A vida social, com toda sua complexidade estrutural e funcional, pode se revelar em seus aspectos mais fundamentais a partir de fenômenos aparentemente triviais. Isto possibilita pensar no linguarejar cotidiano, expressão cultural que comumente fica à margem das discussões das ciências sociais, como potencial delator de uma realidade social. Neste sentido, é possível abordar o conceito de apelidação, que consiste na renomeação da pessoa, sendo o apelido um produto desta prática. Este fenômeno pode ser pensado como uma modalidade de linguarejar cotidiano que, por sua vez, se encontra fortemente presente nos mais diversos setores da sociedade (Castro, 2018; Minayo-Gomez & Barros, 2002; Pais, 2018).
Os apelidos são instrumentos que permitem uma ampla visualização dos processos de mudança social, porque se baseiam nas propriedades contextuais das situações sociais e, comumente, fornecem pistas sobre os relacionamentos e os papéis dos participantes. De acordo com Holland (1990, p. 268), apelidos são "uma espécie de espelho humano no qual vemos refletida a interseção das vidas individuais e da experiência da comunidade" e, por serem endereçamentos informais, facultativos e, na maioria dos casos, temporários, tendem a carregar perspectivas atualizadas sobre os elementos culturais de uma sociedade (Klerk & Bosch, 1997).
É inegável que o nome jurídico, registrado em cartório, está intimamente ligado à história e identidade do sujeito. Todavia, o apelido também pode comportar um caráter identificador na medida em que opera, segundo Pais (2018, p. 910): “expressando afetos, estigmas, ironias e vivências [...] sinalizando, ainda que metaforicamente, quem habita nele”. Além disso, apelidos podem elucidar: aspectos da aparência (por exemplo, “mago” para se referir a alguém magro); hábitos (por exemplo, “CDF” para se referir a alguém que estuda muito); eventos contextuais (por exemplo, “arregão” para se referir a alguém que se acovardou em alguma situação); dentre outros (Klerk & Bosch, 1997).
Um apelido pode servir como instrumento de solidariedade social, mecanismo mantenedor de fronteira ou até mesmo como meio de opressão e controle social (Holland, 1990). Segundo Castro (2018), os apelidos têm a capacidade de operar enquanto educadores das normas adequadas de conduta e comportamento social. Já na perspectiva de Busse (1983), um apelido pode ser um sinalizador de afeto em uma relação de amizade. Com efeito, são diversas as funções que os apelidos podem exercer.
A prática de apelidação é muito comum na adolescência, momento do ciclo vital caracterizado por inúmeras transformações envolvendo a dimensão biopsicossocial e espiritual do ser humano. Neste sentido, constata-se que o desenvolvimento da identidade ocorre de forma expressiva nesta fase da vida, uma vez que está visceralmente associado à complexidade dos espaços que o adolescente se insere e às relações sociais que estabelece, sobretudo, com os seus pares. Bolaños e Pereira (2019) destacam que o uso de apelidos traduz uma possibilidade de significar as tensões associadas à puberdade, processo que, via de regra, ocorre na adolescência. Apesar dos apelidos se fazerem presente de forma significativa nas relações entre adolescentes, podendo influenciar o modo que elas se estabelecem, poucos são os estudos que se debruçam sobre os processos sociais, incluindo a apelidação, envolvidos na construção identitária durante a adolescência (DeLay et al., 2018; Papalia & Feldman, 2013).
Para Pais (2018, p. 910): “é desafiante desvendar as circunstâncias sociais que contribuem para a produção e circulação dos apelidos”, isto porque os estudos sobre apelidos não são estáticos, mas variados de acordo com a cultura e as relações em que são produzidos. Em contrapartida a esta realidade, percebe-se que os estudos sobre apelidos na literatura brasileira ainda se encontram muito limitados a considerar a relevância do fenômeno da apelidação apenas como uma modalidade de violência dentro da prática do bullying (Carvalho, 2019).
Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo analisar as características dos trabalhos que abordam a temática “Apelidação na adolescência” por meio de uma revisão de escopo. Espera-se, com os resultados da revisão, oferecer a literatura informações sobre a temática que auxiliem no desenvolvimento de outros estudos capazes de contribuir para o entendimento da influência que a prática da apelidação pode exercer na vida dos adolescentes.
Método
Tipo de estudo
Trata-se de uma revisão de escopo conduzida de acordo com as diretrizes do PRISMA-ScR (Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyse - Extension for Scoping Reviews) (Tricco et al., 2018).
