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Revista Lusófona de Educação
versão impressa ISSN 1645-7250
Rev. Lusófona de Educação n.13 Lisboa 2009
O outro lado da implementação do LMD em França: um novo quadro para pensar as políticas de educação e de formação
Jean-Louis Derouet*
O objectivo deste artigo é o de ir além da aparência de uma implementação suave do sistema LMD em França. Primeiro, o autor mostra um certo número de décalages. A universidade é enquadrada por redes que, por serem minoritárias, não deixam de ser menos importantes: as grandes écoles e o ensino superior não universitário. Esses sectores não entram no sistema 3.5.8. O essencial é, talvez, uma série de mudanças que adaptam o ensino superior ao novo espírito do capitalismo: uma organização em rede, uma filosofia social centrada sobre o projecto. Estas não estão directamente ligadas ao LMD mas apoiam-se neste novo contexto para progredir. Um cepticismo desenvolve-se sobre as vantagens do alongamento dos estudos. Uma nova concepção de justiça emerge, que advoga mais uma formação ao longo da vida. As medidas administrativas tomadas em nome do imperativo da accountability põem em execução um governo por normas de qualidade europeias. Enfim, a substituição de um quadro de referência nacional por um internacional conduz a uma mudança do modo de formação das elites. Não se trata tanto da reprodução da cultura clássica como de uma integração precoce em redes internacionais.
Palavras-chave: Universidade; processo de Bolonha; democratização; formação das elites; mundialização; qualidade
Beyond the implementation of the bachelors, master, and doctorate degree structure : a new framework to think out education and training policies
The purpose of this paper is to go beyond the apparently smooth implementation of the bachelors, master, and doctorate degree structure in France. The author suggests that universities are framed by minority yet important networks grandes écoles and non-academic higher education. What is essential may be a series of changes that adapt higher education to the new spirit of capitalism a networked organisation, a project-based social philosophy, etc. These transformations are not directly related to this degree structure but take root in this new context to make progress. The benefits. of the lengthening of the study period leave some skeptical. A new conception of justice encouraging lifelong training is emerging. The administrative measures taken in the name of accountability contribute to setting up a government based on European quality standards. Finally the substitution of an international framework of reference for a national model changes how elites are trained. What counts now is less the reproduction of an academic culture than the early inclusion in international networks.
Keywords: university, Bologna process, democratisation, education of elites, globalisation, quality
A França surge como o bom aluno do LMD (License-Master-Doctorat). Este sistema foi lançado em 1998, na Sorbonne, pelo ministro Claude Allégre. Por conseguinte, as universidades submetem-se, de quatro em quatro anos, a uma contratualização com o Estado. As suas propostas, em matéria de financiamento, de vagas e de diplomas só são aprovadas se se enquadrarem nas orientações ministeriais, pelo que todas as universidades implementaram, pelo menos formalmente, um sistema LMD em 2006 ou 2007. Uma aparência tão linear convida a um olhar mais profundo. Embora a forma de integração da lógica 3-5-8 num tecido histórico diversamente organizado possa suscitar inúmeras questões, o objecto deste artigo não se limita ao estudo da implementação do LMD em França. Trata-se igualmente de colocar em evidência as mudanças que, sem estarem directamente ligadas ao LMD, se inscrevem no mesmo domínio e que, a longo prazo, talvez venham a ter consequências mais importantes: por exemplo, a montante, o fim de uma «excepção francesa» do Estado forte que reformulava as resoluções internacionais ou, a jusante, uma mudança do modelo de formação das elites.
A grande aposta: pôr fim à excepção francesa e lançar o sistema educativo francês na «grande agitação» da concorrência internacional
A primeira das evoluções corresponde a um projecto, o de Claude Allègre, Ministro da Educação do governo de Lionel Jospin, entre 1997 e 2000. A influência das resoluções internacionais, até essa altura, era repensada pelas tradições da administração francesa. O historial da implementação da escola única é eloquente acerca desse ponto. A «lei de modernização do sistema educativo» de 1975 corresponde, obviamente, a uma orientação apresentada pela OCDE que preconiza a junção de todos os alunos no seio de uma «escola compreensiva» até aos 15 ou 16 anos. Todavia, a sua execução enquadra-se no prolongamento de um debate francês que remonta ao projecto da escola única, elaborado por Ferdinand Buisson, no âmbito do programa do Partido Radical em 1909 (Prost, 1981). A história deste projecto é marcada por referências tão míticas quanto o programa dos Compagnons da Universidade Nova, após a Primeira Guerra Mundial, ou o plano Langevin Wallon, na Libertação. A escola única demarca-se nitidamente do modelo da escola compreensiva preconizado pelas organizações internacionais, nomeadamente no que diz respeito à definição dos conteúdos. O seu objectivo é manter e estender a tradição da alta cultura de nível secundário e não constituir uma «cultura média» em que se funde a cidadania comum. Os debates foram muito acesos no período da execução da reforma e até ao relatório d e Louis Legrand, Pour un collège démocratique (1982), mas o resultado não deixa margem para dúvidas: o projecto curricular da escola única francesa corresponde muito mais ao programa de acesso das classes populares à cultura de nível secundário do que à concepção anglo-saxónica (Derouet, 2002). Podemos lamentá-lo, pensar que este objectivo é irrealista e que esta escolha constitui uma das causas da crise actual (Dubet & Duru-Bellat, 2000), mas, no entanto, manifesta uma independência que desapareceu no fim do século XX.
