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Cadernos de Estudos Africanos
versão impressa ISSN 1645-3794
Cadernos de Estudos Africanos no.25 Lisboa jan./jun 2013
Tragédia Desestabilizada: Espaços de memória e de transgressão na dança do Congo de Nossa Senhora do Livramento
Destabilized tragedy: Spaces of memory and transgression in the Congo dance from Nossa Senhora do Livramento
Carla Ladeira Pimentel Águas*
*Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (CES-FEUC) Coimbra, Portugal
RESUMO
O presente artigo analisa o conteúdo narrado pela dança do Congo de Nossa Senhora do Livramento, município situado no Estado de Mato Grosso, Brasil. Desde uma perspetiva pós-colonial, explora as possibilidades de produção e reprodução de discursos insubmissos, que desestabilizam a ordem social e simbólica vigentes. Através de uma narrativa caracterizada como epistemologia do sul, a poética do Congo é tratada como um exemplo de manutenção de memórias e de construção de discursos contrários ao que determinam as forças hegemónicas da modernidade.
Palavras-chave: dança do Congo, epistemologias do sul, festa, memória, contra-hegemonia, pós-colonialismo
ABSTRACT
This article analyzes the meaning of the Congo dance from Nossa Senhora do Livramento, located in the State of Mato Grosso, Brazil. From a postcolonial perspective, it explores the possibilities of the dance producing and reproducing resistance discourses, destabilizing structures both social and symbolic. Characterized as an epistemology of the South, the poetics of the Congo dance is treated as an example of memories and narratives against the hegemonic forces of modernity.
Keywords: Congo dance, epistemologies of the South, festival, memory, counter-hegemony, postcolonialism
Com sua longa capa vermelha, coroa e espada em punho, o rei do Congo de Nossa Senhora do Livramento está sempre pronto para uma nova batalha. Ritual centenário, originado do imaginário do quilombo de Mata Cavalo – comunidade negra de descendentes de escravos situada no Estado de Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil – a dança do Congo conta a história de uma dura guerra, encenada através de cantos, danças e declamações, sempre em louvor aos santos de devoção.
O presente trabalho descreve e analisa o conteúdo expresso por esta manifestação cultural, a partir de uma perspetiva pós-colonial. Seu objetivo é demonstrar que o texto do Congo de Livramento descreve uma história de derrota – mas de uma derrota jamais apaziguada pela persistência das relações de poder, sinalizando para a existência de elementos de desestabilização da ordem simbólica e social. Expressa algumas reflexões desenvolvidas no âmbito da tese Quilombo em festa: Pós-colonialismos e os caminhos da emancipação social[1], cujas estratégias metodológicas, de caráter qualitativo, incluíram observação direta, observação participante e entrevistas semiestruturadas.
A primeira notícia que se tem de uma festa de Congado no Brasil data de 1674, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Recife, em Pernambuco (Fundação Cultural Palmares [FCP], 2009). Durante tais celebrações, geralmente vinculadas às irmandades religiosas negras com o propósito de homenagear os seus santos de devoção, costumava-se realizar a coroação de reis e rainhas, que desfilavam com grande pompa pelas ruas das cidades coloniais, seguidos por multidões festivas.
A análise do Congo de Livramento, desde uma perspectiva pós-colonial, convida a uma reflexão preliminar a respeito deste campo de estudos. Segundo Meneses (2007), o termo pós-colonialismo refere-se a um conjunto de correntes analíticas que permitem uma rutura metodológica e teórica, voltando as atenções para o peso da história e para as relações de poder impostas pelos projetos coloniais.
Vincula-se, portanto, aos desdobramentos da modernidade ocidental – entendida como o paradigma sociocultural criado a partir do século XVI e consolidado entre o fim do século XVIII e meados do XIX – que definiu as relações de poder do sistema-mundo. Conforme descreve Grosfoguel (2008), sem ocultar a ironia,
Nos últimos 510 anos do sistema-mundo patriarcal/capitalista colonial/moderno europeu/euro-americano, passamos do cristianiza-te ou dou-te um tiro do século XVI, para o civiliza-te ou dou-te um tiro do século XIX, para o desenvolve-te ou dou-te um tiro do século XX e para o democratiza-te ou dou-te um tiro do início do século XXI (p. 140).
Na busca de desconstrução das interpretações hegemónicas, um dos aspetos explorados pelo pós-colonialismo é a análise dos lugares de enunciação a partir dos quais são construídos os discursos. Desta maneira, este artigo busca explorar alguns elementos relacionados à persistência e perpetuação de memórias outras, sob a forma de narrativas que divergem dos discursos oficiais, por serem oriundas de grupos sociais que sofreram processos de silenciamento. Grupos que caracterizam, enfim, o sul metafórico – um conceito que, segundo Santos (2002), não corresponde linearmente ao sul geográfico, mas que caracteriza as parcelas da humanidade invisivilizadas e excluídas pela colonização e pela modernidade capitalista.
Apesar desta exclusão, a pretensa homogeneização do mundo pretendida pelas forças hegemónicas não preenche todas as arestas. Santos e Meneses (2009) entendem que, uma vez que o mundo é epistemologicamente diverso, revela-se a grande capacidade humana para conferir inteligibilidade e intencionalidade às experiências sociais. Eles designam esta diversidade epistemológica como epistemologias do sul.
É a partir desta perspetiva que o presente artigo busca analisar a poética do Congo de Nossa Senhora do Livramento: como um discurso que permanece, relata e formata a memória de uma população subalternizada. As discussões têm início a partir de uma reflexão sobre o conceito de festa e sobre os caminhos de manutenção e recriação das memórias coletivas. A seguir, é traçada uma breve análise sobre as Congadas, para depois serem exploradas as especificidades da dança do Congo de Livramento. É feita então uma reflexão sobre o conteúdo narrado durante o folguedo, atentando para os processos de manutenção da memória e, especialmente, de desestabilização das narrativas oficiais – o que me leva a caracterizar metaforicamente o seu texto como uma voz do sul.
