout. A ansiedade tem um efeito potenciador sobre o burnout e um estudo também mostrou que por cada paciente adicional, na carga de trabalho dos enfermeiros, há um aumento de 23% na probabilidade de sofrer de burnout (Zarei et al., 2022). Os enfermeiros foram mais afetados psicologicamente pelas consequências da pandemia. Vários estudos têm relatado que os enfermeiros sofreram maior exaustão e stress, mais sintomas depressivos e sentiram menor realização no trabalho quando comparados com os médicos e, portanto, parecem ter sido especialmente vulneráveis. Nas diferentes áreas da saúde mental, a evidências mostram que os enfermeiros têm sofrido um impacto da pandemia de COVID-19 marcadamente mais intenso que os médicos (Kunz et al., 2021). Relativamente ao burnout, os enfermeiros aparecem na primeira posição seguidos pelos médicos e depois pelos restantes profissionais de saúde (Ching et al., 2021).
Galanis et al. (2021) discutem os fatores de risco para o burnout nos enfermeiros durante a pandemia. Segundo os autores os enfermeiros mais jovens são mais propensos a apresentar burnout durante a pandemia de COVID-19 do que enfermeiros mais velhos e isso pode estar relacionado com o facto de os mais jovens estarem menos familiarizados com a infecção, as medidas de controlo e proteção e serem menos experientes no manuseio de eventos extremos como acontece numa pandemia. Provavelmente os enfermeiros mais jovens são mais vulneráveis diante de situações difíceis como pacientes que sofrem e morrem de COVID-19, especialmente em casos onde os profissionais de saúde não podem oferecer os cuidados de saúde padrão devido a fortes limitações. Outro fator que influencia o burnout nos enfermeiros é a solidão. A solidão é ampliada nos casos em que os enfermeiros têm que se separar de suas famílias e ficar em hospitais designados, como aconteceu em Wuhan na China. O apoio familiar e social são uma arma essencial para os enfermeiros enfrentarem o sofrimento psíquico durante os surtos epidémicos. Uma revisão sistemática constatou que a falta de apoio social é um fator de risco crucial para a desenvolvimento de problemas psicológicos em profissionais de saúde durante desastres.
Os principais fatores de risco associados ao burnout nos enfermeiros (despersonalização e exaustão emocional) são o sexo, idade, escolaridade, variáveis relacionadas ao trabalho e fatores físicos e mentais. Os níveis de exaustão emocional são maiores no sexo feminino e o de despersonalização no sexo masculino (Annaloro et al., 2021). Durante a fase inicial da pandemia, o burnout foi maior entre os enfermeiros, especialmente na subescala da despersonalização, devido às longas jornadas de trabalho, nas quais os mais afetados foram os jovens, comparativamente com os profissionais mais velhos e experientes (Chutiyami, 2022).
Fatores ocupacionais afetaram em grande medida o burnout dos enfermeiros durante a pandemia de COVID-19. Enfermeiros que trabalhavam em situação de alto risco ambiental, por exemplo em hospital designado COVID-19, numa unidade COVID-19 ou numa unidade de cuidados intensivos apresentaram maiores níveis de burnout, assim como enfermeiros que desenvolveram atividades em hospitais com recursos materiais e humanos inadequados e insuficientes (Galanis et al., 2021). O burnout é um problema antigo e significativo na enfermagem de emergência e está associado a taxas de rotatividade mais altas do que noutras especialidades dos cuidados de saúde. Os enfermeiros de emergência são altamente suscetíveis ao esgotamento devido à exposição contínua a eventos traumáticos, horários de trabalho variados, violência dirigida aos funcionários e nos últimos tempos também devido aos stressores relacionados com a pandemia de COVID-19 (Phillips et al., 2022). Assim, as chefias de enfermagem e as administrações hospitalares devem prestar mais atenção aos profissionais de saúde, - especialmente aos enfermeiros - e desenharem planos de prevenção a longo prazo, reduzirem os turnos de trabalho e identificarem as fontes de stress procurando a sua minimização não só para os acontecimentos em curso, mas também para futuras pandemias que venham a ocorrer (Zareei et al., 2022).