Esta evolução é ainda mais importante porque a mensagem veiculada pelas organizações internacionais também mudou. Os trinta gloriosos anos do após Segunda Guerra promoveram um projecto de democratização baseado em dispositivos de educação compreensiva que eram, por sua vez, apoiados através da implementação de pedagogias compensatórias para os alunos com dificuldades. A crise de 1973 pôs em causa este optimismo. O relatório A Nation at Risk, nos Estados Unidos (1983), alargou o quadro de referência. A questão já não é a igualdade ou a coesão no interior de uma sociedade, mas sim a capacidade de um país fazer face à concorrência internacional. Donde decorre a alteração do quadro de implicações. As políticas compensatórias mobilizam meios importantes em função de resultados difíceis de avaliar. Não será mais pertinente canalizar esses meios para a formação de elites capazes de manter o nível do país na esfera da competição internacional?
Uma boa formação de base continua a ser necessária para as massas: a qualidade da mão-de-obra constitui evidentemente um trunfo num universo concorrencial. Por isso, há que regressar ao essencial (back to basics) tendo em conta outra exigência: a despesa da educação não deve aumentar a pressão fiscal, uma vez que, numa economia mundializada, esta força à deslocalização das actividades e dos empregos. Por conseguinte, é preciso conter a despesa e, pelo menos, uma parte dela deve ser transferida para as regiões e para as famílias, o que implica conferir-lhes certos poderes (Hutmacher, 2005).
As organizações internacionais propõem, assim, ao sector da educação e da formação que saia da crise aberta em 1968, seguindo o mesmo modelo que permitiu ao capitalismo sair da crise em 1973. Luc Boltanski e Ève Chiapello caracterizam este «novo espírito do capitalismo» a partir do estudo dos manuais de gestão (2000).
Auto-controlo, autojustificação (e não autogestão) em equipas pluridisciplinares, lógica de participação numa empresa em rede, flexível e inovadora, são agora as palavras-chave do neomanagement; a bitola pela qual se mede a dimensão dos seres e das coisas é a capacidade de gerar actividade. Integrar-se nas redes, impulsionar projectos, ser moldável, flexível, polivalente, autónomo mas igualmente dotado de intuição, de competências relacionais, saber arriscar ou inspirar confiança são as qualidades exigidas àquele ou àquela que já não é um ‘quadro’, mas sim ‘director de projectos’, ‘gestor’ ou ‘coach’(Frétigné, 2001).
Reencontramos esta orientação nas directrizes das organizações internacionais: uma autonomia dos estabelecimentos de ensino que liberta a capacidade de projectar dos indivíduos e das organizações; uma governação local que coloca no mesmo plano parceiros públicos e privados; uma organização dos estabelecimentos de ensino em redes internacionais e não em sistemas nacionais; uma continuidade entre o período de estudos e a formação profissional para constituir redes de formação ao longo da vida; um objectivo geral de flexibilidade e de mobilidade da mão-de-obra, etc.