A revisão foi realizada em convergência com os postulados de Arksey e O’Malley (2005), bem como as subsequentes recomendações elucidadas por Levac et al. (2010). Neste sentido, o estudo foi desenvolvido através de cinco etapas: elaboração da questão de pesquisa; rastreio de estudos relevantes e posterior seleção; mapeamento dos dados; fichamento e discussão dos resultados.
Questão de investigação
Adotou-se a estratégia População, Conceito e Contexto (PCC), proposta pelo protocolo JBI (Peters et al., 2015), para definição da seguinte questão norteadora: “Quais as características dos estudos presentes na literatura científica que abordam a apelidação entre adolescentes?’’, onde população (P) foi considerada adolescentes; Conceito (C), a apelidação e Contexto (C) não foi limitado, incluindo núcleo familiar, ambiente escolar e social de modo geral.
Estratégia de Pesquisa
A busca foi realizada nas bases de dados Medline (via PUBMED), LILACS e PSYCNET, considerando a data de início das publicações de cada uma das bases até o dia 22/07/2021. Utilizou-se o descritor Adolescent, com os seus respectivos sinônimos reconhecidos pelos vocabulários MeSH e DeCS, somado aos termos Nickname e Name-calling. Destaca-se que este último termo foi utilizado diante da compreensão de que ele pode representar a apelidação em formato pejorativo. As estratégias de busca foram definidas de acordo com as particularidades de cada base, com uso dos indicadores booleanos AND e OR.
Na PUBMED, a estratégia de busca utilizada foi: “(Adolescent OR Adolescence OR Young OR Teenager[MeSH Terms]) AND (Nickname[Title/Abstract] OR Nicknames[Title/Abstract] OR Name-calling[Title/Abstract] OR Nicknaming[Title/Abstract])”. Na LILACS, houve duas buscas: na primeira, utilizou-se “Adolescent OR Adolescence OR Young OR Teenager [Words] AND Nickname OR Nicknames OR Name-calling OR Nicknaming [Words]”, enquanto na segunda, apenas “Apelido [Words] OR Apelidos [Words]”. Na PSYCNET, a estratégia foi: “Adolescence OR Adolescent OR Teenager OR Young AND Nickname OR Nicknames OR Nicknaming OR Name-calling”.
Para complementação da busca, outras fontes de estudo também foram consultadas. Foi realizada busca manual nas referências dos documentos selecionados e nos estudos similares presentes nas bases citadas.
Critérios de inclusão e exclusão
Foram incluídos no estudo todos os tipos de publicações envolvendo o tema apelidação entre adolescentes, sem restrições acerca do período de publicação. Com relação à adolescência, considerou-se a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que engloba a faixa etária de 10 a 19 anos de idade. Para abordagem do conceito de “Apelidação”, foi considerada a definição de Castro (2018), que descreve apelidação como o processo de renomeação de pessoa, sendo o apelido um produto desta prática. Foram incluídos todos os estudos que se debruçaram sobre o fenômeno da apelidação entre adolescentes, bem como aqueles que, apesar de não tratarem diretamente da temática, elucidaram algo associado a ela e que foi considerado relevante na perspectiva dos pesquisadores.
Durante os processos de triagem e elegibilidade, foram excluídos os estudos que se apresentaram duplicados entre os bancos de dados. Em seguida, os documentos foram analisados por meio da leitura de títulos e resumos dos artigos. Aqueles que atenderam aos critérios de inclusão foram direcionados para a etapa seguinte do processo de seleção, composta pela leitura do texto completo, visando a seleção dos estudos desta revisão.
Análise dos dados
A presente revisão foi desenvolvida seguindo um sistema de revisão por pares, sendo assim, os documentos foram analisados por dois pesquisadores individualmente (L.G.L.A e M.A.C.S.) para análise posterior em conjunto, seguindo os critérios de inclusão e exclusão. Em caso de divergências entre esses dois revisores, houve uma reunião com um terceiro revisor (V.C), visando um consenso entre as partes que permitiu maior confiabilidade no processo de seleção dos documentos para compor esta revisão de escopo.
Para avaliar o nível de concordância entre os artigos selecionados por cada pesquisador, foi realizado o cálculo do coeficiente kappa proposto por Cohen (1960). O índice kappa calculado foi de 0,75, valor que, de acordo com a tabela de classificação cunhada por Landis e Koch (1977), representa um nível de concordância substancial.