Os médicos e o burnout durante a pandemia
Durante a pandemia de COVID-19, o peso do burnout tornou-se ainda mais evidente nos médicos, que vêm enfrentando de forma continuada falta de recursos, turnos mais longos e perturbações cada vez mais frequentes do equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Todos esses fatores aumentam o burnout. Estudos internacionais apontam para as especialidades da linha da frente e para os profissionais de cuidados de saúde primários como os mais afetados. As altas taxas de burnout nos cuidados de saúde primários podem estar relacionadas com os recursos insuficientes no trabalho, salários mais baixos e menos oportunidades de desenvolvimento na carreira. O burnout médico nos cuidados de saúde primários tem sido descrito como um problema geral afetando a qualidade dos cuidados ao paciente e a sustentabilidade dos cuidados de saúde. A investigação tinha já destacado problemas crescentes de stress crónico e o burnout, que ameaçam a saúde mental dos médicos que trabalham em cuidados de saúde primários, isto ainda antes de a pandemia eclodir. Nos estudos com vários grupos de profissionais de saúde, os médicos dos cuidados de saúde primários apresentaram maiores níveis de stress pessoal percebido e piores níveis de burnout. As diferenças de género foram significativas com as mulheres clínicas gerais a apresentarem maiores níveis de stress, de sobrecarga e de burnout. No que respeita a perturbações físicas os clínicos gerais relataram um aumento de enxaquecas e dores de cabeça, cansaço e exaustão, distúrbios do sono, aumento do consumo de alimentos, de bebidas alcoólicas e do tabagismo (Jefferson et al., 2022).
Os registos eletrónicos e o burnout durante a pandemia
Kruse et al. (2022) discutem o papel dos registos médicos eletrónicos no burnout dos médicos durante a pandemia. As ferramentas digitais foram identificadas como um fator de agravamento deste problema por implicarem horas excessivas de trabalho. Segundo os autores as horas gastas em trabalhos de documentação e processos de natureza administrativa são responsáveis por uma sensação de perda de autonomia, perda de controlo da agenda, fadiga cognitiva e mau relacionamento com os colegas. A baixa usabilidade, ou seja, uma informática pouco amigável na ótica do utilizador, o fluxo de trabalho e o tempo de emissão de documentação são os principais factores implicados no burnout. Se os profissionais e os administradores podem controlar o fluxo e o tempo de emissão da documentação, só os fornecedores de plataformas informáticas podem torná-las mais amigáveis na ótica do utilizador. As intervenções capazes de diminuir a sobrecarga devida ao uso de ferramentas digitais são o treino, a redução do tempo e das tarefas relacionadas com a emissão de documentação, equipes de atendimento ampliadas e melhoria da qualidade dos processos nos fluxos de trabalho.
Desempenho e burnout durante a pandemia
Nowrouzi-Kia et al. (2021) estudaram o impacto da pandemia no desempenho dos profissionais de saúde. Trabalhar durante uma pandemia tem efeitos deletérios sobre desempenho laboral e a saúde mental dos profissionais de saúde. Numa revisão sistemática identificaram nove fatores que tiveram impacto no desempenho laboral e na saúde mental durante a pandemia: depressão, ansiedade, apoio inadequado, stress ocupacional, produtividade no trabalho, adequação do local de trabalho, preocupações financeiras, medo da transmissão e burnout. Como soluções para os problemas propuseram o acesso facilitado a serviços de saúde mental e de saúde ocupacional e um ambiente de trabalho que promova uma cultura de saúde e segurança psicológica. O desempenho no trabalho deve ser promovido através de uma estratégia que enfatize a prevenção e que identifique atempadamente os fatores de risco para a saúde mental e o desempenho profissional.
