A forma como as pessoas comportam-se perante uma ameaça à saúde pode influenciar positiva ou negativamente no processo saúde-doença (Lee et al., 2020; Ots et al., 2020; Vaughan et al., 2020). O novo coronavírus, por exemplo, fez com que pessoas no mundo inteiro mudassem hábitos cotidianos de maneira drástica. Repentinamente, houve a necessidade de adotar medidas rígidas de higiene (uso do álcool em gel, lavagem de mãos e higienização de embalagens), o uso de máscaras, distanciamento social e quarentena (Faro et al., 2020; Tibério et al., 2020; World Health Association (WHO), 2020).
A mudança comportamental exigida durante uma crise demanda das pessoas um processo cognitivo avaliativo daquele evento/doença, que o caracterizará como ameaçador ou não (Strecher & Rosenstock, 1997). A perceção do contexto decorrente desse evento/doença influenciará a forma como a pessoa lidará com ele e os afetos negativos que irão surgir (Kelly & Barker, 2016; Sun-Jung et al., 2015). Assim, a Covid-19 - doença desencadeada pelo novo coronavírus - pode ser vista pelas pessoas como ameaçadora ou não a depender dessas avaliações, sendo que o estresse ocasionado pelas mudanças do comportamento, a progressão do número de infectados e o tempo prolongado de quarentena parece estar muito mais presente naqueles que visualizam essa situação como ameaçadora (Abdoli, 2020; Ornell et al., 2020).
Em dezembro de 2020, o mundo vivia a segunda onda da doença em diversos países - ainda não necessariamente confirmada no Brasil - e três vacinas já haviam sido aprovadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Alguns países, a exemplo do Reino Unido e EUA, já haviam iniciado a vacinação em massa, ao passo que outros países da Europa, da Ásia e das Américas se preparavam para iniciar o processo de imunização. O Brasil, apesar de ter apresentado uma proposta para plano nacional de imunização, ainda não tinha uma data específica para início do processo, nem mesmo haviam sido aprovadas vacinas pela Agência Nacional de Saúde - ANVISA (OMS, 2020b). Vale ressaltar que a presença da vacina por si só não era considerada solução imediata para a pandemia, sendo estimado um tempo de, pelo menos, 12 meses para restaurar a normalidade na maior parte dos países. Dessa forma, o medo e a incerteza, antes associados à doença, passou a ser também associado à vacina, que dividia opiniões em termos de eficácia e segurança (OMS, 2020).
O medo funcional é uma emoção que altera positivamente a percepção das pessoas acerca do novo coronavírus, e, consequentemente, fazem-nas utilizar mecanismos de proteção, ou seja, esta emoção aparece como uma predição do perigo e incita as pessoas a que empreendam ações de controle à doença (Harper et al., 2020). Outro sentimento atrelado a pandemia do novo coronavírus foi a preocupação, tanto vista como negativa por causar sintomas ansiosos, caso esteja exacerbada (Wango et al., 2020), como positiva, caso esteja associada à responsabilidade social e ao coletivismo ao fazer com que as pessoas tomem cuidados por si e por outrem (Johson et al., 2020). A preocupação, aqui também entendida sob o conceito de metapreocupação - sendo o termo “meta” usado por derivar-se do sistema metacognitivo - é um conjunto de pensamentos negativos e constantes sobre alguma coisa (Dinis & Gouveia, 2011). Ele pode impactar negativamente a perceção das pessoas sobre o comportamento de saúde, a exemplo, considerando-se a pandemia da Covid-19, da não utilização de máscara ou do álcool em gel e burlar o isolamento social (Huang et al., 2020; Ma et al., 2020). A preocupação excessiva, inclusive, pode afetar, a longo prazo, o surgimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Assim et al., 2020) e a ocorrência de sintomas ansiosos e depressivos (Huang et al., 2020; Ma et al., 2020).