Festa, memória e a gestão dos significados
Festa é um termo escorregadio, pois pode ser aplicado a uma vasta gama de situações sociais concretas. A sua definição é, assim, um palco onde se defrontam diferentes interpretações. Ela varia de cultura para cultura, de evento para evento, de dimensões dentro de um mesmo evento. Seja como for, Bakhtin (1987) a considera uma forma primordial da civilização humana. Portanto, vai muito além de um mero produto das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo e extrapola, igualmente, a necessidade biológica de descanso periódico. Mais do que tudo isso, sempre exprimiu uma conceção de mundo.
Pautado numa visão dicotómica entre sagrado e profano, Durkheim (2000) viu, por detrás de toda festa, uma conexão com o mundo religioso. Tal como na religião, nos momentos de lazer o sujeito poderia ser absorvido pela multidão, de forma a mergulhar no sentimento coletivo – a que o autor caracterizou como um estado de efervescência, propício tanto à reafirmação periódica dos laços sociais, quanto à transgressão das suas normas.
Os rituais e seus símbolos foram amplamente analisados por Turner (1979, 1987), antropólogo dedicado aos estudos dos processos, conflitos, crises, dramas. Desde uma perspetiva funcionalista e focado na liminaridade e nos movimentos, ele foi um dos principais nomes da chamada antropologia da performance, estudo de caráter multidisciplinar, que – para usar as palavras de Dawsey (2006) – dá atenção aos elementos estruturalmente arredios (p. 21).
Turner baseou-se no conceito de drama social, entendido como unidades de processos sociais harmônicos ou desarmônicos, que emergem em situações de conflito (Turner, 1987, p. 4). Como explica Vilas (2005), para Turner, durante as performances, significados, valores e objetivos de uma determinada cultura são postos em ação. Assim, ritos e carnavais, por exemplo, fazem emergir inovações de comportamento que modelam a realidade quotidiana.
A escola fenomenológica também se debruçou sobre a festa. Bataille (2002), por exemplo, pautado numa relação de oposição entre o sujeito e o mundo, entendeu a festa como a solução encontrada pelo ser humano para reconciliar-se com o todo que o cerca – uma espécie de porta aberta para a intimidade com o divino. Já para Eliade (1992), a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo (p. 17). Segundo o autor, na festa é possível reencontrar a dimensão sagrada da vida, o que permite a experimentação da santidade da existência humana como criação divina. A seu ver, toda experiência humana é suscetível de ser transfigurada e vivida num outro plano, o transumano.
Outro tema que chama a atenção dos teóricos é a relação entre ordem e desordem no espaço festivo. Bataille (1998), por exemplo, flagrou o seu caráter paradoxalmente conservador e transgressor: É uma aspiração à destruição a que se instala na festa, mas é uma sabedoria conservadora que a ordena e limita (p. 24).
A partir de uma opinião diametralmente oposta às teorias que vinculam a festa à ordem social, a relação entre festa e caos foi amplamente tematizada por Duvignaud (1991). A seu ver, festejar representa uma tensão destrutiva e ultrapassa o quadro de uma sociedade:
Os signos e os símbolos compõem a máscara dos homens confrontados com a mudança. E as festas surgem quando nós passamos de um sistema a outro, de um conjunto a outro, em que a queda de valores de um mundo não permite ainda pressentir as normas do mundo que se prepara (p. 208).
No contexto brasileiro – e no que se refere às relações entre festa, ordem e desordem – não por acaso, os cortejos e celebrações religiosas são as mais antigas atividades urbanas. Segundo Perez (2002), as Ordenações, maiores leis do Reino, chegaram a legislar a respeito, fixando as procissões anuais. Com um detalhe: a participação era obrigatória. O controlo das presenças ficava a cargo das municipalidades. A participação das confrarias e irmandades durante as celebrações era compulsória, assim como dos moradores a menos de uma légua da vila ou cidade em que se fizesse uma procissão. Quem descumprisse estava sujeito a multa, cujo valor era dividido entre o conselho e o responsável pela delação.
É certo que o calendário das festas coloniais procurava moldar a vida e os interesses das populações à aliança entre Estado e Igreja – o padroado. Este é um exemplo da capacidade da festa de reforçar a estrutura social. Isto pode se dar através da legitimação direta – como é o caso das celebrações dos nascimentos ou casamentos da realeza, por exemplo – ou por via das inversões – como pode ser considerada, sob determinado ângulo, a catarse carnavalesca, na qual o pobre é rei por quatro dias, mas volta ao estatuto de subordinação na quarta-feira de cinzas. Porém,
Ao mesmo tempo em que era imposta, a festa criava, ou não conseguia evitar, brechas que ensejavam o aprendizado da organização, da cotização, da colaboração, da transformação, resistência e dramatizações públicas de ideais e utopias dos grupos mais diversos (Amaral, 2003, p. 193).
DaMatta (1997) foi um dos pioneiros no Brasil a debruçar-se sobre os estudos dos rituais e festividades, buscando pensar sobre tais relações entre ordem e desordem. Propôs-se analisar a sociedade a partir de elementos como o carnaval, o futebol, a música e a gastronomia. Segundo ele,
É pela dramatização que um grupo individualiza algum fenômeno, podendo, assim, transformá-lo em instrumento capaz de individualizar a coletividade como um todo, dando-lhe identidade e singularidade. [ ] Tudo o que é elevado e colocado em foco pela dramatização é deslocado, e assim pode adquirir um significado surpreendente (p. 36).
O autor partiu de uma visão antagónica da sociedade, opondo o Brasil institucional – onde se dariam os macroprocessos políticos e económicos – ao Brasil quotidiano, dos usos e costumes. Sua análise dos rituais é feita a partir da oposição entre a casa (espaço privado) e a rua (espaço público), considerando o sagrado como elo condutor capaz de associar estes dois mundos, a exemplo das procissões religiosas. Já durante o carnaval, por um curto período de tempo a rua é transformada em casa – daí o seu efeito transgressor: O carnaval é a glorificação das coisas que ocorrem da cintura para baixo, em oposição ao mundo repressor e hierarquizado da burguesia (p. 117). Recorrendo a Turner, ele vê ali um espaço liminar.
