As pesquisas em saúde pública vêm apresentando mudanças nos últimos anos, aumentando o interesse por abordagens multidimensionais dos determinantes de saúde e doença, focando na interação de fatores biológicos, sociais e psicológicos (Lindmark et al., 2011; Watt, 2007). Por esse motivo, o interesse por diversos modelos conceituais está aumentando na tentativa de consolidar a integração desses fatores, dentre eles está o modelo salutogênico proposto por Antonovsky (1979). A Salutogênese é um conceito da medicina social para designar os fatores que promovem a saúde e o bem-estar, propondo um modelo mais complexo focado na busca da razão pela qual alguém permanece saudável mesmo em situações adversas e estressantes, e não nos fatores que causam a doença (Antonovsky, 1979).
O construto central da salutogênese é o senso de coerência (SOC - sense of coherence), que reflete a capacidade adaptativa do ser humano ao estresse e de lidar e se adaptar a adversidades, é uma característica da personalidade do indivíduo capaz de proporcionar proteção. O SOC consiste em uma orientação global no sentido de ver a vida estruturada, manejável e com sentido emocional. O grau de coerência do indivíduo justifica o estado em que se encontra e é resultado das seguintes competências: capacidade de compreender a realidade (compreensibilidade), a percepção do potencial de manipular ou solucionar determinada situação (maneabilidade) e o significado que se dá a esta situação (significância) (Antonovsky, 1993).
Quanto maior o SOC, mais efetivamente os indivíduos são capazes de enfrentar as dificuldades da vida e, portanto, manter a própria saúde (Antonovsky, 1979). Essa hipótese foi abordada em uma revisão sistemática (Eriksson & Lindstrom, 2006) e existem indícios de que SOC apresenta uma relação positiva com os comportamentos adaptativos que podem minimizar a gravidade da doença e influenciar os hábitos que interferem diretamente na saúde (Lindmark et al., 2011).
Alguns resultados de pesquisas sobre a relação entre SOC e os comportamentos em saúde mostraram que um maior SOC esteve associado com hábitos nutricionais mais equilibrados em escolares (Tilles-Tirkkonen et al., 2015), com a melhora de comportamentos em saúde de pacientes com doença cardíaca após o tratamento da doença (Silarova et al., 2014) e que adolescentes com um maior SOC usam medicamentos de forma mais consciente, não apresentam o hábito de fumar, consomem bebidas alcoólicas de maneira reduzida e praticam atividades físicas de forma mais frequente do que aqueles com menor SOC (Coutinho & Heimer, 2014) .
Além de o SOC estar associado a hábitos mais favoráveis de saúde geral, estudos têm demostrado que o mesmo ocorre no que se refere à saúde bucal, como maior frequência de visitas ao dentista por motivos preventivos, maior frequência de escovação e menor consumo diário de produtos com adição de açúcar (Bernabe et al., 2012; Freire et al., 2001; Lindmark et al., 2011).
No entanto, poucos estudos investigaram a relação do SOC materno e os comportamentos em relação à saúde bucal de seus filhos (Silva et al., 2011; Elyasi et al., 2018; Freire et al., 2002; Perazzo et al., 2017; Qiu et al., 2013). Estudos brasileiros foram realizados com adolescentes e mostraram que o maior SOC materno esteve associado com visitas ao dentista por motivos preventivos (Silva et al., 2011; Freire et al., 2002). Apenas três estudos foram realizados com pré-escolares, sendo um na China, um no Canadá e um no Brasil (Elyasi et al., 2018; Perazzo et al., 2017; Qiu et al., 2013). O estudo chinês não verificou associação entre o SOC materno e os comportamentos em saúde bucal, mas mostrou que o maior SOC dos avós, que são um pequeno grupo de cuidadores na China, estava relacionado com a menor frequência de alimentos doces entre as refeições. Porém, deve-se notar que o número de avós cujo SOC estava relacionado aos hábitos de ingestão de alimentos açucarados representa uma pequena parcela da amostra total do estudo (Qiu et al., 2013). No que se refere ao estudo brasileiro, o maior SOC materno esteve relacionado com o fato de já ter levado seu filho ao dentista (Perazzo et al., 2017). O estudo com pré-escolares canadenses também verificou que mães que tinham maior SOC levavam mais os filhos ao dentista, bem como consumiam menos bebidas e alimentos açucarados (Elyasi et al., 2018).