Para se buscar entender como as pessoas lidam com as adversidades em seu dia a dia, a análise de evocações se mostra como uma possibilidade de evidenciar o pensamento coletivo acerca de um evento em saúde (Whacheke & Wolter, 2011). Esse tipo de análise vem sendo aplicada em alguns estudos como método para descobrir os fatores que interferem em um comportamento de risco em saúde (Turri & Faro, 2018). Por mais que as pessoas saibam quais as ações podem prejudicá-las ou não, fatores como a perceção, crenças e até mesmo o grau de preocupação podem influenciar a decisão da pessoa por empreender comportamentos protetivos ou prejudiciais a sua saúde (Brito & Camargo, 2011).
Na pandemia da Covid-19, entender o que as pessoas pensam e fazem por meio da análise das suas preocupações pode ajudar a explicar a adesão aos métodos de controle da doença, a efetividade das recomendações em saúde e, indiretamente, pode também auxiliar a entender o crescimento ou redução de casos de contágio pelo novo coronavírus. Assim, acredita-se que demonstrar excessiva preocupação com a Covid-19 pode vir a acarretar prejuízos psicológicos, uma vez que sintomatologia de transtornos mentais pode surgir como reação à dificuldade de ajustamento psicológico à pandemia. Além disso, é possível que níveis de preocupação acentuados influenciem a percepção da população a respeito da pandemia e, por consequência, a adesão a comportamentos protetivos.
Diante do exposto, o presente estudo analisou as principais evocações da população brasileira sobre a Covid-19 em um momento de alta acentuada no número de casos de contágio e óbitos pelo novo coronavírus (junho de 2020). Ademais, avaliou-se o nível de preocupação declarado por essas pessoas, visando à classificação das evocações de acordo com a intensidade da preocupação e, com isso, a identificação de diferenças ou similaridades nos modos de perceber a pandemia segundo seu nível de preocupação.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 4970 pessoas, com idade entre 18 e 84 anos de (M = 31,3; DP = 11,89; 18-84 anos), sendo 12,9% homens (n = 641) e 81,7% mulheres (n = 4329). Com relação à escolaridade, 23,9% (n = 1187) possuíam escolaridade até o ensino médio e 76,1% (n = 3783) afirmaram possuir ou cursar ensino superior. Sobre a ocupação, 40,3% (n = 2002) estavam empregados no serviço público e privado, 3,5% (n = 176) eram aposentados ou pensionistas, 10,2% (n = 508) autônomos e/ou possuem negócio próprio, 2,9% (n = 143) tinham trabalho informal, 24,3% (n = 1210) são apenas estudantes e 18,7% (n = 931) estavam desempregados e sem qualquer atividade que gerasse renda. Cerca de metade (51,9%; n = 2580) residia no Nordeste, 30,2% (n =1502) no Sudeste, 8,1% (n = 405) no Sul, 5,8% (n = 287) no Centro-Oeste e 3,9% (n = 196) no Norte do Brasil. Houve participantes de todos os Estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal, com a participação de pessoas de 917 cidades.
Material
Foi utilizado um questionário sociodemográfico com questões sobre idade, sexo, escolaridade, cidade e estado onde reside, e ocupação. Também foi feito o registro de cinco evocações (técnica de evocação livre ou associação livre de palavras; Abric, 2003; Pianelli et al., 2010) a partir do estímulo disparador: “Quais as cinco coisas (palavras, imagens, emoções, sentimentos, ...) que vêm primeiro a sua cabeça ao ouvir ou ler a palavra CORONAVÍRUS?”.