Com o objetivo de caracterizar a produção, foi realizado um mapeamento de dados através de uma planilha construída no Excel, incluindo: título, autores, ano, local, idioma, objetivo, metodologia, amostra, faixa etária, resultados e conclusões.
Resultados
Inicialmente, foram encontrados 297 artigos. Dentre eles, 57 eram duplicados. A partir da leitura de títulos e resumos, foram excluídos 180 artigos, restando 60 para a etapa de leitura integral. Nesta etapa, foram excluídos os estudos que não foram encontrados, os que não respondiam aos critérios de inclusão e à questão norteadora. A descrição do processo de busca e seleção dos artigos se baseou no Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analys (PRISMA) e encontra-se ilustrada na Figura 1.
Os resultados serão apresentados de forma sintética e objetiva através, principalmente, de tabelas contendo informações consideradas fundamentais dentro da lógica de uma revisão de escopo. Desta feita, os dados do Quadro 1 têm como principal função caracterizar os estudos selecionados, que por sua vez se inclinam sobre a temática da apelidação entre adolescentes.
Diversas subáreas foram identificadas a partir da formação dos autores: Psicologia (n = 13), sobretudo clínica, educacional e social; Enfermagem (n = 2); Linguística (n = 2); Medicina (n = 5), nas áreas da Psiquiatria, Medicina Preventiva e Clínica; Educação (n = 4); Saúde Pública (n = 1); e Psicanálise (n = 1).
No que diz respeito ao delineamento metodológico, foram encontrados: 16 estudos quantitativos, 4 estudos qualitativos e 3 estudos que utilizaram métodos mistos. As demais informações relativas ao desenho dos estudos, bem como o objetivo de cada um deles, estão descritas no Quadro 2.
A maioria dos estudos quantitativos fez o uso combinado de questionários e escalas de avaliação, ao passo que os estudos qualitativos utilizaram, sobretudo, entrevistas abertas ou semiestruturadas. O Quadro 3 ilustra o nome de cada um dos 19 instrumentos que foram utilizados, bem como a quantidade de estudos que os utilizaram.
A análise dos dados dos estudos quantitativos também apresentou uma ampla variedade de ferramentas e técnicas associadas a Estatística: Fórmula de provável erro de frequência observada proposta por Karl Holzinger; Testes qui-quadrado de Pearson; OLS multiple regression; Modelos de Modelagem Linear Hierárquica (“HLM”); Estimadores de máxima verossimilhança; Testes “t”; Análise de caminho cross-lagged; Análise Fatorial Confirmatória; RSiena; Mplus; SPSS; e Microsoft Excel.
Os estudos de abordagem qualitativa utilizaram: Análise de Estrutura Semântica de Wierzbicka; Modelo de categorias de Philips; Análises de conteúdo; Análise temática (hermenêutica e dialética) e Análise do Discurso (Psicanálise Freud-Lacaniana).
Autor / Ano | Objetivo | Desenho |
---|---|---|
Habbe (1937) | Analisar os apelidos de adolescentes com e sem deficiência auditiva. | Transversal |
Busse (1983) | Compreender a função que apelidos desempenham na vida social de adolescentes americanos. | Transversal |
Phillips (1990) | Identificar os apelidos dados a alunos do ensino médio e universitário, examinando a diferença entre os nomes dados a homens e mulheres e a influência destas mudanças na construção de estereótipos. | Transversal |
Klerk & Bosch (1996) | Compreender o uso de apelidos entre de adolescentes sul-africanos de diferentes origens socioeconômicas | Transversal |
Klerk & Bosch (1997) | Descrever os apelidos de adolescentes falantes da língua inglesa na África do Sul. | Transversal |
Baker et al. (2009) | Descrever a natureza do racismo vivida por adolescentes que se autodenominam vítimas na província de New Brunswick e sua resposta aos incidentes racistas percebidos. | Transversal |
Kolawole et al. (2009) | Avaliar a incidência de apelidos e xingamentos entre uma amostra de escolares nigerianos para examinar os tipos de nomes relatados pelas crianças, a relação dos apelidos com a aparência dentária e o impacto de tais apelidos. | Transversal |
Collier et al. (2013) | Descrever a prevalência de xingamentos homofóbicos em uma amostra de adolescentes holandeses. | Transversal |