A oposição casa/rua tem, com Police (2004), uma leitura histórica, que considera as relações entre brancos e negros no Brasil: ele argumenta que na rua está o povo – e os negros, dentre este povo – enquanto a casa é o espaço da burguesia branca. Ao revés de DaMatta, vê na primeira o território da anarquia e da desordem, ao passo que a casa abriga a ordem e o poder. No carnaval, o branco pode descer à rua, mas o negro não pode entrar na casa – que aqui representa o mundo tutelado pelos poderosos.
A festa enquanto tema, tal como um prisma, reflete, portanto, a diversidade de olhares sobre ela lançada. Consubstanciada pelo corpo e atravessada pela performance, permite variadas abordagens: pode ser tida como rebelde ou inofensiva, risonha ou severa, sagrada ou profana, aliada da ordem ou do caos. Seja como for, deve ser vista dentro do fervor das relações que lhe dão forma – e que, por sua vez, ajuda a formatar.
Nas presentes reflexões, busco destacar os vínculos entre festa, memória e identidades, cujos efeitos dependem das articulações estabelecidas em determinado espaço-tempo concreto. Para Guarinello (2001), a definição de festa deve estar aberta à mobilidade e às relações características deste terreno movediço. A seu ver, a festa é:
Sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa dos participantes (p. 972).
Sob este ângulo, o enquadramento da festa como transgressão ou reafirmação da ordem, como sagrada ou profana, como válvula de escape ou resistência – tudo vai depender das suturas a serem produzidas em cada contexto. Com uma ressalva: pela sua própria natureza, a festa nunca é um só desses elementos em absoluto. Características antagónicas podem conviver dentro de uma mesma festa, sem anulações recíprocas.
Em seu esforço por circunscrever o conceito de festa, enquanto forma peculiar de ação dos grupos sociais, Guarinello enumera suas cinco principais características[2]. Em primeiro lugar, toda festa envolve a participação concreta de um determinado coletivo – seja a sociedade em seu conjunto ou os grupos que a compõem, com maior ou menor expressão ou força legitimadora. Os participantes distribuem-se dentro de determinada estrutura de produção e consumo da festa, na qual ocupam lugares distintos.
Em segundo lugar, a festa surge como uma interrupção do tempo social, uma suspensão temporária das atividades diárias que pode ser cíclica, como as festas de calendário, ou episódica, como a comemoração de eventos singulares. Portanto, implica a concentração da atenção, esforços e afetos em torno de um objeto específico.
O terceiro aspeto, decorrente do anterior, é que a festa articula-se em torno de um objeto focal – que pode ser um ente real ou imaginário, um acontecimento, anseio ou satisfação coletivos – que atua como motivação da festa, como seu sentido explícito. A reunião comemorativa que constitui a festa é seu próprio objetivo, considera Guarinello (p. 971). O objeto focal, seja ele sagrado ou profano, antigo ou recente, pode estimular diferentes sensações, como euforia, fé, liberação, constrição, superação, êxtase e assim por diante. O importante é que ele funcione como polo de agregação dos participantes e como símbolo de uma identidade, mesmo que apenas circunstancial.
A meu ver, o objeto focal pode gerar várias interpretações, de acordo com os sujeitos em questão. Uma procissão religiosa, por exemplo, pode desencadear diferentes anseios, vivências e significações, conforme a faixa etária e o lugar social dos sujeitos – ainda que se suponha que todos compartilhem da mesma fé na divindade homenageada.
Por fim, o autor vê a festa como um espaço de produção. Mas isto se dá em duas direções: por um lado, a festa implica uma determinada estrutura social de produção, no sentido de que as festas não são dádivas de Deus, nem caem dos céus segundo nossos desejos (Guarinello, 2001, p. 971). Para existir, a festa precisa ser preparada, custeada, planeada e montada segundo certas regras – o que significa que a sua viabilização exige a realização de atividades no interior da própria vida cotidiana, da qual é necessariamente o produto e a expressão ativa. Ou seja: tendo em conta que, em certa medida, toda festa é sacrifício (Perez, 2002, p. 16), ela precisa ser produzida.
Mas, por outro lado, a festa também produz. Guarinello (2001) a considera uma produção social que, por sua vez, pode gerar vários produtos, tanto materiais como comunicativos, ou simplesmente significativos. E acrescenta:
O mais crucial e mais geral desses produtos é, precisamente, a produção de uma determinada identidade entre os participantes, ou, antes, a concretização efetivamente sensorial de uma determinada identidade que é dada pelo compartilhamento do símbolo que é comemorado e que, portanto, se inscreve na memória coletiva como um afeto coletivo, como a junção dos afetos e expectativas individuais, como um ponto em comum que define a unidade dos participantes. A festa é, num sentido bem amplo, produção de memória e, portanto, de identidade no tempo e no espaço sociais (pp. 971-972).
Esta caracterização, aliada à visão dinâmica de cultura e identidade, tão bem descrita por Hall (1996), ajudam-me a pensar a festa em sua diversidade. No que se refere às tradições festivas negras no Brasil, tais relações entre a festa e a formatação/reinvenção das identidades vinculam-se também à manutenção de memórias que escapam às conceções dominantes. Elas revelam um discurso que permanece – teimosamente – nas narrativas de grupos sociais cujos antepassados sofreram um processo de máxima subalternização durante e em decorrência do processo colonial. Pisa-se, aqui, no território da memória.
Segundo Pollak (1989), indivíduos de certos grupos podem teimar em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar (p. 12). O discurso colonial gerou a necessidade de apagamento das narrativas contrárias. Como se estivesse diante de uma tabula rasa, escreveu novos textos sobre outras histórias, a fim de legitimar-se.