A influência materna sobre os comportamentos e condições em saúde bucal de seus filhos tem sido demonstrada por alguns autores, sugerindo um efeito de modelagem (Hartwig et al., 2018; Mohebbi et al., 2008). Além disso, fatores sociais e psicológicos da mãe podem influenciar a condição de saúde bucal da criança (Pinto et al., 2017; Goettems et al., 2012; Machry et al., 2013). Considerando esses aspectos e a possibilidade de que o SOC pode ser um recurso para promoção de saúde, o presente estudo teve como objetivo verificar a relação entre SOC materno e os comportamentos relacionados com a saúde bucal de pré-escolares residentes na zona urbana da cidade de Pelotas/RS.
Método
Participantes
Um estudo transversal foi realizado com crianças de 2 a 5 anos de idade e suas mães, na Campanha Nacional de Multivacinação contra a poliomielite, ocorrida em agosto de 2015, em 12 Unidades Básicas de Saúde da área urbana da cidade de Pelotas/RS sorteadas aleatoriamente. De acordo com informações fornecidas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), há pouco diferencial de uso entre os diferentes estratos sociais e 95% do público-alvo foram imunizados nesta campanha.
A cidade de Pelotas está localizada na região sul do Rio Grande do Sul, a cerca de 260 km de Porto Alegre, capital do estado. O município possui uma população de 328.275 habitantes. Destes, aproximadamente 15.250 crianças possuem entre 2 e 5 anos de idade e 93,3% da população vive na zona urbana da cidade. Com base nessas informações e considerando que este estudo fez parte de um estudo maior que investigou outros desfechos, o cálculo da amostra considerou todos os desfechos estudados e se baseou no desfecho que necessitava do maior tamanho amostral, usando como referência as prevalências de condição bucal das crianças do estudo realizado em 2009 na cidade de Pelotas (Goettems et al., 2012). Verificou-se que a maior amostra necessária foi para a prevalência de cárie (39%) e considerou-se margem de erro de até 5%, intervalo de confiança de 95%, poder de 80%, efeito do desenho de 1,2 e acrescentou-se 10% para eventuais perdas e recusas. Assim, obteve-se um número total mínimo de 472 díades mãe-filho.
A amostra foi selecionada através de um processo por conglomerado em duplo estágio: as UBS foram utilizadas como primeiro ponto de amostragem e os pares mãe-filho em um segundo estágio. A zona urbana do município é dividida em 5 Distritos Sanitários: Três Vendas I, Três Vendas II, Centro, Fragata e Areal/Laranjal (Lei Municipal Nº 6.033 de 18 de Setembro de 2013), e cada região possui UBS que são responsáveis pela vacinação das pessoas que vivem na área. De acordo com a SMS, na zona urbana, as UBS que possuem consultórios odontológicos estão igualmente distribuídas nas 5 regiões, totalizando 33 UBS. Foi realizado um sorteio aleatório ponderado destas UBS, considerando a expectativa de comparecimento de crianças em cada local com base no número de crianças vacinadas em anos anteriores nesses locais.
No segundo momento, a seleção das díades mãe-filho foi de acordo com a ordem de chegada na UBS no dia da Campanha de Vacinação. Para evitar viés de seleção, parentes imediatos (irmãos ou crianças que vivem na mesma casa) foram excluídos , sendo selecionada a participar do estudo a criança que estava primeiro na fila.
Para inclusão no estudo, as crianças deveriam: Possuir entre 2 e 5 anos completos no momento do estudo e estar acompanhadas da mãe. Foram excluídas do estudo irmãos ou crianças que vivem na mesma casa.
Procedimento
Para a coleta de dados foi realizada uma entrevista com um questionário estruturado e pré-testado, que foi aplicado por estudantes de odontologia que passaram por um treinamento teórico e receberam um manual com instruções sobre a logística do levantamento e como a entrevista deveria ser realizada.
Uma equipe composta por um examinador (alunos de pós-graduação que realizaram os exames clínicos, variáveis utilizadas em outros trabalhos), um ou dois entrevistadores (de acordo com a expectativa de comparecimento das UBS) e um auxiliar, que orientou o fluxo das díades mãe-filho, estavam presentes em cada uma das unidades no dia da coleta.