Utilizou-se também o Questionário de Meta-Preocupação (QMP: Meta - Worry Questionnaire) (Wells, 2005), na versão adaptada por Dinis e Gouveia (2011). O QMP é composto por sete itens alusivos a temas comuns de perigo acerca da preocupação. Tais itens são avaliados em duas subescalas, são elas: (a) relacionada à frequência com que ocorre cada meta preocupação, disposta em escala Likert de 4 pontos que varia entre “nunca” (1) a “sempre (4); (b) relacionada à sua veracidade. Para este estudo, foi utilizada apenas a subescala de frequência de preocupação (a), já que a finalidade foi realizar um rastreio breve das condições de saúde mental das pessoas, demandando, portanto, um instrumento de pesquisa reduzido. A pontuação da frequência é extraída através da soma de todos os itens, em que quanto maior a frequência das preocupações, maior a probabilidade de serem disfuncionais. O escore total foi categorizado neste estudo em: mais de 19 pontos, pessoas com alta preocupação (AP, n = 1620); 13-18 pontos, moderada preocupação (MP, n = 1472); e de 0-12 pontos, baixa preocupação (BP, n = 1883).
Procedimento
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (nº de registro no CONEP 3.955.180). Os participantes que concordaram em participar tiveram que assinalar sua concordância no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) produzido em formato digital. A amostragem foi por conveniência e em redes sociais, sendo que o instrumento ficou armazenado em plataforma online de coleta de dados. A divulgação e convite para a pesquisa foram realizadas no Instagram, Facebook e Twitter através de postagens de divulgação. Também foi realizada no WhatsApp, através da divulgação do link de acesso ao questionário. O questionário ficou disponível na primeira quinzena de junho de 2020.
Análise de Dados
Os dados sociodemográficos foram armazenados em software estatístico e foram calculadas as estatísticas descritivas das variáveis sexo, idade, escolaridade, ocupação e região do país onde mora. As evocações foram transferidas para o software OpenEvoc 0.81, que permite armazenar, analisar e visualizar os dados de pesquisa a partir da análise estatística da frequência e da ordem das evocações dos participantes. A importância da resposta e sua relação com os termos indutores se dá a partir da interação entre a frequência e a ordem de evocação. Assim, foram realizadas as análises de distribuição percentual e ordem média das evocações, o que permitiu a criação do Quadro de Quatro Casas (QQC) (ver Sant’Anna, 2012).
O QQC permite avaliar elementos centrais e periféricos da representação, ou seja, indica a quantidade de vezes e o ordenamento das evocações dos participantes. No 1º quadrante (superior esquerdo) estão as evocações de maior frequência e com ordem de evocação inferior à média geral, representando elementos que formam a crença mais comumente compartilhada no grupo. No 2º quadrante (superior direito) estão as evocações de maior frequência e maior ordem de evocação, sendo localizados os elementos que tendem a embasar as crenças formuladas a partir da análise do primeiro quadrante. No 3º quadrante (inferior esquerdo) são observadas as evocações de menor frequência e menor ordem de evocação, as quais se referem a crenças de maior pregnância num grupo menor de indivíduos. No 4º quadrante (inferior direito) encontram-se as evocações de menor frequência e maior ordem de evocação, usualmente sendo utilizadas para indicar um espectro mais amplo dos significados atribuídos ao objeto estímulo, já que são menos comuns e aparecem dentre os últimos elementos evocados. No todo, a análise desses quadrantes possibilita a identificação de uma crença sobre determinado assunto, viabilizando o entendimento dos fatores que influenciam no comportamento do indivíduo (Sant’Anna, 2012).
Resultados
O QQC (Quadro 1) foi construído a partir da divisão dos grupos de acordo com a classificação de intensidade de preocupação (AP, alta preocupação; MP, moderada preocupação; BP, baixa preocupação). Para este trabalho, tendo em vista a parcimônia da apresentação, foram elencadas para compor o QQC somente as cinco primeiras palavras mais representativas de cada classe. Tal decisão também se baseou no fato de que não haveria, segundo a avaliação prévia dos autores desta pesquisa, modificação relevante de crença, sentido ou conteúdo contextual do quadrante a partir da análise das evocações classificadas a partir da sexta posição.
Nota. F é a frequência percentual que as palavras são apresentadas no texto. OM é a ordem média de aparecimento das evocações. Número total de evocações = 4.975; Evocações por nível de preocupação: Alta = 1.620; Moderada = 1.472; Baixa = 1.883.