Para Ceceña (2005), a subversão da dominação exige o reconhecimento dos mecanismos essenciais do poder. Mas passa também por uma ressignificação da comunidade como espaço autodeterminado de criação de sentidos e de realidade. E é esta capacidade de autogestão dos significados que as forças hegemônicas procuram subtrair do meio social. A insistência na perpetuação e recriação de discursos paralelos e divergentes das narrativas do centro é uma manifestação das epistemologias do sul. Como afirmam Santos e Meneses (2009),
As experiências culturais e epistemológicas que não se adequavam aos objetivos da dominação colonial e capitalista foram marginalizadas e esquecidas. Lembrá-las e reinventá-las significa defender que há um ocidente não-ocidentalista a partir do qual é possível pensar um tipo novo de relações interculturais e inter-epistemológicas (p. 18).
A comunidade recria-se quando conta a própria história. O Congo, assim como as Folias de Reis, as festas de santo e assim por diante, dão-nos pistas de narrativas que permanecem sendo contadas, através das teias que continuam a ser tecidas pelas populações. A festa, neste sentido, emerge como um espaço mais evidente, ou mesmo exuberante, que possibilita a visão de mecanismos que, no quotidiano, são mais sutis. É a coroação de um processo improvável de gestão dos significados que atravessou os séculos.
Imaginários insubmissos: festa e resistência no contexto colonial brasileiro
A dança do Congo ou Congada é uma celebração existente em várias partes do Brasil, em louvor aos santos negros – especialmente São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. São inúmeras as variantes. Alguns rituais estruturaram-se em torno da apresentação de embaixadas e de danças dramáticas, representando grupos rivais em combate. Outros não são danças, mas sim cortejos; outra variação envolve a coroação de um rei pelos participantes (Silva, 2007).
No período colonial da América portuguesa, vinculou-se às celebrações realizadas pelas irmandades negras. Estas costumavam fazer a coroação de reis e rainhas, que, com seus séquitos dançantes (Dias, 2001, p. 863), moviam-se em procissões com grande estardalhaço. Obviamente, nem sempre tais manifestações – as festas do Divino Espírito Santo, Folias de Reis, procissões das almas, Congadas, Cavalhadas e outras – eram vistas com bons olhos pelas forças dominantes. Já em 1707, as Constituições primeiras recomendavam – em vão – que as irmandades fizessem menos gastos com comer e beber, danças, comédias e cousas semelhantes e mais com ornamentos e peças para as Confrarias (Reis, 1991, p. 61).
Cunha (2001) descreve que, nas festas coloniais, a reverência ao soberano buscava reduzir a todos à condição de súditos. Porém, nas festas de todos que veneravam a Coroa, seguramente havia diferenças de intenção e gesto (p. 69). A autora indaga, por exemplo, a respeito das diferentes possibilidades de atribuição de sentido dos desfiles dos Congos nas homenagens aos reis portugueses: a presença dos negros e seus rituais significavam para alguns o reconhecimento do Império e do poder do soberano, mas como os crioulos ou negros recém-chegados interpretariam essa presença de reis africanos diante de senhores brancos?
Referindo-se a uma Folia do Divino realizada em Salvador em 1765, Reis (1991) descreve que os participantes faziam a fantasia parecer tão real que a estrutura colonial – cuja estabilidade dependia em grande parte de uma potente relação simbólica entre os súditos e os longínquos soberanos europeus – sentia-se ameaçada. Os governadores temiam que a imaginação fértil dos elementos da ínfima plebe negro-mestiça pudesse tirar lições políticas inconvenientes desses rituais de inversão [...], pondo o mundo colonial concretamente de cabeça para baixo (p. 68).
Ritual híbrido, a dança do Congo agregou a coroação de reis negros ao culto dos santos católicos. Souza (2006) destaca que tais rituais rememoravam o mito fundador de uma comunidade católica negra, na qual a África ancestral era invocada em sua versão cristianizada[3]. Conforme descreve a autora, o Congo era um espaço de construção de identidades e de expressão de poderes, [que] organizava as relações internas ao grupo e também as relações do grupo com a sociedade abrangente, no que diz respeito a hierarquias, exercício de poder e solidariedade (p. 18).
Nas suas várias versões, o mito fundador das Congadas gira em torno da aparição de Nossa Senhora do Rosário. A santa surgia dentro das águas – do rio ou mar, conforme o contexto – e, organizados em grupos separados, senhores e escravos tentavam atraí-la para que fosse resgatada. Porém, a façanha só era conseguida através dos cantos e danças protagonizados pelos negros (Silva, 2007).
Para Martins (2000), ao ser agente de ações afirmativas que transgridem a ordem do sistema opressor, o negro esvaziou, de modo indireto, o atributo passivo da divindade – reinvestindo-a de um sentido de luta e combate. Esta tendência à insubordinação também se vê refletida em canções do folguedo, como mostra o seguinte trecho de canto da guarda do Congo:
Lá na rua de baixo
Lá no fundo da horta
A polícia me prende
Sá rainha me solta!
(p. 76)
A canção insinua uma sobreposição de hierarquias – polícia versus Sá Rainha – que destrona a dominação absoluta das forças oficiais. No campo simbólico, surge uma perigosa incidência sobre a ordem, sugerindo a abertura de espaços de desestabilização.
Vale lembrar que as irmandades, às quais muitas dessas festividades estavam vinculadas, eram financiadoras de alforrias. Também é interessante observar que os títulos de reis, como no Congo, eram também atribuídos aos cabeças de levantes de escravos. Segundo Souza (2001), reis, capitães e embaixadores foram identificados como idealizadores e articuladores dessas rebeliões por testemunhas ouvidas nos processos. Ela acrescenta que, nos quilombos, também costumava haver reis e rainhas que governavam as comunidades rebeldes, conforme atestam os documentos produzidos pela administração colonial. Tais constatações oferecem pistas das relações estabelecidas entre a festa e a história da resistência negra no Brasil – ou, se preferirmos, entre o simbólico e o político.