Estudantes de odontologia foram treinados para realização das entrevistas. Inicialmente foi realizado um treinamento teórico, com duração de duas horas, no qual foram repassados os critérios de inclusão e exclusão do estudo, bem como o questionário para o esclarecimento de eventuais dúvidas. Um manual de instruções sobre a logística e o questionário foi fornecido aos graduandos.
Previamente, o questionário foi testado para verificar a compreensão das questões, estimar o tempo de execução da entrevista, identificar problemas com o questionário e testar a organização final do trabalho de campo. Este foi testado com mães de crianças em idade pré-escolar que vieram em busca de atendimento odontológico na Faculdade de Odontologia de Pelotas.
Material
Os comportamentos relacionados com a saúde bucal (ingestão de açúcares, higiene bucal e uso de serviços odontológicos) das crianças foram designados como variáveis de desfecho. Para avaliar a ingestão de açúcares entre as refeições foram realizadas duas perguntas, uma sobre frequência de ingestão de alimentos doces entre as refeições e a outra sobre frequência de ingestão de bebidas doces entre as refeições, tendo como opções de respostas para ambas as perguntas: (0) nunca; (1) menos de uma vez ao dia; (2) uma vez ao dia; (3) duas vezes ao dia; (4) três vezes ao dia ou mais. Cada pergunta foi posteriormente dicotomizada (< 3 vezes ao dia ou ≥ 3 vezes ao dia)
O hábito de higiene bucal foi coletado utilizando duas perguntas: se os dentes da criança já foram escovados (sim ou não) e de que forma essa escovação ocorria (0) os pais/responsáveis escovam; (1) a criança escova, mas o responsável ajuda; (2) a criança escova sozinha, que foram posteriormente agrupadas em uma única variável e divididas em duas categorias (0) os responsáveis /criança com auxílio; (1) a criança sozinha/nunca escovou.
A utilização de serviços odontológicos foi investigada utilizando as seguintes perguntas “seu filho(a) já consultou alguma vez com o dentista? categorizada (0) sim e (1) não.
O SOC materno foi avaliado pela versão curta da escala SOC (SOC-13), que consiste em 13 itens e opções de resposta em uma escala do tipo Likert. O SOC-13 foi validado para uso em mães de adolescentes no estado de Goiás, Brasil (Freire et al., 2001) e foi submetido a uma nova proposta de adaptação transcultural, mostrando-se consistente e confiável para a população de mães pertencentes a diferentes estratos sociais (Bonanato et al., 2009).
As modificações consistiram de uma simplificação no texto e uma mudança na escala de classificação a partir de uma escala de Likert de sete pontos com pontos de extremidade descritivos para uma escala de Likert de cinco pontos com todas as respostas descritas (Bonanato et al., 2009). Os itens formulados negativamente foram pontuados de forma inversa, de modo que os escores de cada pergunta são somados para obter um valor absoluto correspondente ao SOC de cada indivíduo. Assim, o escore final pode variar de 13 a 65, em que os valores mais altos correspondem a uma maior capacidade de adaptação ao estresse. Para o cálculo da pontuação total, os participantes com valores em falta em mais de três perguntas foram descartados da amostra. Quando havia três ou menos valores em falta, estes foram substituídos pelo valor médio dos itens SOC (Suominen et al., 2001). Posteriormente, o SOC foi dicotomizado a partir de sua mediana (Bonanato et al., 2009), sendo classificado em menor quando apresentou valor inferior à mediana ou maior SOC quando apresentou valor igual ou maior que a mediana.