Slaatten & Hetland (2014) | Examinar como o endosso dos adolescentes do sexo masculino às normas masculinas prevê xingamentos relacionados a homossexuais. | Transversal |
Slaatten & Gabrys (2014) | Explorar se adolescentes usam xingamentos relacionados a homossexuais como uma resposta à violação das normas de gênero. | Transversal |
Paixão et al. (2014) | Identificar a ocorrência e a percepção do bullying entre adolescentes. | Transversal |
Solomon (2015) | Explorar o uso da linguagem homofóbica e sexista no ensino médio. | Transversal |
Birkett & Espelage (2015) | Compreender a formação de comportamento homofóbico em adolescentes ao longo do tempo. | Longitudinal |
Beusekom et al. (2015) | Avaliar se o xingamento homofóbico é responsável pela relação entre não conformidade de gênero e saúde mental em adolescentes. | Transversal |
Slaatten et al. (2015) | Explorar como ser chamado de nomes homossexuais por agentes com os quais a relação é diferenciada por amizade, status de conhecido e simpatia percebida estão associados a sintomas depressivos. | Transversal |
Tucker et al. (2016) | Avaliar se a orientação sexual modera associações entre xingamento, sofrimento psicológico e consumo de álcool. | Longitudinal |
Dahlqvist et al. (2016) | Testar, através de um referencial teórico feminista, modelos concorrentes a respeito da direção das relações entre as dimensões da vitimização por assédio sexual por pares e dimensões de sintomas depressivos em adolescentes. | Longitudinal |
DeLay et al. (2017) | Analisar a relação entre xingamento homofóbico e saúde mental na adolescência. | Longitudinal |
Espelage et al. (2018) | Examinar preditores de mudanças em xingamentos homofóbicos, incluindo bullying, assédio sexual, desprezo por assédio sexual e masculinidade tradicional. | Longitudinal |
Merrin et al. (2018) | Examinar a coevolução de redes de amizade, perpetração de bullying e provocações homofóbicas durante o ensino médio. | Longitudinal |
Espelage et al. (2018) | Avaliar a perpetração de xingamentos homofóbicos como moderadora de bullying e violência sexual na escola. | Longitudinal |
DeLay et al. (2018) | Testar o papel do xingamento homofóbico nas mudanças na identidade de gênero dos adolescentes ao longo de um ano acadêmico. | Longitudinal |
Bolaños & Pereira (2019) | Compreender como ocorre o processo de constituição subjetiva de adolescentes que compõem Agrupamentos Juvenis de Cidade (AJC). | Longitudinal |
Instrumento | Estudos (n) |
---|---|
Homophobic Content Agent Target Scale (HCAT) | 8 |
Meanings of Adolescent Masculinity Scale (MAMS) | 3 |
University of Illinois Bully Scale (UIBS) | 3 |
Childhood Gender Nonconformity Scale | 2 |
Brief Symptom Inventory | 2 |
Center for Epidemiological Studies-Depression (CES-D scale) | 2 |
Adolescent Masculinity Ideology in Relationships Scale (AMIRS) | 2 |
6-item version of the American Association of University Women (AAUW) | 2 |
Modified Depression Scale (MDS) | 1 |
Vaux Social Support Record | 1 |
Children’s Depression Inventory | 1 |
Competence Scale for Children | 1 |
Escala de Ansiedade de Interação Social | 1 |
Five-item gente (perpetrator) scale | 1 |
Teen Conflict Survey | 1 |
Adolescent Femininity Ideology Scale (AFIS) | 1 |
12-item Children’s Exposure to Community Violence scale | 1 |
Early Adolescent Role Strain Inventory | 1 |
Sexist Content Agent Target Scale (S-CAT) | 1 |
Discussão
A revisão evidenciou que existe uma escassez da literatura em relação à temática da apelidação, lacuna que se torna ainda maior quando se considera o fato de que apenas 6 estudos têm o termo “apelido” nos objetivos. Os artigos “remanescentes” elucidam algo sobre apelidos, mas restringindo-os ao formato pejorativo (xingamento) e/ou tratando-os como subtema de fenômenos mais abrangentes como bullying e racismo, por exemplo. Nota-se, com efeito, que a tendência dos estudos atuais tem sido investigar aspectos do xingamento associado a questões de orientação sexual e de gênero. Com base em Philips (1990), torna-se possível inferir que esta tendência está atrelada ao fato de os apelidos serem componentes fluídos da linguagem e, consequentemente, ferramentas úteis para observar estereótipos associados aos papéis femininos e masculinos desempenhados culturalmente.