O Congo de Livramento
Vimos que por todo Brasil existem danças do Congo que, guardando as grandes diferenças de forma e enredo, celebram o sagrado e costumam representar a luta entre reinos inimigos. No Estado de Mato Grosso, há duas manifestações do folguedo: uma delas realizada no Município de Vila Bela da Santíssima Trindade – a primeira capital mato-grossense, cuja maioria da população é negra – e outra em Nossa Senhora do Livramento, município situado no Centro-Sul do Estado.
Ambas as danças assumem a forma de um teatro a céu aberto, que representa uma guerra feroz. Também nos dois casos, o reino do Congo perde a batalha para o oponente. Mas, depois das agruras, a população oprimida encontra uma saída. Portanto, entre os ingredientes dos dois textos está uma dose de realismo (a guerra perdida), mas também de esperança e superação (a libertação dos guerreiros presos, em Livramento, ou a ressurreição dos soldados mortos, em Vila Bela).
Neste artigo, proponho-me a analisar o Congo de Livramento, originado dentro do quilombo de Mata Cavalo em meados do século XIX. A sua contextualização inicia-se a partir da própria definição da palavra quilombo: o termo surgiu no período colonial da América portuguesa, para denominar comunidades negras compostas por homens e mulheres escravizados e seus descendentes – que conseguiam escapar do sistema escravista ao formarem coletividades paralelas à estrutura vigente. Portanto, a definição de quilombo era incluída no vocabulário oficial para designar um território criminalizado, que fora alvo de duras repressões pelas forças militares.
A palavra foi ressignificada no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, que, através do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), atribuiu o direito daquelas populações às terras que ocupam secularmente. Dentre conflitos e conquistas, o país assiste atualmente a processos de reconfiguração identitária, que passam pela busca – nem sempre vitoriosa – de efetiva aplicação do que determina a Carta Magna. Portanto, atualmente a palavra quilombo é a denominação atribuída às comunidades negras etnicamente diferenciadas, com especificidades culturais e históricas vinculadas à ancestralidade africana.
O quilombo de Mata Cavalo foi formado em 1883, quando a senhora Anna Tavares fez uma doação de terras para os seus escravos, em Nossa Senhora do Livramento. A partir dos anos 40 do século passado, os seus habitantes foram expulsos para as periferias urbanas pelas elites do entorno – período em que poucas famílias permaneceram no local de origem. Depois de duas décadas em diáspora, os seus membros organizaram-se e iniciaram um movimento de retorno, graças ao qual grande parte da população expulsa voltou ao território original. Apesar de todas as pressões, e depois de resistir a grandes batalhas judiciais e várias tentativas de expulsão, hoje a comunidade é composta por 418 famílias, que pleiteiam o direito constitucional sobre as terras.
A tradição do Congo, nascida dentro de Mata Cavalo, quase se extingiu durante as décadas em que a população permaneceu dispersa. Mas, graças à iniciativa de uma liderança, Cesário Sarat, a dança foi retomada no período de diáspora, através da reorganização do grupo nas periferias urbanas onde a população passou a habitar. O passo seguinte foi a retomada da festa de São Benedito de Nossa Senhora do Livramento – onde os guerreiros do Congo passaram a apresentar-se todos os anos. Atualmente, o grupo do Congo de Livramento é formado por participantes de diversos municípios, que geralmente partilham uma ancestralidade comum, originada a partir do quilombo.
A autoria do texto perde-se nos tempos. A apresentação completa tem cerca de duas horas de duração e caracteriza-se por uma delicada beleza poética, atravessada pela ironia e por diversas palavras de origem africana. A tradição católica é temperada por outras influências religiosas e a linguagem carrega muitos hibridismos. Jesus de Nazaré, por exemplo, é substituído por Jesus de Ganazambi.
Não há, como em outros folguedos semelhantes, um momento de coroação, mas a teatralização da guerra. Os dois grupos oponentes alternam danças, cantos e declamações, que compõem o enredo. O confronto entre os dois exércitos dá-se através de uma galeria de personagens, a começar pelo próprio rei do Congo. Do lado oposto está o governante inimigo, denominado rei monarca, com seus trajes azuis. Além destes governantes supremos, outros personagens compõem as respetivas cortes, como os príncipes, generais, pés-de-fila (líderes dos soldados), secretários, caranguejis (soldados infantis) e o perturbador mucuache – o irreverente mensageiro do Congo.
Este teatro ganha grande visibilidade durante a festa de São Benedito de Nossa Senhora do Livramento, realizada anualmente em abril. Segundo Bandeira, Dantas e Mendes (1990),
Significando socialmente um saber negro, na perspectiva da alteridade, festa e Congo remetiam a um saber étnico, distintivo do grupo. [ ] O rito propiciava a emergência social de subjetividades, visibilizando o negro como presença concreta no social, resgatando sua imagem de forma positivada; contando uma outra história do negro para o grupo, do grupo para os outros negros, dos negros para o branco, para a sociedade local e regional. Como saber, o Congo inscrevia no social a competência e a criatividade do negro como pessoa (p. 41).
A celebração a São Benedito de Nossa Senhora do Livramento, apesar das suas dimensões, guarda algumas características em comum com as festas de santo existentes na região, como as peregrinações de esmola para recolha de doações e a mobilização em torno da cozinha. Apesar de ser uma festa ampla, há gratuidade e abundância de alimentos. O pequeno núcleo urbano costuma receber, naquele período, milhares de pessoas, que desfrutam da culinária local: não faltam costelinha com banana verde, ensopadão de carne com mandioca, linguiça ou carne seca com arroz, sobremesas – a cada noite, uma ementa, em grande parte garantida pela produção local.