A prevenção do burnout pandémico
Os estudos de epidemias anteriores já tinham mostrado o papel fundamental que as organizações e os órgãos de saúde pública desempenham na promoção de um enfrentamento adaptativo, tendente a reduzir o sofrimento emocional e psicológico causado nos trabalhadores da saúde e definido inclusive os grupos de maior risco. Estratégias de enfrentamento adequadas reduzem os níveis de burnout (Waring & Giles, 2021). Os profissionais de saúde devem ter um acesso facilitado a serviços de saúde mental e de saúde ocupacional e um ambiente de trabalho que promova uma cultura de saúde e segurança psicológica através de uma estratégia que enfatize a prevenção e que identifique os fatores de risco para a saúde mental (Nowrouzi-Kia et al., 2021). Algumas boas práticas identificadas na literatura capazes de reduzir o burnout são as férias, o privilegiar da prestação de cuidados de saúde em detrimento da administração dos mesmos, a redução das tarefas burocráticas que ocupam um tempo muito significativo, o agendamento de sessões em pequenos grupos para ajudar emocionalmente os prestadores e a realização de exercícios regulares para controlar o stress (Kruse et al., 2022). Num mesmo sentido apontam Waring e Giles (2021) que propõem cursos de curta duração e de participação voluntária sobre resiliência e estratégias adequadas de enfrentamento dos problemas como formas de ajudar a reduzir o burnout e as perturbações psicológicas nos trabalhadores da saúde. O exercício físico também proporciona melhorias psicológicas e cognitivas, não só no humor como na saúde em geral. Práticas integrativas mente-corpo como a meditação mindfulness e o ioga mostraram-se eficazes na redução do sofrimento psicológico (Sousa et al., 2021). A criação de planos de prevenção, a redução dos turnos de trabalho e a identificação das fontes de stress podem minimizar não só os acontecimentos em curso, mas também ajudar em futuras pandemias que venham a ocorrer (Zareei et al., 2022).
Maiores vulnerabilidades implicam uma atenção mais cuidadosa no sentido de proporcionar um acesso fácil a aconselhamento ou psicoterapia, bem como ao tratamento farmacológico quando necessário. As estruturas de saúde devem dotar-se de capacidades para garantirem jornadas de trabalho adequadas e protocolos operacionais precisos assim como programas de deteção precoce de problemas de saúde mental em hospitais e noutras áreas dos sistemas de saúde que enfrentam uma alta pressão de internamentos de doentes com COVID-19 (Kunz et al., 2021). A saúde mental dos profissionais de saúde não deve ser subestimada. Medidas efetivas devem ser implementadas para prevenir e aliviar a deterioração da saúde mental nos profissionais de saúde (Aymerich et al., 2022).
Discussão
A pandemia teve um enorme impacto em todo o Mundo, provocando milhões de doentes e de mortos num curto espaço de tempo. Os sistemas de saúde foram surpreendidos com uma repentina e enorme avalanche de doentes para a qual não estavam preparados. Os profissionais de saúde para além de serem um grupo de risco para o COVID-19 pela proximidade com os doentes viram-se, tal como já tinha acontecido em epidemias anteriores, confrontados com um aumento muito significativo do seu sofrimento psicológico. Muitas vezes mal preparados e com uma escassez de materiais e de recursos, sofreram em resultado do enorme afluxo de doentes, um aumento das suas jornadas de trabalho ao mesmo tempo que se confrontavam com o medo e a ansiedade, temendo contrair a doença ou levarem-na para junto dos seus familiares.
Obviamente os problemas de saúde mental, já mais prevalentes nestes profissionais do que na população em geral, tiveram um aumento extraordinário. Também o burnout, um problema velho e bem conhecido nas profissões de saúde, acabou por ganhar uma magnitude nunca antes vista. Mais de metade dos trabalhadores da saúde em todo o Mundo sofreram de burnout. Nada disto deveria ser surpresa. O aumento destes problemas que afetam não apenas a saúde dos profissionais mas também o seu desempenho e obviamente acabam influenciando o funcionamento dos serviços de saúde, são fenómenos bem documentados pelos estudos de epidemias anteriores. Os grupos de maior risco são conhecidos, os fatores de risco mais comuns estão perfeitamente identificados e as formas de prevenção e intervenção, tanto ao nível individual, como organizacional e estrutural são bem conhecidos dos especialistas, quer da área da saúde mental, quer da saúde pública. No entanto, muitas vezes e em muitos lugares, os cuidados na área da saúde mental dos profissionais de saúde ficaram esquecidos, tiveram uma implementação tardia e reduzida ou foram mesmo adiados. Não foi dada a devida atenção a estes problemas que tantas vezes se prolongam no tempo.
Será importante que se faça uma profunda reflexão sobre o que aconteceu e ainda está a acontecer. Novas políticas de saúde deverão ser estudadas, planeadas e desenvolvidas com o objetivo de poderem serem rapidamente implementadas, em situações de crise semelhantes, que venham a ocorrer no futuro.