É neste contexto que temos de interpretar a decisão de Claude Allègre. Ele quis romper com a tradição e submeter o sistema universitário francês à prova da concorrência internacional. O que, por sua vez, correspondia à sua experiência de investigador (a comparação internacional é fonte de qualidade) e à sua vontade de «atacar o elefante branco», isto é, de atingir os pontos rígidos do sistema e, em particular, o que ele considerava o corporativismo dos professores (Derouet, 2006). O facto de ele ter iniciado a implementação da nova doutrina para a universidade corresponde, talvez, a uma oportunidade que se inscreve também no seguimento do relatório A Nation at Risk e na sua preocupação em concentrar os esforços na formação das elites. No entanto, o alcance da decisão de Claude Allègre é bem mais vasto. A sua decisão inaugura um período em que as resoluções internacionais deixaram de ser repensadas pelas instâncias nacionais que as reformulam e adaptam essencialmente à luz da tradição do Estado forte. As fronteiras são abertas e as resoluções aplicam-se directamente. Este objectivo foi formalizado na Cimeira de Lisboa. Nos termos dos Tratados de Roma, Maastricht e de Amesterdão, a educação ficava sob a tutela dos estados, sendo que a União só poderia intervir no domínio da formação profissional. A declaração da Sorbonne e o processo de Bolonha inscrevem-se precisamente nesse quadro: embora a perspectiva seja a de criar uma Europa de educação e de cultura, a decisão apresenta-se como uma convergência de Estados soberanos que manifestam a sua vontade de agir no mesmo sentido e não como uma medida comunitária. O processo alterou-se com a Cimeira de Lisboa que estabeleceu um objectivo: a Europa deve ocupar o primeiro lugar numa economia do conhecimento em 2010. As políticas de educação e de formação devem organizar-se em função deste objectivo e cada Estado deve informar os outros dos resultados que obtém. A partir daqui implementa-se um sistema de comparação (benchmarking) que pode resultar numa troca de boas práticas (Lawn & Nóvoa, 2005). Sabemos à partida que o objectivo não será atingido, mas o mecanismo subsiste e até se consolida. Para que a comparação seja possível, é necessário passar de uma avaliação baseada em programas nacionais para uma baseada em padrões de competências internacionais. Esta concepção está na base dos grandes inquéritos (PISA, TIMSS, IEA, etc.) que depois a divulgam e generalizam (Normand, 2005). Embora contestem o modo como os indicadores são construídos e denunciem a lógica de palmarés que alimentam, os actores sociais têm em conta os seus resultados e põem-se em marcha para obter uma boa classificação na altura do próximo desafio.
A descrição do objectivo de uma plataforma comum, que constitui um dos pontos centrais da nova lei de orientação em educação votada em 2004, ilustra a mudança de perspectiva. O princípio está todo armado por reflexões das organizações internacionais. Face à crise do ideal de igualdade de oportunidades, estas adoptaram uma reflexão ética que tende a substituir a noção de igualdade pela de equidade. Medida que acabou por reforçar as pedagogias compensatórias a partir da ideia de desigualdades justas. Mas esta política sai cara e os seus efeitos são difíceis de avaliar. É preciso reformular a concepção de equidade em função do quadro estabelecido pelo relatório A Nation at Risk, isto é, regressar ao essencial para as massas. Esta orientação transformou-se numa proposta concreta: passar do ideal de igualdade de oportunidades para o objectivo de igualdade de resultados. Podemos esquematizar o raciocínio da seguinte forma: o ideal de uma redistribuição das posições sociais entre as gerações é utópico; este recuo será, em todo caso, menos grave e mais bem aceite pela população se a todos se garantir um mínimo; este projecto cruza-se com o que diz respeito à entrada em concorrência dos sistemas educativos; a base comum deve ser definida a partir de padrões de competências internacionais e constituir uma plataforma para a flexibilidade e para a mobilidade de mão-de-obra. Esta orientação dá forma ao programa No Child Left Behind, executado pelo Presidente Bush durante o seu primeiro mandato. Foi retomada pela comunidade europeia que definiu a base de competências mínimas para uma formação ao longo da vida. A lei de orientação francesa utiliza os resultados desta reflexão e tenta conjugá-los com a tradição francesa da escola única e, em certa medida, com o modelo do Estado Providência, colocando em primeiro plano um dos seus aspectos: o Estado garantiu a todos os jovens residentes em França um determinado número de saberes e de competências mínimas no fim da escolaridade obrigatória. Há, por sua vez, continuidade e ruptura com o ideal de cultura comum, elaborado pelo Plano Langevin Wallon (Mialaret, 1997) e trabalhado pelos pedagogos após a Segunda Guerra Mundial (Legrand, 1982; Romian, 2000). A sua definição compreendia várias dimensões (artísticas, físicas, mas também cívicas) que correspondem a um ideal de desenvolvimento da pessoa que desaparecia numa concepção regida pela competição económica. Os especialistas são perseguidos essencialmente por duas exigências contraditórias. A regulação do sistema assenta em objectivos mensuráveis e em comparações internacionais que permitem definir os níveis de performance de cada sistema. Por outro lado, a inquietação face às dificuldades encontradas pelas crianças imigradas leva a exigir à escola o desenvolvimento de uma dimensão patrimonial. Mais do que os saberes e as competências, a escola deverá inculcar, nos futuros cidadãos, os valores que os unem e promover a constituição de um espaço público onde as diferenças sejam, por sua vez, respeitadas e debatidas (Gautherin, 2005). Nós apercebemo-nos da complexidade das questões com que se confrontam os especialistas, mas o essencial para o nosso propósito não é isso. Nos anos 1970, a palavra de ordem internacional da escola compreensiva foi reconstituída a partir da tradição francesa da escola única. Mas, actualmente, a referência à tradição nacional não será apenas uma roupagem destinada a fazer com que a França aceite a sua entrada num sistema governado pela concorrência internacional?