O grupo de Congo é o grande protagonista da celebração. Os dançantes se reúnem no domingo de manhã em frente à igreja matriz, de onde sai a procissão da imagem de São Benedito, carregada sobre um andor. O grupo passa de casa em casa, dançando para todos os que abrem suas portas, geralmente com comidas e bebidas para oferecer[4]. Em seguida, o Congo retorna para a praça da matriz, onde o teatro a céu aberto é apresentado. Por fim, terminada a guerra, o grupo dança na Casa de São Benedito – um espaço dedicado ao santo situado no centro de Livramento.
A peleja entre os reinos representada pela dança do Congo é acompanhada por espectadores de várias procedências: além da população da própria sede, a cidade recebe membros das comunidades rurais; turistas, jornalistas, acadêmicos e demais visitantes de outros municípios, o que também inclui aqueles que saíram de Mata Cavalo para não mais voltarem. Como explica Odália Sarat, rainha perpétua de São Benedito[5], dentre os participantes, grande parte é parente que tá esparramado (Sarat, comunicação pessoal, 10 de junho de 2010).
O rei do Congo e a voz do sul
Antônio João Batista Campos de Arruda, o rei do Congo de Livramento, costumava acordar de madrugada para ler versos. Na época, tinha apenas dez anos e, ainda no escuro, sob a luz da lamparina, lia e repetia o texto do Congo para que o pai, analfabeto, pudesse decorar. A transcrição para o papel dos diálogos existentes na dança do Congo fora feita por um antepassado, numa máquina de escrever. Mas, para Antônio Arruda, há muito tempo a letra impressa não é mais necessária. De tanto ensinar ao pai, ele decorou todas as falas e canções.
O Congo de Livramento é a confluência de duas histórias que se atravessam: por um lado, do próprio Reino do Congo africano. Por outro, trata da história da escravidão, já do lado oposto do Atlântico. São duas narrativas que correm paralelas e que se confundem, dispostas de uma só vez sobre as camadas do discurso. Portanto, por um lado o folguedo teatraliza a decadência do Reino do Congo; por outro, revela o sofrimento das populações escravizadas pelos colonizadores.
A sobreposição de histórias gera ambivalência: o folguedo representa a memória de um reino africano concreto, ao mesmo tempo em que significa um coletivo humano mais amplo – os homens e mulheres escravizados – que, apesar de terem sido oriundos de muitos lugares, na dança do Congo são enquadrados simbolicamente num único reino imaginário e diametralmente oposto à ideia generalizada do opressor.
A memória contida no Congo de Livramento reflete a dupla derrota da população negra ali representada. Afinal, o Congo perde a batalha para o seu opositor. Ao ser questionado sobre este desfecho, Antônio Arruda confirma a dupla perda dos africanos ao cruzar, numa mesma sequência, diferentes tempos e espaços: [O Congo] perde. Mas sabe por quê? Porque o rei do Congo vem com duas classes de gente. Ele vem com o povo de Mina e Massangana. E o monarca, não. Ele antes era senhor de engenho (Arruda, comunicação pessoal, 26 de julho de 2010).
Como vimos, os exércitos de ambos os lados são compostos por vários personagens, liderados pelo rei monarca e pelo rei do Congo. Porém, é importante destacar a centralidade do mucuache, uma espécie de bobo-da-corte e mensageiro do Congo, que tem um papel decisivo tanto no momento em que a guerra é desencadeada, quanto na definição do destino do reino africano.
Tudo começa quando o monarca se sente incomodado pelo som dos instrumentos musicais – geri congo, pando, pandeiro, marimba – que vinha do Reino do Congo. A música – que, a meu ver, representa a ideia de insubmissão contida na festa – surge ali como um incômodo, uma transgressão. Para explicar o porquê de tanta música no reino do Congo, a história africana mais uma vez se confunde com a escravidão: Os negros só dançavam e cantavam, só pra ignorar a dor, afirma Arruda.
Por ordem do monarca, seu secretário vai até o Congo para mandar cessar o rumor. A ordem é desobedecida por duas vezes, até que, na terceira, o próprio monarca dirige-se ao reino vizinho, alertando: Tu não sabe que a escravidão é insensível? Como tu vens tão furioso e insubordinado? Exaltando com palavras, sabendo que eu sou guerreiro? Quer que eu pare essa coroa, ou os cadáveres em mil pedaços? (Arruda, comunicação pessoal, 26 de julho de 2010).
O Congo então se cala e o rei africano escreve um ofício ao oponente monarca, que aparentemente iria apaziguar a querela entre os dois reinos. Porém, ironicamente, a missão diplomática da entrega do documento é delegada àquele que seria o menos indicado para assumir tal responsabilidade: o mucuache. Ele sai para cumprir sua tarefa, mas vai realizando proezas[6] pelo caminho – mexe com galinhas no poleiro, rouba pipa de pinga (aguardente) e bate nas pessoas que encontra.
Depois de fazer muitas travessuras, o mucuache é preso. E é neste ponto que a guerra é desencadeada: o rei do Congo pede pela sua libertação, mas sem êxito. É assinalável a inversão de hierarquias, regidas por outra lógica, pois ali estão dois soberanos discutindo o destino de um mensageiro. Mais do que isso: quebrando todas as regras, o mucuache, presente na cena, bate no próprio rei do Congo, acusando: Você que foi culpado de eu ir preso, cara de pau!
O diálogo entre os soberanos, durante a frustrada tentativa de negociação, é também carregado de ironia. A cada acusação contra o mucuache, o rei do Congo traz uma resposta. Assim se dá o diálogo entre o monarca e o rei:
– Não, se nós soltar ele, vai haver muita proeza.
– Mas ele é gente boa, somos primos-irmãos, criados juntos.
– Olha, ele veio até aqui fazendo tanta proeza roubando pipa de pinga pra beber...
– Não, ele nunca bebeu, só quando dão pra ele ou quando ele tem dinheiro!
– ... Roubando galinha do poleiro...
– Sabe que ele nunca deixou uma galinha dormir sossegada no poleiro.
– E dando pancada...
– Ah, meu amigo, pra isso sim, ele é forte... Quando não dão nele, ele apanha!