No 1º quadrante as evocações lembradas mais prontamente em todos os níveis de preocupação foram “medo”, “morte” e “tristeza” (ordem média [OM] = 1,9), sendo a palavra “medo” a principal em todos os grupos. Adicionalmente, apareceram também os termos “angústia” (OM = 2,9) e “desespero (OM = 2,9)” em AP, “isolamento” (OM = 2,9) e “angústia” (OM = 2,9) entre pessoas do MP, e “isolamento” (OM = 2,7) e “doença” (OM = 2,1) no BP; o que refletiu diferentes associações dos três principais termos de acordo com o nível de preocupação.
No 2º quadrante, as evocações também se assemelharam a despeito do nível de preocupação dos participantes. A “ansiedade” (OM = 3,0) foi a evocação mais frequente em todos os grupos. No entanto, viu-se diferenciação nos outros três termos de cada nível de preocupação. No grupo AP, a ansiedade foi seguida pelas palavras “dor” (OM = 3,2), “saudade” (OM = 3,6) e “família” (OM = 3,4). Para aqueles do MP, “família” (OM = 3,4), “saudade” (OM = 3,7), “desespero” (OM = 3,2). Já no BP, “cuidados” (OM = 3,1), “família” (OM = 3,3) e “máscara” (OM = 3,0). Viu-se, assim, que o termo “família” também se repetiu em todos os grupos, ainda que as demais evocações tenham sido em torno de outros elementos em cada grupo considerado.
No 3º quadrante, em AP os conteúdos específicos foram “raiva” (OM = 2,9), “pandemia” (OM = 2,4) e “caos” (OM = 2,9). Em relação aos demais grupos, repetiram-se os termos “vírus” e “solidão”, que apareceram no MP e BP, respetivamente. No MP, além de “vírus” (OM = 2,5), também surgiram “cansaço” (OM = 2,7), “falta de ar” (OM = 2,8) e “contágio” (OM = 2,8). No BP, após “cansaço” (OM = 2,7), apareceram “desespero” (OM = 2,9), “solidão” (OM = 2,8), “distanciamento” (OM = 2,9) e, assim como no MP, “contágio” (OM = 2,6). De modo geral, houve mais evocações específicas que em comum neste quadrante, o que ficou distinto do observado no primeiro e segundo quadrantes. Noutras palavras, a diferenciação entre os grupos de nível de preocupação passou a ser maior.
Por fim, no 4º quadrante apenas os termos impotência e saúde se repetiram em MP e BP, com todos os demais termos distintos por grupo, o que consolidou a maior diferenciação entre as classificações da preocupação. No grupo AP apareceram palavras únicas como “quarentena” (OM = 3,0), “máscara” (OM = 3,2), “hospital” (OM = 3,1), “pânico” (OM = 3,0) e “cansaço” (OM = 3,1). O MP teve “solidão” (OM = 3,0), “impotência” (OM = 3,4), “perda” (OM = 3,3) e “sofrimento” (OM = 3,4). Dentre os participantes no grupo BP surgiram “saúde” (OM = 3,3), “higiene” (OM = 3,5), “impotência” (OM = 3,2), “mudança” (OM = 3,3) e “fé” (OM = 3,3) como elementos específicos a este grupo.
Discussão
A partir da análise do Quadro 1, viu-se que as principais evocações do 1º quadrante, independentemente do nível de preocupação, foram associadas a elementos que remeteram a afetos negativos. De certo modo, esse dado pode ser considerado esperado, pois é comum a ocorrência de uma elevada carga de afetos negativos em contextos de emergências e desastres, o que influencia a forma pela qual as pessoas percebem e lidam com a situação (Li et al., 2020; Ornell et al., 2020). A palavra “medo”, no 1º quadrante, obteve a maior frequência e foi a mais prontamente evocada em todos os grupos, o que indica que a perceção mais emergente das pessoas sobre a pandemia foi a de uma situação ameaçadora. Esta emoção está intrinsecamente ligada à capacidade de sobrevivência em qualquer contexto, mas, em emergências, ela é mais notória e pode chegar a ser paralisante (Tavares & Babosa, 2014). Vale lembrar que a pandemia da Covid-19, diferentemente de outras, possuiu algumas particularidades, a exemplo do contágio entre pessoas assintomáticas, desencadeamento de uma dificuldade global na busca pela aquisição de insumos para lidar com a doença e, também, forte impacto econômico, o que acabou elevando ainda mais a probabilidade de sentimentos de temor e sofrimento psicológico (Faro et al., 2020).