As características socioeconômicas (renda familiar, escolaridade materna e tipo de estrutura familiar) e a idade materna, bem como a saúde mental materna foram utilizadas como variáveis independentes e de controle. A renda familiar foi coletada de forma ordinal e categorizada em quintis de renda (sendo o primeiro quintil o mais rico), a escolaridade materna foi coletada em anos de estudo e categorizada em ≤ 4 anos; 5 - 8 anos; 9 - 11 ou ≥12, a idade materna foi coleta em anos e categorizada em < 20 anos; 20 - 29 anos; 30 - 39 anos ou ≥ 40 anos e se a família era do tipo nuclear (que vivem com pai e mãe) ou não nuclear (que vivem com um dos pais/outros). A saúde mental materna foi avaliada pelo instrumento Self-Report Questionnaire (SRQ-20), o qual foi validado para o Brasil (Mari & Williams, 1986), que possibilita fazer o rastreamento de transtornos mentais comuns como depressão, ansiedade, distúrbios somatoformes (pacientes referem sintomas físicos, mas negam apresentar problemas psiquiátricos) e neurastenia ( transtorno psicológico resultado do enfraquecimento do sistema nervoso central), utilizando 20 questões, que apresentam duas opções de respostas referentes a concordar ou não (escores 1 e 0) com a presença de certas dores ou problemas nos últimos 30 dias. As pontuações podem varias de 0 a 20, sendo que escores ≥ 8 indicam possível presença de transtornos mentais comuns (Mari & Williams, 1986).
Também foram coletadas as variáveis sexo (masculino ou feminino) e a idade da criança (2, 3, 4 ou 5 anos), usadas para caracterizar a amostra.
Análise de Dados
Os dados foram analisados o software Stata 12.0. A análise descritiva incluiu a apresentação de frequências absolutas e relativas das variáveis que caracterizam a amostra e as associações entre as variáveis de desfecho e as variáveis de interesse foram verificadas utilizando testes de qui-quadrado, qui-quadrado para tendência linear e exato de Fisher quando necessário.
Posteriormente, utilizou-se a regressão de Poisson com variância robusta estimando-se a razão de prevalência (RP) e o respectivo intervalo de confiança de 95% (95%IC) para verificar a associação entre as variáveis de desfecho e o SOC materno. Cada desfecho foi ajustado para as seguintes variáveis de controle: renda familiar, idade materna, escolaridade materna, tipo de estrutura familiar e transtornos mentais comuns maternos por serem possíveis fatores confundidores. O nível de significância considerado foi de 0,05.
Resultados
Um total de 925 crianças foram abordadas durante a campanha de vacinação. Destas, 230 crianças foram excluídas do estudo (215 por não estarem com a mãe e 15 por pertencerem à mesma família). Sendo assim, 695 crianças atendiam os critérios de inclusão e foram convidadas a participar do estudo. Destas, 20,1% (n=140) das mães se recusaram a participar do estudo e 3% (n=21) das crianças não permitiram a realização do exame bucal (desfechos coletados para outros estudos), sendo excluídas da amostra.
Participaram do estudo 534 crianças de 2 a 5 anos de idade (média= 3) e suas mães. A maioria das crianças (55,1%) era do sexo feminino e tinha uma família do tipo nuclear (76,6%). As mães tinham em sua maioria de 30-39 anos de idade (44,7%), de 9 a 11 anos de estudo (42,3%) e não apresentavam sintomas de transtornos mentais comuns (70,5%) (Quadro 1). A pontuação total do SOC materno variou de 21 a 62, com uma mediana de 48, uma média de 47,2 e um desvio padrão de 6,3.
A maioria das crianças consumia bebidas doces entre as refeições com frequência igual ou superior a 3 vezes ao dia (55,2) e nunca havia visitado o dentista (68%). A minoria das crianças tinha relatado frequência de ingestão de alimentos doces entre as refeições ≥ 3 vezes ao dia (15,5%) e nunca havia escovado ou escovava sozinho os dentes (19,0%) (Quadro 1).
Na análise descritiva bivariada, os resultados também mostraram que a frequência de ingestão de alimentos doces entre as refeições apresentou associação com a renda familiar, a escolaridade materna, tipo de família, os sintomas de transtornos mentais comuns materno e o SOC materno. A maior frequência de ingestão de bebidas doces entre as refeições foi mais prevalente em crianças do sexo masculino, filhos de mãe com menos de 20 anos, com menor renda familiar e menor escolaridade materna. Além disso, crianças que não tinham o hábito de escovar os dentes ou que realizavam a escovação dentária sozinhas apresentaram associação com renda familiar, escolaridade materna, com sintomas de transtornos mentais comuns da mãe e com o SOC materno. Verificou-se associação entre a não utilização de serviços odontológicos da criança com a idade da criança, renda familiar, escolaridade materna e os sintomas relacionados aos transtornos mentais comuns maternos (Quadro 1).