(Arruda, comunicação pessoal, 26 de julho de 2010).
Depois de vários desafios de um lado e de outro, iniciam-se as batalhas. Trata-se do momento em que o monarca adverte: Não há voz de paz, nem de esperança, nem de caridade. Toca a manobra de guerra até a infinidade!
Neste espaço de tensão entre os dois reinos, é curioso ter em conta que a própria carta a ser entregue pelo mucuache também tinha o tom de desafio. Quando, finalmente, o monarca lê o seu conteúdo, encontra os seguintes dizeres:
Adeus, peito de flores, coração da existência; vai ser combatida na guerra uma batalha tão imensa. Desesperado, esse maroto atrevido, desavergonhado, não respeita nem minha pessoa, nem meu filho, príncipe querido, nem meu secretário, nem meu general da guarda. Nem a coroa e cetro que me favorece. Oh, cetro, tenho dez mil lanças para combater e vencer a campanha que encontramos. Com tanta dificuldade que aglomerou uma multidão, tanto sangue derramado dentro do meu coração. Eu não posso ter alegria, tudo pra mim é paixão. Cala-te, poeta!
(Arruda, comunicação pessoal, 26 de julho de 2010).
Na guerra, ocorrem danças e espadas se cruzam. Até que, por fim, o rei do Congo e seu exército são derrotados pelo monarca. Eles entregam-se e são presos no castelo do vencedor por sete anos e sete dias. Durante o cativeiro, o rei chora os seus lamentos:
Com verso eu cantava tanto, com poder da formosura.
Hoje eu vou chorar sem verso, na constância da aventura.
Vou me pintar de tambor do que sofre o meu coração.
Eu nesta lei tão rigorosa, nesta tão dura prisão.
Desde agosto, nesses dias tocaram para mim,
desde o princípio do meu pranto, meus desassossegos terão fim.
Valei minha mãe do céu, vou morrer inocente,
mas, estando no meu posto, ainda morro contente: rei de Congo
(Arruda, comunicação pessoal, 26 de julho de 2010).
E prossegue: Aquele triste limoeiro, naquele alto degrau, aonde sobem e descem momentos bons e maus. Valei minha mãe do céu, estou cansado de padecer. Enquanto ato de mão firme, adeus príncipe, adeus secretário, eu vou morrer!
É nesse ápice de desesperança, quando o rei do Congo, cansado do cativeiro, entrega a sua espada ao secretário e afirma que seu destino é a morte, que o mucuache ressurge em cena, trazendo nova reviravolta à história. De longe, o monarca começa a ouvir instrumentos tocados em Luanda e Angola. Mais uma vez, como no início, a música é associada no texto à ideia de rebeldia. E só o mucuache saberia explicar o porquê daquela buia matinada[7].
O fato é que o mucuache já preparava uma conspiração para libertar o rei do Congo e seus oficiais. Ele vai ao castelo inimigo e, no calor da discussão, recusa-se a ser silenciado e chega a bater no rosto do monarca, dizendo: Eu não calo e não posso calar. Por fim, consegue convencer o soberano a soltar os cativos.
Mas, entre o acordo firmado e a efetiva libertação dos prisioneiros, muito tempo se passou. Esta parece ser uma réplica irónica do processo de libertação dos escravos no Brasil, que, entre avanços e recuos, demorou décadas: sucessivas leis foram dando sinais de mudança e apontando para a abolição, mas a escravidão arrastou-se até 1888. A teatralização disso, percetível na dança do Congo, dá-se quando o monarca anuncia a soltura do rei inimigo (aqui tratado como embaixador): Acabou-se a minha ira, acabou-se a minha dor, recebei este ofício, a soltura do embaixador. Porém, conforme a descrição de Antônio Arruda, o duque, encarregado da libertação, aproxima-se do rei do Congo, indagando:
– Embaixador, tu quer soltura?
– Quero, sim senhor.
– Não, você ainda espera mais um pouquinho, mais uns sete dias. – E sai. Vai lá no final da fila, volta, rodeando, olha dum lado, olha do outro... Aí ele volta de novo: – Eita, embaixador, tu quer mesmo soltura?
– Quero sim, senhor, tou com saudade do meu povo.
– Ah, você espera mais dois mês aí. – E volta lá, vai lá e volta: – Então, embaixador, você quer mesmo soltura?
– Quero sim senhor! Faz sete anos e sete dias que eu tou aqui preso e acorrentado!
(Arruda, comunicação pessoal, 26 de julho de 2010).
Então, finalmente, o duque diz: Embaixador, do céu me caiu um cravo, nasceu uma açucena no chão. Não há gosto nesse mundo que acabe sem paixão. Faz sete anos e sete dias que tu tá preso e acorrentado; então, embaixador, que a sua soltura está dado.
E o teatro termina com uma aclamação a São Benedito, o grande homenageado. As canções de despedida louvam o santo, mas também homenageiam o carangueji, soldado-criança. Já vimos que durante a grande festa de Nossa Senhora do Livramento, depois da apresentação, os dançantes seguem para a Casa de São Benedito, onde formam dois círculos e cantam em louvor ao santo. Por fim, o azul e o vermelho dos dois reinos inimigos espalham-se pelas ruas da cidade.
Considerações finais: o mucuache e os espaços de transgressão
Tudo começa a partir da festa: no Congo de Livramento, a insatisfação inicial foi desencadeada porque os batuques soavam no reino africano e, incomodado, o monarca mandou cessar o rumor. Já sabemos que a desobediência à ordem, seguida pelo envio de um ofício através do mucuache, foram agravando os desentendimentos, até a guerra tornar-se inevitável.
Sabemos também da centralidade do papel do mucuache para todo o enredo: é ele quem leva o ofício e é preso; sua prisão desencadeia a batalha e, incrivelmente, este personagem não é feito prisioneiro de guerra – em certo momento, ele escapa do castelo do monarca e volta para Luanda. De lá, prepara uma conspiração para resgatar o rei, mas antes consegue negociar a sua libertação. E ele até chega, em diferentes momentos, a bater no rei do Congo e no monarca, sem receber, por isso, nenhuma punição.