É importante destacar que apesar das palavras “medo”, “tristeza” e “morte” estarem associadas aos três níveis de preocupação, o grupo AP apresentou mais evocações relativas a afetos negativos (“angústia” e “desespero”), o que sugere que essas pessoas são aquelas que possivelmente exibem medo em nível exacerbado, ao ponto de favorecer ao desenvolvimento de sintomas físicos ou mentais, além de, potencialmente, comportamentos disfuncionais. Inclusive, a ocorrência de transtornos mentais comuns na pandemia tem dado sinais de aumento (Harper et al., 2020; Wango et al., 2020), já que a Covid-19 se mostrou como o mais importante evento estressor no ano de 2020 para as populações de quase todos os países do mundo (Pedrozo-Pupo et al., 2020).
Nas pessoas do grupo MP, também foi possível verificar a referência ao termo “angústia”, mas a menção ao “isolamento” parece que pode estar associado a um comportamento mais compatível com a medidas sanitárias de saúde, uma vez que essa foi uma recomendação central nas políticas de combate à Covid-19 (CDC, 2020). De toda forma, a proximidade com a “angústia” remete à ideia de que esse isolamento causa sofrimento significativo e, em certa medida, aproxima essas pessoas ao grupo daquelas com alta preocupação. Por outro lado, pode-se pensar que o “medo” relatado por pessoas com baixa preocupação, por estar atrelado aos termos “isolamento” e “doença”, pode ser entendido como um reflexo do entendimento da necessidade de isolamento social, o que tem indicado melhor ajustamento psicológico à pandemia (Lima, 2020). Logo, sugere ser uma compreensão considerada mais funcional, pois aparenta estar fundamentada nas mudanças de comportamento necessárias diante da pandemia (Malta et al., 2020).
No 2º quadrante estão as evocações suplementares ao primeiro quadrante e que atuam de modo a embasar ou justificar as palavras apontadas neste. Novamente, as evocações se assemelharam a despeito do nível de preocupação dos participantes. A “ansiedade” foi a evocação mais frequente em todos os grupos, dado que sugere a sensação de ameaça constante frente à pandemia (Fardin, 2020; Ozamiz-Etxebarria et al., 2020) e se mostra como um dos elementos que amparam as preocupações relacionadas ao medo, morte e tristeza relatados pelos participantes no 1º quadrante. A ansiedade é definida como a antecipação da ameaça futura, caracterizada pela vigilância para o perigo e comportamentos de cautela ou esquiva (DSM-5, 2013). Por sinal, um dos sintomas de ansiedade disfuncional é a preocupação exacerbada acerca de algo ou a incerteza com relação ao futuro (Rolim et al., 2020; Whaley & Kaur, 2020). No contexto da pandemia, a ansiedade pode ser entendida como um nervosismo ou medo constante de que algo de negativo possa vir a acontecer consigo ou com pessoas próximas por causa do novo coronavírus (Fardin, 2020), já tendo sido observada como uma marca da pandemia da Covid-19 (Brooks et al., 2020; Ozamiz-Etxebarria et al., 2020).