A análise bruta mostrou associação do menor SOC materno com a maior frequência de alimentos doces entre as refeições e com fato de nunca escovar os dentes ou a crianças escovar sozinha (Quadro 2). Após ajustes para idade materna, renda familiar, escolaridade materna, núcleo familiar, e para transtornos mentais comuns materno, a prevalência de escovar os dentes de forma inadequada (criança sozinha) e de não escovar foi 70% maior nas crianças cujas mães apresentaram um menor SOC do que em crianças de mães com maior SOC (Quadro 2).
Nota: ⱡVariáveis dados perdidos: n < 534. aAvaliação estatística pelo teste de qui-quadrado; bAvalição estatística pelo teste de qui-quadrado tendência linear; cAvaliação estatística pelo teste Exato de Fisher; *p<0,05.
Nota: ¹O senso de coerência foi ajustado para cada desfecho em relação à saúde bucal de forma independente, os ajustes incluíram as variáveis idade materna, renda familiar, escolaridade materna, núcleo familiar e transtornos mentais comuns materno. ²Na análise de regressão de Poisson, "maior SOC" foi definido como o categoria de referência.
Discussão
O presente estudo é um dos poucos que avaliaram a associação entre o SOC materno e os comportamentos relacionados à saúde bucal de pré-escolares. Os resultados encontrados mostram que o SOC materno está associado ao comportamento de escovação dentária de pré-escolares, mesmo depois do ajuste para as variáveis de confundimento. A prevalência de escovar os dentes de forma inadequada (criança sozinha) e de não escovar foi maior nas crianças cujas mães apresentaram um menor SOC. Sabe-se que crianças pré-escolares ainda não possuem destreza motora suficiente para realizar uma adequada higiene bucal de forma independente, sendo assim, a recomendação é de que o responsável por executá-la seja um adulto, geralmente representado pela mãe. Dessa forma, o SOC materno, assim como outros fatores psicossociais maternos parecem afetar negativamente a capacidade da mãe de implementar ou se envolver com certas práticas preventivas importantes para a promoção da saúde bucal de seus filhos (Finlayson et al., 2007).
Estudos têm apontado uma relação entre fatores psicossociais e a escovação dentária dos indivíduos, mostrando que pessoas com maior SOC apresentam resultados mais favoráveis no que se refere a frequência e qualidade de escovação dentária, bem como na motivação para a realização da higiene bucal (Ayo-Yusufet al., 2009; Bernabe et al., 2009). Assim, acredita-se que estes fatores possam também influenciar no cuidado com a higiene bucal dos filhos. Os resultados deste estudo permitem hipotetizar que mães com um maior SOC apresentam uma maior capacidade de enfrentar as diversidades mencionadas anteriormente e, por isso, participam da higiene bucal dos filhos, conforme é recomendado para pré-escolares.
Outros estudos que investigaram a influência do SOC materno na frequência de escovação dentária de seus filhos não encontraram associação (Freire et al., 2002; Qiu et al., 2013). Este foi o primeiro estudo que avaliou a maneira que os dentes de pré-escolares são escovados e encontrou associação com o SOC materno. Neste estudo optou-se por não utilizar a frequência e sim como a escovação ocorre, uma vez que perguntas sobre a frequência de escovação respondidas pelas mães de crianças mostraram desempenho insatisfatório para avaliar o padrão de higiene bucal real, sugerindo que a frequência de escovação por si só não é o melhor preditor de higiene bucal em crianças (Cascaes et al., 2011). Além do mais, é possível que a resposta para a frequência de escovação de três vezes ao dia, opção mais citada em inquéritos de higiene bucal, seja influenciada pela convenção social de que esta é a frequência recomendada.
O SOC também tem sido foco de estudos que investigaram sua relação com outros desfechos em saúde bucal, os quais verificaram que indivíduos com maior SOC apresentaram melhores condições de saúde bucal (Albino et al., 2014; Bernabe et al., 2012; Lindmark et al., 2011; Reddy et al., 2016), melhor percepção de saúde bucal (Reddy et al., 2016) e melhor qualidade de vida relacionada à saúde bucal (Eriksson & Lindstrom, 2006).