Trata-se de um contexto claramente carnavalesco. Bakhtin (1987) ensina-nos que o carnaval se situa nas fronteiras entre a arte e a vida. O autor também observa que as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise e de transtorno. Desta maneira,
Durante o carnaval é a própria vida que representa e interpreta [...] uma outra forma livre da sua realização, isto é, o seu próprio renascimento e renovação sobre melhores princípios. Aqui a forma efetiva da vida é ao mesmo tempo sua forma ideal ressuscitada (p. 7).
Portanto, à partida pode parecer uma incoerência que justamente o mucuache tenha sido encarregado de levar o ofício ao opositor do seu reino. Toda a trama tem início com uma insubordinação – os batuques no Congo – e, quando esta atitude transgressora parece prestes a cessar, a reconciliação com a ordem é frustrada pela escolha do mensageiro. Soa como uma ironia: o retorno à ordem, representada pelo ofício (burocracia de Estado) acaba por ficar sob responsabilidade do menos responsável – o mucuache, que, obviamente, inviabiliza qualquer possibilidade de conciliação. Sob determinada perspetiva, tal escolha parece completamente incoerente. Mas, alterando-se o ângulo de visão, novos sentidos emergem.
Vejamos: na batalha, o rei do Congo sai perdedor, mas isso não é suficiente para que o seu opositor, o monarca, seja legitimado. Através do processo de carnavalização, em nenhum momento aquela vitória é tida como legítima, em função de algum direito que tal personagem efetivamente possua. É certo que ele vence a batalha, porque tem mais força. Mas há uma deslegitimação desse poder e a preservação de outra memória.
Assim, a comunidade nutre-se da memória da sua derrota, que é sentida como historicamente injusta – como um produto do poder dominante. Neste ponto, emerge a importância do mucuache, o elemento desestabilizador da narrativa. Acima do bem e do mal e indiferente às hierarquias, ele torna evidente o caráter precário – e não necessariamente legítimo – das relações de poder.
Se não fosse a ação irreverente do mucuache, a dicotomia do enredo seria clara e imperturbável. Há evidentemente um vencido e um vencedor, sendo que o último não é tido como legítimo. De um lado, está o monarca, soberano detentor do poder; do outro, o rei do Congo, personagem derrotado, subalternizado, que, em última análise, representaria os escravizados e seus descendentes. Uma vez que o lado vitorioso não tem legitimidade, a memória histórica associada a isso é carregada de sofrimento. É uma memória da injustiça.
Mas a dicotomia perde a estabilidade perante a presença perturbadora do mucuache. De certa maneira, a dimensão carnavalesca do espetáculo impede que a comunidade simplesmente fique aprisionada no modo trágico. A tragédia não se instala; a culpa não é aceite. É justamente o mucuache, com suas proezas e sua irreverência, que impede a instalação do modo trágico, porque ele evita a cristalização da história. A memória é assim reinventada, mantendo acesa a capacidade de revolta.
A loucura do mucuache relaciona-se à não-aceitação da ordem natural das coisas que, ao fim e ao cabo, seria uma tragédia. Ele inviabiliza o conformismo. O elemento cômico é inserido à trama, de forma a abrir novas possibilidades, menos injustas, mais legítimas, ao seu desfecho. Ao invés de uma dicotomia estável – marcada pelo monarca/colonizador/senhor de engenho versusrei do Congo/colonizado/escravizado – tem-se um território de possibilidades e surpresas, que acaba por tornar possível a um mensageiro esbofetear o rei inimigo e até o seu próprio rei, sem que as consequências sejam pré-determinadas.
Ao descrever o poder contido no riso, Bakhtin (1987) lembra que, através dele, brinca-se com o que é temível, faz-se pouco dele: o terrível transforma-se num alegre espantalho (p. 79). Elemento transgressor, o mucuache é, assim, o mediador da libertação. Não por acaso: ele representa o inconformismo, certa dose de loucura e, num certo sentido, de utopia.
A dança do Congo de Livramento é um encontro com a memória – ou a reinvenção da memória, se preferirmos. Através da mediação do mucuache, a comunidade conta a derrota do reino sem, no entanto, identificar-se com a posição de vencida. Nesse sentido, acredito que seja um exemplo de epistemologia do sul: trata-se de uma longa história de perda – gerada pelo processo colonial e seus desdobramentos. Mas é também uma derrota parcial: como no enredo do Congo, quando tudo parece perdido, surge, surpreendentemente, uma via de escape, o que demonstra a incompletude da colonização hegemónica dos imaginários.
Referências
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Recebido 7 de abril de 2012; Aceite 8 de janeiro de 2013
Notas
[1] Em andamento, pelo Centro de Estudos Sociais e pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (CES/FEUC), com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
[2] Tomo a liberdade de não enumerá-las na ordem escrita pelo autor, mas de acordo com a sequência que eu própria escolhi.
[3] O grande impulso do cristianismo no reino do Congo se deu sob o reinado de D. Afonso I, de 1507 a 1542, que conquistou o trono lutando contra um irmão (Souza, 2001).
[4] Durante a festa, geralmente os membros do Congo tomam apenas vinho, mas um ajudante, empurrando uma carriola, trata de recolher as bebidas que vão sendo doadas pela população.
[5] Rei perpétuo ou rainha perpétua é, em Mato Grosso, a denominação dada àqueles que organizam e promovem determinada festa em homenagem a um santo, com o qual assumiram um compromisso vitalício.
[6] Interessante a ambiguidade da palavra proeza, que neste contexto significa travessura, confusão, mas também pode ter o sentido de ações admiráveis, façanhas.
[7] É interessante ter em conta que uma das possíveis significações da palavra matinada é festa matinal. Aqui, conforme a interpretação de Antônio Arruda, a expressão assume o sentido de segredo.