O termo ansiedade foi evocado por todos os grupos (alta, média e baixa preocupação) em primeira posição, porém, houve diferenças nas palavras que foram evocadas nas posições posteriores, o que leva a pensar na forma como o contexto é percebido. No grupo de pessoas com AP, a ansiedade surge próxima aos termos “dor”, “saudade” e “família”, o que implica pensar em uma sensação de sofrimento, mas com pouca autonomia diante da situação, uma vez que o próprio cotidiano da pandemia limita (ou sugere limite) para os contatos interpessoais. Pode-se notar, então, que nos grupos AP e MP, os efeitos do isolamento como a preocupação com a morte, a ansiedade e o medo percebido não são sensações apenas direcionadas somente a si mesmo, mas também aos familiares e amigos próximos (Bolaséll et al., 2020). Já o grupo com menor nível de preocupação, a palavra “cuidados” na segunda posição pode levar a considerar que a ansiedade nesse grupo (fortalecido pela palavra “máscara”) pode estar pautada nos comportamentos necessários à proteção individual e coletiva de disseminação do vírus.
Em resumo, o que se constatou a partir da análise do 1º quadrante foi que afetos negativos marcaram todos os níveis de preocupação, mas as pessoas que estavam no grupo de baixa preocupação trouxeram um contexto mais favorável à adaptação (mesmo diante do sofrimento comum a todos). Já para as pessoas dos grupos com alta e moderada preocupação, o cenário pareceu associado a mais intenso sofrimento. Considerando o 2º quadrante, chamou atenção que a evocação ansiedade também apareceu em todos os grupos. Porém, para as pessoas com alta e moderada preocupação, essa ansiedade parece ter sido atrelada a questões ameaçadoras ligadas à própria família na pandemia, reforçando a ideia de dificuldade de lidar com os elementos negativos mencionados no quadrante anterior. Por outro lado, no grupo de pessoas com baixa preocupação, a menção a comportamentos mais apropriados para lidar com a pandemia sugeriu algum nível mais elevado de adaptação à situação. O cuidado, apesar de também associado à angústia vivenciada por essas pessoas, trouxe pelo menos uma ação objetiva de enfrentamento da Covid-19: o possível uso de máscara como modo de proteção.
No 3º quadrante são encontradas as evocações que se sobressaem por terem alta primazia, mas elas são compartilhadas por um grupo menor de pessoas. A partir da análise desse quadrante, percebeu-se que todos os grupos de preocupação evocaram elementos que remetem a sentimentos, afetos e situações negativas enfrentadas durante a pandemia. Isso pode ser visto pela aproximação ao conteúdo do 1º quadrante, mas com o conteúdo do 3º quadrante remetendo - especialmente para as pessoas com alta preocupação - a um cenário mais catastrófico (por exemplo, “raiva” e “caos”). Tal noção pode ser vista, inclusive, no grupo com baixa preocupação, pois o caráter de desgaste agudo (o termo “desespero”) surge apenas quando considerado um subgrupo desse nível de preocupação.
Seguindo a tendência observada no 3ºquadrante, reforça-se a noção de que, à despeito da intensidade de preocupação, o dia a dia da pandemia tende a ser bastante desorganizador, o que tem sido mencionado em outros estudos sobre o impacto da Covid-19 na saúde mental da população em geral (Brooks et al., 2020; Tibério et al., 2020). Então, em cada nível de preocupação avaliado, parece haver um subconjunto de pessoas que aparentam estar mais vulneráveis a exibir sofrimento psicológico mais acentuado, o que influencia a capacidade delas se ajustarem de modo suficientemente saudável (ou menos nocivo) às repercussões do contexto pandêmico (Guo & Feng, 2020; Yildirim et al., 2021). Isso provavelmente passa a ser reforçado pelo próprio combate ao novo coronavírus, pois algumas das estratégias de controle do contágio, a exemplo do isolamento social e da quarentena, restringem interações sociais, impactam de maneira incisiva na autonomia das pessoas e, consequentemente, afetam negativamente a percepção de bem-estar psicológico (Brooks et al., 2020; Enumo et al., 2020; Guo et al., 2020).