Considerando que o SOC, ponto central da teoria salutogênica, é uma característica individual que confere a capacidade de percepção e controle das adversidades, bem como adoção de comportamentos apropriados (Antonovsky, 1979), é possível supor que este atributo materno possa exercer influência nos comportamentos em saúde bucal dos filhos principalmente em pré-escolares que dependem exclusivamente dos responsáveis para garantir o cuidado, enfatizando ainda mais o papel da mãe na saúde bucal dos filhos nesta faixa etária (Saied-Moallemi et al., 2008).
A capacidade de adaptabilidade ao seu ambiente e de enfrentamento das adversidades das mães de pré-escolares favorecem atitudes psicológicas positivas que refletem na adoção ou manutenção de comportamentos saudáveis mesmo diante de eventos estressores ou ambientes socioeconômicos desfavoráveis (Albino et al., 2014). Além disso, tem-se sugerido que SOC materno pode influenciar posteriormente nos hábitos relacionados à saúde bucal das crianças, uma vez que o ambiente familiar tem influência positiva ou negativa sobre a adoção de comportamentos específicos com relação à saúde bucal, pois as crianças adquirem hábitos baseadas nos comportamentos dos pais (Poutanen et al., 2006). Sendo assim, um ambiente familiar favorável poderia incentivar escolhas e estilos de vida saudáveis.
Os resultados do presente estudo também mostraram que o menor SOC materno esteve associado com a maior frequência de alimentos e bebidas doces entre as refeições (3 vezes ou mais) na análise bruta, mas essa associação não se manteve após os ajustes. Este achado é consistente com outros estudos (Freire et al., 2002; Qiu et al., 2013) que também não encontraram relação entre SOC materno e consumo de açúcar, indicando que a frequência de ingestão de alimentos doces dos filhos pode ser influenciada por tantos outros fatores que não o SOC, como questões socioeconômicas (Molina et al., 2010), culturais e até mesmo pelo comportamento de ingestão de alimentos açucarados dos pais (Hartwiget al., 2018; Poutanen et al., 2006). Além disso, conhecer exatamente a ingestão alimentar dos indivíduos é uma tarefa complexa e, os erros cometidos neste tipo de avaliação podem ser categorizados em três grupos: o entrevistado; o entrevistador e o método de inquérito utilizado para coletar. Segundo os autores, dependendo do tipo de erro introduzido, o consumo dietético pode ser subestimado ou superestimado (Fisberg et al., 2009).
Estudos têm demonstrado resultados conflitantes em relação ao SOC materno e a utilização de serviços odontológico dos filhos (da Silva et al., 2011; Freire et al., 2002; Perazzo et al., 2017; Qiu et al., 2013). O estudo de Perazzo et al. (2017), realizado no Brasil, encontrou relação entre o maior SOC materno e a utilização de serviços odontológicos por crianças de 5 anos de idade. Assim como no presente estudo, Qiu et al. (2013) também não encontrou associação entre SOC do cuidador e a utilização de serviços odontológicos de pré-escolares. As divergências nos resultados podem estar relacionadas com as diferenças de idade das populações estudadas, uma vez que as crianças do presente estudo tinham de 2 a 5 anos de idade, enquanto estudos prévios foram conduzidos em crianças com mais idade ou adolescentes e, geralmente, a busca pelo serviço odontológico por pré-escolares é baixa no Brasil (Hartwig et al., 2018). Outra explicação possível são as diferenças nos sistemas de cuidados odontológicos, pois embora tenham ocorrido melhorias, ainda existem barreiras no atendimento odontológico infantil, o que acaba por limitar o acesso deste público, já que não existe um serviço público de saúde bucal específico para a população pediátrica no Brasil.