A passagem, extremamente provocante, de Claude Allègre pelo Ministério da Educação foi de curta duração, mas a nova organização implementou-se com poucas crises e com poucos verdadeiros debates. Uma razão é, sem dúvida, a crise geral da crítica em relação ao modo de organização proposto pelo novo espírito do capitalismo (Van Haecht, 2001; Derouet Besson, 2001). Este incorporou uma grande parte das críticas formuladas pelas ciências sociais dos anos 1960 e 1970. A denúncia do Estado Leviatã (Crozier, 1987), o questionamento da cisão entre a escola e a vida, quer se trate da organização ou dos saberes que ela ministra (Derouet-Besson, 2005); a crítica ao taylorismo e o destaque das capacidades de iniciativa dos actores e do carácter estruturante do projecto, etc. Esta incorporação permite-lhe ocupar a totalidade do espaço e virar o poder da crítica contra si própria. É difícil defender a tradição do Estado forte contra a ascensão do mercado sem se passar por um jacobino obsoleto; exprimir reservas face ao liberalismo inerente às instituições europeias é arriscar-se a ser rotulado de nacionalista; a defesa do direito do trabalho, conquistada pelo movimento operário após 1848, expõe-se igualmente à acusação de defender interesses corporativistas, etc. E quem poderá ser contra a circulação de estudantes na Europa e o desenvolvimento de um cosmopolitismo que submete os valores de uma sociedade à prova de outros olhares?
Há, portanto, poucas críticas fundamentadas a esse projecto. A polémica do colectivo ABELARD Universitas calamitatum (2003) é disso exemplo e, ao mesmo tempo, manifesta os seus limites. Esse coloca em evidência os riscos de empobrecimento da cultura e do pensamento único mas, em contrapartida, o pseudónimo que escolheu e o título latino colocam-no do lado de uma tradição facilmente denunciável: uma França que acredita que os seus valores são universais; na verdade, uma corporação que pensa governar o mundo a partir do cimo da montanha Sainte-Geneviève. Após a querela desencadeada pelo livro de Milner, em 1984, gerou-se uma tensão permanente entre uma «filosofia perennis», que se reclama da República (Muglioni, 1984), e os diferentes aspectos da modernidade. Os adversários podem ser os pedagogos, a Europa ou a mundialização, mas a denúncia permanece a mesma e suscita uma questão que remonta, pelo menos, aos Pais da Igreja: o que é a fidelidade à tradição? É a permanência das mesmas formas num mundo em mudança? Não haverá também meios de dar uma nova vida aos princípios, inventando novas expressões? No presente caso, não se trata, evidentemente, de nos moldarmos ao quadro proposto para o novo espírito do capitalismo, mas sim de nos interrogarmos sobre um combate eficaz: a conservação da tradição cultural poderá ignorar totalmente os resultados das ciências sociais e as evoluções económicas?
A partir desta constatação, é possível deslocar a interrogação. Teremos de concentrar a nossa atenção no conteúdo aparente da reforma? Este tem certamente implicações que já foram desenvolvidas (Charlier & Croché, 2003), mas estas poucas páginas gostariam de chamar a atenção para outros aspectos. Antes de mais, importa questionarmo-nos sobre o impacto dessas medidas na vida real. A verdadeira oposição não se mostra e argumenta pouco em público: arrasta os pés, faz valer as dificuldades, o que pode ser muito eficaz e resultar na aparente implementação da reforma. Por outro lado, a universidade assiste a verdadeiras mudanças que se inscrevem na mesma lógica do LMD, mas que não lhe estão directamente associadas.
Esta análise, por conseguinte, será apresentada em duas partes. A primeira estuda a implementação do LMD em França e os seus limites. A República apresenta uma tradição de ensino superior diferenciado. A universidade reúne as grandes multidões mas está integrada em redes que, embora minoritárias, não são menos importantes: as grandes escolas e o ensino superior não universitário. Estes sectores não entram no sistema 3.5.8. Tratar-se-á de uma «dependência do desvio» que fará parte, pouco a pouco, da classe ou de um embrião de resistência que poderá esvaziar a reforma de uma parte do seu sentido? A segunda estuda algumas mudanças essenciais que surgiram no ensino superior sem estarem directamente associadas ao LMD. A primeira é o cepticismo que se gera em torno dos benefícios do prolongamento dos estudos. A passagem de uma massificação do ensino superior e secundário para uma formação ao longo da vida mudará as próprias bases do sistema. Uma outra diz respeito ao conjunto de medidas administrativas que, em nome do imperativo da accountability, instauram uma governação baseada em normas de qualidade europeias. Por último, a substituição de um quadro nacional por um quadro de referência internacional desencadeia uma alteração no modelo de formação das elites. Institui-se, assim, um novo sistema de dominação, ao qual é praticamente impossível resistir de cara descoberta e que implica, por isso, uma interrogação sobre novas formas de resistência baseadas em subterfúgios.