Diversos países da Europa e da América do Norte têm produzido estudos envolvendo aspectos do homophobic name-calling (xingamento homofóbico), especialmente os Estados Unidos da América (EUA), que têm 7 artigos (30,43% da amostra) dedicados à esta temática. Este conceito faz parte de um fenômeno chamado peer victimization, considerado sinônimo do bullying. Outro termo, constatado nos 3 estudos (13,04% da amostra) da Noruega, foi o gay-related name-calling (xingamento associado a nomes gays), que se assemelha ao xingamento homofóbico. Muitas vezes estas formas de bullying são operacionalizadas através de apelidos como “faggot” ou “lezzie, por exemplo. A abordagem recorrente destes conceitos explica o uso expressivo da HCAT, escala criada por Poteat e Espelage (2005) que, a partir de 5 itens, mede quantas vezes, nos últimos 30 dias, um jovem se reportou a alguém através de epítetos homofóbicos (Collier et al., 2013; Slaatten et al., 2015).
Semelhante à linha de raciocínio supracitada, observou-se uma recorrência razoável de escalas relativas a questões de gênero (não-conformidade, identidade e normativas), inclusive específicas do gênero masculino, como a MAMS e a AMIRS. O uso destas escalas ratifica, dentre uma série de postulados acerca do xingamento homofóbico, que se trata de um fenômeno cuja expressão e subsequentes efeitos variam de acordo com o gênero, sendo mais recorrente no masculino. De acordo com Slaatten et al. (2015), o xingamento associado a nomes homossexuais está relacionado a uma repressão direcionada para aqueles que não respondem ao que é culturalmente estabelecido como padrão ideal de masculinidade (Collier et al., 2013).
A predominância de publicações dos EUA coincide com a recomendação feita por Busse (1983), que no seu estudo enfatizou a importância de serem realizadas mais pesquisas envolvendo o uso de apelidos por americanos, tendo em vista o alto potencial que os apelidos demonstraram de influenciar as relações sociais e a pouca quantidade de investigações que existia até o momento. No entanto, após a publicação do autor anteriormente citado, observa-se que, nos EUA, apenas a pesquisa realizada por Philips (1990) teve objetivos envolvendo o termo “apelido”, e já neste estudo é possível constatar uma inclinação para as questões de gênero. Sobre isto, inclusive, Collier et al. (2013) postulam que a maioria dos estudos sobre vitimização homofóbica foram realizados com amostras dos EUA, mas os autores não desenvolvem esta colocação.
Um ponto que ratifica a fragilidade da literatura em relação à temática da apelidação é a quantidade significativa de estudos transversais, que por um lado evidenciam a prevalência da apelidação entre adolescentes, mas por outro, são bastante limitados no que diz respeito a investigação das associações de causa e efeito deste fenômeno (Hulley et al., 2015). Nota-se que Collier et al. (2013) enfatizam a necessidade de serem realizados mais estudos longitudinais, recomendação que aparentemente teve aceitação maior que aquela feita por Busse (1983), tendo em vista a coincidência de terem aumentado o número de publicações com este delineamento após a publicação dos autores. No entanto, percebe-se que, tanto a sugestão quanto as pesquisas que aparentemente surgiram influenciadas por ela, têm como enfoque o xingamento homofóbico.
A tendência de estudos voltados para bullying e xingamento fortalecem a compreensão de Carvalho (2019) acerca da apelidação, que postula que no imaginário do senso comum os apelidos estão consolidados como algo de cunho exclusivamente pejorativo. Todavia, é fundamental observar que nem todo apelido é depreciativo. De acordo com Klerk e Bosch (1997), é muito comum apelidos serem utilizados para sinalizar afeto ou amizade. Estes autores também relatam casos de auto apelidação, onde os portadores não apenas criam os próprios apelidos, como também os propagam. Com efeito, um apelido pode se tornar a identidade de uma pessoa de modo tão visceral a ponto de fazer o nome de nascença cair em total desuso, como no exemplo do filósofo grego Arístocles, mundialmente conhecido pela sua alcunha: Platão (Busse, 1983).
Observou-se que quase todos os estudos foram realizados no contexto escolar. Dentre os 3 estudos que não ocorreram na escola, destaca-se que 2 foram em um evento estudantil (Klerk & Bosch, 1996; Klerk & Bosch, 1997), tendo um único estudo ocorrido nas diversas dependências das cidades onde os dados foram sendo coletados (Bolaños & Pereira, 2019). Esta realidade dialoga com os resultados da pesquisa feita por Kolawole et al. (2009, p. 119), que constataram que a maioria dos apelidos listados foram originados no ambiente escolar, provavelmente como consequência das relações com os pares. O estudo destes autores revelou que “três em cada quatro crianças receberão um apelido enquanto estão na escola”.