No 4º quadrante poucos termos se repetem entre os grupos AP, MP e BP. É importante, porém, para contextualizar diferentes elementos que são experiências comuns na pandemia, a exemplo do uso de máscaras e o cuidado hospitalar (presentes no AP), a perda de entes queridos e o sofrimento ao longo da pandemia (presentes em MP), a sensação de impotência diante da crise e a higiene como algo particularmente especial nesse momento (presentes em BP). Essas são percepções já vistas em outros trabalhos, pois questões como o luto (Azevedo et al., 2020), medo e afetos negativos (Guo et al., 2020) se tornaram rotina no ano de 2020.
É interessante ainda destacar que o grupo de alta preocupação novamente evocou um termo mais ligado a intenso sofrimento (“pânico”), o que reforça a noção de que a elevada preocupação parece estar intimamente atrelada a descontrole e incapacidade de enfrentamento. Essas condições já foram pontuadas em outras investigações como características que acentuam o estresse e amplificam a vulnerabilidade ao adoecimento mental (Brooks et al., 2020), a exemplo de transtornos ansiosos e depressivos (Salari et al., 2020) e comportamentos suicidas (Gunnell et al., 2020).
A Covid-19 provocou uma desorganização geral em praticamente todo o mundo ao longo de 2020, com potencial de perdurar por meses a fio, até que se atinjam os índices esperados de imunização coletiva. Esse cenário desorganizador, com base nos achados desta pesquisa, parece estar atrelado ao nível de preocupação que as pessoas apresentam e, eventualmente, potencializam a vulnerabilidade ao sofrimento psicológico acentuado e ao desenvolvimento de transtornos mentais comuns.
A preocupação mais frequentemente compartilhada e mais emergente da população esteve relacionada ao medo do vírus e da doença, sendo possível, pelo menos em termos de expectativas teóricas, retratar a sensação de alto grau de ameaça percebida diante do enfrentamento da pandemia. Em decorrência disso, acredita-se que, possivelmente, as pessoas com maiores níveis de preocupação apresentam maior probabilidade de ajustamento disfuncional (a exemplo da não adesão às medidas protetivas) e, potencialmente, mais altas chances de desenvolvimento de problemas psicológicos e/ou psiquiátricos.
O processo cognitivo de avaliação, representado nessa pesquisa pelas preocupações da população, impactam diretamente em dois aspectos cruciais para o enfrentamento da Covid-19: (1) nas mudanças comportamentais que geram ações de controle da doença e (2) na presença, na duração e no nível de intensidade do estresse vivenciado ao longo do período de crise em saúde. Dessa forma, os dados reunidos nesta pesquisa possibilitam a identificação das diferentes formas de perceber e reagir ao contexto da Covid-19 e, ainda, podem contribuir para o estabelecimento de diretrizes mais eficazes quando se tem em questão o comportamento da população na pandemia.
A falta de dados comparativos entre os diferentes momentos da pandemia de Covid-19 é uma das limitações desse estudo, assim como a análise das diferentes preocupações entre homens e mulheres, ou até mesmo entre classes socioeconômicas. Estudos futuros podem explorar a comparação da intensidade da preocupação das pessoas nos diferentes estágios de enfrentamento à pandemia e convívio com o novo coronavírus. Outras investigações também podem comparar dados da preocupação com a mensuração dos sintomas de transtornos psicológicos mais apresentados pelas pessoas durante a pandemia e, ainda, avaliar se tais desfechos psicológicos são mais frequentes entre as pessoas consideradas do grupo de risco.
Finalmente, entende-se que esta pesquisa pode ter contribuído para mensurar a sobrecarga psicológica que a pandemia ocasionou (e ainda vem ocasionando) nos brasileiros, sobretudo, com relação à variável preocupação - muito presente em um cenário que trouxe grandes mudanças no modo das pessoas cuidarem de si e dos outros. Espera-se, portanto, que os achados auxiliem a entender o impacto da Covid-19 na saúde mental dos brasileiros, embasando futuras ações para minimização das repercussões sobre o ajustamento psicológico no pós-pandemia.