A inscrição do LMD num ensino superior diferenciado: «dependência do desvio» ou resistência?
Os politólogos interrogam os «chavões» que encontramos um pouco por todo o planeta: autonomia dos estabelecimentos de ensino, formação ao longo da vida, LMD. Esta omnipresença significará uma verdadeira mundialização das políticas de educação? Talvez, mas também é possível que esses termos se inscrevam em contextos diferentes que reconfiguram o seu sentido. É o que eles designam por «dependência do desvio». Qual o seu sentido no caso do LMD em França?
A universidade tornou-se uma universidade de massas (1,5 milhões de estudantes), mas representa apenas uma parte do ensino superior. A elite continua a ser formada nas grandes écoles. Os concursos, muito difíceis, exigem a frequência de aulas de preparação geralmente ministradas em liceus dos bairros burgueses. Este conjunto constitui um sistema essencial apesar de ser numericamente pouco significativo (75 a 80 000 estudantes). Há já algum tempo que as universidades desejam integrar esta rede paralela que as priva dos seus melhores estudantes. O LMD reforça a sua posição e as exigências da Conferência dos Presidentes das Universidades. Mas as universidades têm poucas hipóteses de o conseguir numa altura em que o interesse pela formação das elites volta a estar em primeiro plano. Este sistema dual constitui uma garantia: as crises das universidades não afectam a reprodução das elites, uma vez que essa é assegurada em outro lado. Permite igualmente manter o mito da democratização: todos os alunos com o ensino secundário têm acesso à universidade e as propinas não são muito elevadas. Esta massificação não tem nada a ver com uma real democratização mas «acalma as hostes». Além disso, os dirigentes são formados nas grandes écoles e a solidariedade permanece muito forte. A este acrescentam-se outros sectores de elite que só se encarregam de estudantes a partir do 3.º ciclo e asseguram a transição entre a universidade e a investigação: a École des Hautes Études, o Collége de France, o Museu, o Observatório, etc. Estes estabelecimentos podem igualmente apoiar-se na sua tradição de excelência para se manterem à margem do novo sistema.
Num registo completamente diferente, existe também um ensino superior não universitário que prepara para a vida profissional: ensino secundário+2. Esta abre-se às profissões do sector terciário e de serviços (secretariado, contabilidade, vendas, etc.) que corresponde às necessidades das empresas. E, por outro lado, vai de encontro à procura de democratização de muitas famílias populares, na medida em que as que hesitam em matricular os seus filhos em estudos longos encontram nele uma saída mais sólida do que em cursos semelhantes de BTS (brevets de technicien supérieur), leccionados nos liceus. Os IUT (Institutos Universitários de Tecnologia) têm um carácter universitário mais consolidado. Alguns tentam, aliás, abrir filões de excelência associados a redes internacionais. No entanto, o seu carácter profissional faz com que sejam lugares de acolhimento de jovens de origens modestas.
Mesmo na universidade, o sistema 3-5-8 implementa-se sem destruir a anterior licenciatura. O LMD suprime o nível ensino secundário+4 que correspondia à antiga licenciatura. Mas muitos concursos administrativos (inclusive os da função pública) recrutam sempre a esse nível. As universidades são, portanto, obrigadas a distinguir o «Master 1» (ensino secundário+4) e o «Master 2» (ensino secundário+5) e a emitir um certificado no fim do Master 1. Podemos, evidentemente, considerar esta situação transitória, porém, ainda não se perspectiva uma mudança da definição dos concursos.
Por agora, é impossível vislumbrar o sentido destes desfasamentos. Alguns talvez correspondam a um período de adaptação, ao passo que outros constituem ilhéus de resistência que esvaziam a reforma do seu sentido, criando múltiplas excepções de forma a manter o antigo sistema sob a roupagem do novo.
Algumas mudanças de fundo no ensino superior: a dúvida das classes populares sobre os benefícios do prolongamento dos estudos; a instituição de uma governação segundo normas europeias de qualidade; a mudança do modelo de formação das elites.