Neste estudo, somente 32% dos pré-escolares foram ao dentista. Embora a frequência do uso dos serviços de odontologia tenha sido maior em comparação com outros estudos nacionais (Goettems et al., 2012; Machry et al., 2013), ainda assim fica abaixo das frequências de uso em outros países, como na Bélgica (79%) e no Reino Unido (94%) (Leroy et al., 2013; Morris et al., 2006). Isso ocorre porque a maioria dos cuidadores desconhece a importância das consultas odontológicas para a manutenção da saúde bucal das crianças. Outro fato é que existe a crença de que a dentição decídua não é importante por ser temporária e, culturalmente, os pais tendem a levar seus filhos para consultas odontológicas quando da presença de algum problema ou dor (Clementino et al., 2015). A importância do papel materno na utilização dos serviços odontológicos pelas crianças é inquestionável. No entanto, as dificuldades dos pais em lidar com problemas diários também são relatadas como o principal motivo para não comparecer as consultas odontológicas de seus filhos (Hallberg et al., 2008). Embora não tenhamos investigado isto, alguns estudos mostraram que o SOC das mães foi associado ao padrão de atendimento dental de seus filhos, mesmo depois de ajustar para fatores socioeconômicos, mostrando que mães com um maior SOC conseguem levá-los para consultas de rotina, mesmo que a condição socioeconômica não seja tão favorável (da Silva et al., 2011; Freire et al., 2002).
O presente estudo apresenta pontos fortes como uso de escala validada e consistente para verificar o SOC materno e amostra representativa desta população, uma vez que a pesquisa ocorreu durante a campanha nacional de multivacinação e há pouco diferencial de uso entre os diferentes estratos sociais e alta prevalência de comparecimento da população (informação fornecida pela Secretaria Municipal de Saúde de Pelotas). Esse estudo apresenta como limitações o fato de que as variáveis são autorreferidas e estão sujeitas ao viés de querer agradar o entrevistador com respostas socialmente aceitas, como também, a impossibilidade de estabelecer qualquer relação causal, uma vez que se trata de um estudo transversal. A possibilidade de viés de memória também é uma preocupação quando se trabalha com inquéritos. No entanto, o efeito desse viés não é considerado significativo neste estudo, uma vez que a população alvo tinha até 5 anos de idade e, assim, os cuidados dentários e hábitos auto relatados podem ser considerados como uma medida válida (Machry et al., 2013).
A teoria salutogênica pode orientar a compreensão das várias escolhas de vida que as pessoas fazem e caminhos que eles seguem. Os resultados deste estudo reforçam a possibilidade da utilização do SOC materno como estratégia para promoção de comportamentos favoráveis à saúde bucal das crianças. O empoderamento das pessoas na obtenção do controle de suas vidas, e em consequência na adoção de comportamentos mais saudáveis, pode ser uma estratégia importante para a promoção da saúde.
Além disso, acredita-se que os indivíduos desenvolvam o SOC ao longo da vida, principalmente nas primeiras décadas de vida. Melhorar o SOC no início da vida pode ter um impacto favorável no curso de sua vida e no seu bem-estar (Antonovsky, 1996). Alguns estudos investigaram a utilização de métodos de intervenção para melhorar o SOC e o impacto nos comportamentos relacionados à saúde bucal (Ayo-Yusuf et al., 2009; Nammontri et al., 2013). Ayo-Yusuf et al. (2009), em um estudo longitudinal, constataram que, aumentando o SOC dos adolescentes por meio de intervenções, os comportamentos relacionados à higiene bucal (escovar de dentes) também foram melhorados. Diante destes indícios, é possível que intervenções que visem o reforço do SOC das mães melhorem a sua capacidade de lidar efetivamente com demandas relacionadas à saúde de seus filhos. No entanto, isso não dispensa a necessidade de um sistema de saúde bucal mais equitativo que reduza as barreiras aos cuidados.
Assim, o presente estudo encontrou associação entre o maior SOC materno e os comportamentos de escovação dentária mais favoráveis na população estudada. Intervenções para a promoção de saúde bucal das crianças devem considerar a influência dos fatores psicossociais nos comportamentos relacionados à saúde bucal, e abordagens visando o aumento do SOC materno pode ser uma estratégia interessante para melhorar a saúde bucal de pré-escolares. No entanto, pesquisas longitudinais são necessárias para esclarecer melhor as associações entre o SOC os comportamentos relacionados com a saúde bucal, possibilitando estabelecer uma relação de causa e efeito.
Contribuição dos autores
Denise da Rosa: Concetualização; Curadoria dos dados; Investigação; Metodologia; Supervisão; Redação do rascunho original.
Marina Azevedo: Curadoria dos dados; Análise formal, Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Supervisão; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Vanessa da Costa Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição
Marília Goettems: Análise formal, Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição
Maria Laura Bonow: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Metodologia; Administração do projeto; Supervisão; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.