O Brasil só teve 1 estudo e que, como a maioria, aborda a apelidação restringindo-a a forma pejorativa e como subtema da violência no ambiente escolar. Existem diversos problemas associados a este cenário, dentre os quais destacam-se dois em específico: a maioria dos estudos que se propõem a investigar os apelidos sem tratá-los como algo exclusivamente pejorativo é do século XX, o que implica admitir a existência de uma série de diferenças contextuais importantes em comparação aos dias atuais; apesar dos estudos de outros países poderem auxiliar na compreensão do fenômeno da apelidação, destaca-se que grande parte do sentido dos apelidos enquanto potenciais delatores sociais dependem da cultura na qual são originados. Neste sentido, destaca-se a importância de serem realizadas pesquisas planejadas especificamente para a realidade brasileira (Pais, 2018).
A quantidade inexpressiva de estudos de abordagem qualitativa chama atenção, pois o que está em questão é um fenômeno que emerge no âmago das relações sociais. Esta constatação se torna ainda mais curiosa quando se leva em consideração o fato de que houve uma predominância de autores ligados as áreas da Psicologia nestes estudos. Nos meios científicos existem, diversos tipos de desenhos de estudo, e é inegável que cada um deles tem a sua importância. Contudo, se é admitido que a Psicologia é uma ciência cujo fazer se traduz, sobretudo, na escuta do outro, torna-se necessário problematizar a existência de tão poucos estudos envolvendo entrevistas clínicas e/ou qualquer outra ferramenta que dê voz ao discurso do sujeito, com a menor interferência de pressupostos que for possível (Schultz & Schultz, 2014). Esta inclinação sobre o universo singular do outro é fundamental na medida em que questionários e escalas com questões pré-determinadas podem não dar margem para que aquilo que se tem para dizer seja dito.
Analisando as palavras-chave dos estudos é possível observar que os termos mais recorrentes (Nickname e derivações, Name-calling e Homophobic name-calling) não constam como descritores nas plataformas DeCS/MeSH, fator que corrobora com o argumento de que existe uma lacuna na literatura a respeito da temática da apelidação.
As limitações desta revisão se traduziram, sobretudo, na análise dos estudos mais antigos (do século XX), cujos delineamentos metodológicos, por vezes, se apresentaram pouco detalhados. Salienta-se, também, a dificuldade de localizar alguns autores, algo que corroborou em dificuldades de identificar as subáreas dos estudos.
Considera-se que esta revisão evidenciou a escassez da literatura acerca da apelidação que, apesar de ser compreendida como algo que tem um alto potencial de revelar inúmeros aspectos relacionados à dinâmica sociocultural de um lugar, é majoritariamente tratada como subtema e/ou resumida em sua forma pejorativa. Convém destacar, além disso, o fato de que se trata de um fenômeno comum e recorrente entre adolescentes, sobretudo no cenário escolar, sendo um fator que pode balizar as relações sociais do adolescente e exercer influência significativa em seu processo de construção identitária.
Os resultados sugerem que a quantidade de estudos de abordagem qualitativa e/ou que se debruçam sobre a apelidação de forma ampla é expressivamente menor do que a que existe no total, algo que dá margem para reflexões a respeito da importância e subsequente necessidade de serem realizados estudos cujo delineamento se estruture de modo que busque compreender a vivência singular do adolescente a respeito deste fenômeno.
É plausível encerrar este texto com uma convocação semelhante à de Busse (1983), para que sejam realizadas mais pesquisas envolvendo o uso de apelidos por adolescentes, uma vez que a literatura ainda se vê carente de investigações desta natureza. O contexto no qual este apontamento se fundamentou continua sendo atual, diante do pouco que foi feito, bem como relevante, diante de seus possíveis benefícios em relação à compreensão social e cultural de cada país. Convém enfatizar, por fim, que a abordagem do fenômeno da apelidação possa se desenhar de forma mais aberta, sem restringi-lo ao formato pejorativo, e utilizando métodos que permitam que o discurso do adolescente seja proferido sem a influência maciça de questões predeterminadas.
Contribuição dos autores
Luis de Andrade: Conceptualização; Análise formal; Investigação; Metodologia; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Mariana da Silveira: Análise formal; Investigação; Metodologia; Recursos; Visualização; Redação - revisão e edição.
Jose de Melo: Investigação; Metodologia; Recursos; Visualização.
Viviane Colares: Conceptualização; Análise formal; Metodologia; Supervisão; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.