As primeiras avaliações da implementação do LMD mostram resultados modestos (National Report 2004-2005). A mobilidade dos alunos continua reduzida. Não há dúvida de que o obstáculo das línguas é importante: os estudantes franceses dominam mal as línguas estrangeiras e as viagens não fazem parte dos seus hábitos. Os obstáculos financeiros não são de desprezar, apesar de certas regiões disponibilizarem bolsas para a mobilidade internacional que não são usadas na sua totalidade. Mas esse não é o factor essencial. O LMD constitui apenas um aspecto, e não forçosamente o mais importante, do alinhamento progressivo do sistema francês com as resoluções internacionais: a passagem de um período de estudos separado da produção para uma formação ao longo da vida; uma racionalização da gestão que conduz a uma concentração e a um alinhamento com as normas de qualidade europeias; e a integração da formação das elites em redes internacionais.
A dúvida sobre os benefícios do prolongamento de estudos e a canalização da esperança para a formação ao longo da vida
Em 1984, o ministro Jean-Pierre Chevènement dera a palavra de ordem «80% de uma geração com o ensino secundário», que correspondia à tendência identificada por Antoine Prost (1983): depois do colégio único, o movimento de massificação atingia os liceus. O desafio foi recebido com entusiasmo pela sociedade. Entre 1985 e 1995, a percentagem de jovens que terminava o ensino secundário não parava de aumentar, atingindo 67% em 1995. Nestas condições, podíamos pensar que se o objectivo estabelecido em 1984 não fosse atingido em 2000 sê-lo-ia um pouco mais tarde e o movimento afectou naturalmente a universidade a partir de 1995. Foi nessa altura que a curva começou a flutuar para, em seguida, voltar a cair. Mas em 2004 ascendeu aos 62%. Este fenómeno não foi destacado pelos especialistas nem pela imprensa por ser pouco estudado. São possíveis, pelo menos, duas interpretações. Uma remeteria para o individualismo metodológico, isto é, uma antecipação racional das hipóteses de sucesso, que são fracas para as crianças de origem popular, pois, nem eles nem a sua família têm interesse em fazer sacrifícios que os estudos longos implicam. A outra interroga sobretudo a modalidade de escolarização. O ensino secundário foi concebido para as crianças da burguesia. Fez-se um compromisso com as classes médias nos anos 1930 que produziu efeitos muito positivos a partir dos anos 1950 até meados dos anos 1970. Este modelo atingiu o seu limite, uma vez que, apesar dos esforços significativos (pedagogias compensatórias, zonas de educação prioritárias, etc.) que foram feitos, não conseguiu mobilizar as classes populares. O que está em causa é, sem dúvida, o projecto curricular, a relação com o saber (Charlot, Bautier & Rochex, 1992), com um modo de organização que separa a escola da «vida real». Robert Ballion (1994) interroga os novos alunos do liceu que, para financiarem os seus estudos, aceitam «pequenos trabalhos». Eles estão bem conscientes do factor de desigualdade que essa condicionante constitui, mas, ao mesmo tempo, declaram que esse contacto com a «vida real» os ajuda a dar um sentido às «provas de papel» da escola. Obviamente que é simplista concluir que a lei deve regressar ao colégio único e abrir uma possibilidade de orientação para o ensino profissional aos 14 anos. No entanto, a situação actual, que vê os alunos a trabalhar «sem outra motivação a não ser a nota» e estudantes que estão na universidade não por «manifesta motivação intelectual, mas porque não encontram trabalho, não é saudável nem para escola, nem para os alunos: “somos levados a perguntar-nos se o prolongamento dos estudos, pelo menos em certos grupos (…), não é mais destrutivo do que formativo” (Duru-Bellat, 2006).
Dadas as condições será preciso canalizar a esperança para a formação ao longo da vida? É a proposta das organizações internacionais. Esta corresponde às exigências de flexibilidade e de mobilidade do «novo espírito do capitalismo». Mas também é possível relacioná-la com a tradição da igualdade de oportunidades. Não é justo que as qualificações adquiridas entre os 18 e os 25 anos condicionem uma carreira inteira. Aquelas e aqueles que não agarraram a sua primeira hipótese no período de estudos devem poder voltar a tentar a sua sorte. É a aposta das escolas de segunda oportunidade e, sobretudo, da validação de conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Por agora, é difícil avaliar a validade desta promessa e surge uma verdadeira questão: estamos perante a crise do modelo de democratização, fundado no grande fechamento da escola, e no prolongamento do período de estudos mas, de momento, as únicas respostas que existem são as dos think tanks que inspiram o novo espírito do capitalismo. A desconstrução dos diplomas nacionais em prol da noção de portefólio de competências (Jobert, Marry & Tanguy, 1995) não pode ser considerada um progresso. Não será possível perspectivar uma segunda modernidade cujo projecto de educação e de formação se funde nos interesses das classes populares?
A racionalização da gestão das universidades: a instituição de uma governação segundo as normas de qualidade internacionais
O processo actualmente em curso é resultado da célebre classificação de Xangai. Nenhuma universidade francesa aparece entre as cinquenta melhores. Tal ausência é atribuída à fragmentação da gestão universitária que dispersa os esforços. Chegou-se à conclusão de que é necessário constituir unidades maiores e mais fortes que correspondam aos critérios internacionais de qualidade.
Esta tendência conjuga-se com uma outra que vai no sentido de delegar poder nas regiões. O Estado nacional já não tem meios para fazer face às despesas que a massificação do ensino superior implica, porém, a tradição francesa limita as possibilidades de transferir a despesa da educação para as famílias. Qualquer aumento de propinas na universidade arrisca-se a desencadear uma revolta. O Estado vira-se, então, para as regiões, algumas das quais preparadas para concederem apoios financeiros a investimentos importantes. Os Pôles de Recherche et d’Enseignement Supérieur (PRES) propõem um compromisso entre estas duas orientações: fundam unidades regionais que permitem às colectividades territoriais organizar as suas relações com as formações universitárias e com a investigação. Por outro lado, congregando as forças que coabitam num mesmo espaço (universidades, institutos, grandes écoles, etc.), dão início a um processo de concentração que, por sua vez, é acompanhado por uma racionalização e, em particular, pela introdução de regras de gestão pública. Durante muito tempo a educação foi classificada como um imperativo categórico. É necessário elevar o nível de instrução da população, prolongar o período de estudos, etc. A questão do custo ou do lucro dos investimentos não se coloca. A situação mudou. Uma cultura da avaliação, ou, melhor, de obrigação de «prestar contas» está a ser implementada (Normand, 2001). Esta medida é denominada no serviço público por LOLF (Loi organique relative aux lois de finances). Os créditos são atribuídos por funções. Por conseguinte, as instituições devem apresentar os seus pedidos por objectivos e prever, simultaneamente, os meios para avaliar as suas performances.
Esta evolução francesa decorre das directivas europeias e, em particular, no que concerne à universidade, das decisões tomadas na Cimeira de Lisboa. Assim, implementam-se padrões de qualidade que abrangem todos os domínios, bem como a qualidade de oferta e os resultados e que acabarão por instituir, no domínio da educação e da formação, o que Laurent Thévenot (1997) designa, no mundo da produção industrial, como uma governação segundo normas. Este trabalho começou com inquéritos (PISA, TIMSS, IEA, etc.) e deverá continuar com o objectivo de uma plataforma comum.
Uma mudança do modelo de formação das elites
O primeiro ponto a destacar é que esta questão volta a estar em voga (Revue internationale d’éducation 2005), depois de ter estado a hibernar desde os anos 1960. Havia, obviamente, alguns estudos internacionais (Broady, Chmatko & de Saint Martin, 1997), mas o interesse dos investigadores, assim como dos políticos, centrava-se na democratização, o que era, sem dúvida, uma consequência do relatório A Nation at Risk (1983). A inversão de tendência era sensível aos Estados Unidos desde a publicação da obra de Sarah Lawrence Lightfoot (1983). O seu exemplo foi seguido por um grande número de estudos sobre escolas exemplares (Normand, 2001). Além disso, esta inversão ocorreu numa altura em que se reduziram as bases de recrutamento das grandes écoles. Os anos de prosperidade conduziram a uma abertura relativa: a reprodução não era suficiente para a renovação dos quadros. Com a crise, o peso da herança consolidava-se, mas, em contrapartida, o sistema evoluía. As elites eram formadas nas grandes écoles de tal forma ligadas ao Estado-nação que se pôde falar de uma «nobreza de Estado» (Bourdieu, 1989). O sistema tem hoje um concorrente que assenta na integração precoce nas redes internacionais. Daí o desenvolvimento das aulas bilingues, das aulas europeias, dos intercâmbios linguísticos. Faz-se um compromisso entre o antigo e o novo. O modo de selecção dos «grandes liceus» para a admissão a aulas preparatórias evoluiu: actualmente preferem um aluno bilingue franco-britânico a um aluno formado na linha latino-germânica. A estadia no estrangeiro sempre fez parte do cursus honorum mas no fim do percurso: uma bolsa de doutoramento ou de pós-doutoramento. Existem, portanto, redes entre as grandes écoles francesas e as universidades estrangeiras. Trata-se, simplesmente, de remontar à origem do campo de aplicação, ou seja, a nobreza do Estado será formada através de uma circulação nas redes de excelência internacionais. Esta organização tende a abranger os liceus, os colégios e as escolas, de modo que, para os jovens acederem às universidades e às grandes écoles integradas nas grandes redes internacionais, é melhor inscrevê-los em escolas bilingues logo desde a primária.
Desta forma institui-se uma organização que estabelece uma cisão entre os estabelecimentos de ensino de redes locais e os estabelecimentos de ensino de redes globais. Os estabelecimentos muito integrados numa governação local (ligado às colectividades territoriais, às associações culturais, aos movimentos de bairro) socializam a maior parte das crianças segundo valores que promovem a vida em comunidade. Os estabelecimentos integrados em redes internacionais preparam a elite para uma circulação no interior de um mundo em que a língua veicular é o inglês. Esta oposição inscreve-se, obviamente, no prolongamento das clássicas desigualdades. Salvo algumas excepções, produto de uma política-espectáculo, as escolas internacionais situam-se, geralmente, nos bairros burgueses. Por outro lado, este dualismo renova a argumentação que justifica as distinções.
Conclusão: novas figuras de dominação, novas figuras de resistência
A passagem para o LMD tem consequências directas na vida das universidades: no volume de trabalho dos professores e dos estudantes, nos modelos de avaliação. Porém, alguns ajustamentos terão de ser feitos nos próximos anos. Além disso, esta reforma surge, sobretudo, como o símbolo e o ponto de apoio de um movimento mais geral, que é o fim do escandaloso isolamento do sistema francês e a sua entrada num espaço de concorrência internacional. As linhas anteriores tentaram esclarecer alguns pontos estratégicos: a dúvida que se gera em torno dos benefícios do prolongamento dos estudos e a ascensão de uma nova esperança na formação ao longo da vida; a implementação de uma governação segundo normas que se enquadram nos padrões europeus de qualidade; uma mudança na formação das elites. A conclusão levanta-nos uma outra questão: como resistir num sistema onde as possibilidades de protesto estão cerceadas? Esta reflexão pode apoiar-se na trilogia, proposta por Hirschman (1972), para caracterizar as relações entre os indivíduos e as instituições: Exit, voice, loyalty. A análise efectuada anteriormente demonstra que não há adesão (Loyalty) ao sistema LMD. Por outro lado, a oposição (Voice) não tem abertura e o recuo total seria uma ‘emenda pior que o soneto’. Daí a invenção de uma nova forma de resistência.
O exemplo do LMD mostra que não é possível resistir à força crescente do novo espírito do capitalismo. As relações de força são claras: um país ou uma universidade que não entrem nesse sistema serão marginalizados. A situação não é muito diferente no debate intelectual. O novo modelo incorporou os conhecimentos da crítica dos anos 1960 e 1970. Esta abordagem permite-lhe ocupar completamente o espaço e virar o poder do pensamento crítico contra ele próprio. Nestas condições, não se consegue vislumbrar como é que uma oposição se poderá constituir. A única oposição radical é a que nos é dada por uma leitura integralista dos princípios do Islão. O seu poder de mobilização é incontestável, mas a sua doutrina não se insere no quadro que a concepção europeia da democracia herdou do Iluminismo. Os esforços, por conseguinte, mudam de direcção. Se há pouca ou nenhuma contestação explícita, em contrapartida, há muitas hesitações surdas e arrastamento de pés que exploram as falhas do novo sistema: as normas são confusas ou contraditórias; não têm em conta as tradições nacionais; não são acompanhadas pelos meios necessários. Posto isto, é possível identificar a questão sobre as novas formas de resistência: o recuo e o protesto assentam em subterfúgios. É este o ponto obscuro que se deve investigar e, se se puder, teorizar.
Antes de mais, há que circunscrever o fenómeno: que configurações apresenta? Quais os seus pontos de apoio? Depois a teoria. Michel de Certeau (1991, 1994) tentou formalizar estas «caças furtivas» em que os pequenos caçam clandestinamente nas terras dos grandes. Não só não lhe resistem como também entram na sua racionalidade, adoptam os seus códigos culturais. Eles reformulam-nos simplesmente à sua maneira e, às vezes, manipulam o sentido e o poder em função dos seus interesses. O mérito de um tal trabalho é chamar a nossa atenção para o papel da astúcia na história e mostrar os pontos comuns entre heranças tão diferentes como o Roman de Renard e o abrandamento da produção provocado pelo movimento operário durante os primeiros tempos do capitalismo. A sua visão parece, no entanto, demasiado optimista, pois mesmo que haja resistência, esta só põe em causa a dominação em casos excepcionais. Os subterfúgios e as resistências que travam ou deformam a implementação do LMD não impedem que a nova forma de organização se instale (Laval &Weber, 2003): o regresso do interesse pela formação das elites e a mudança do modelo de formação das mesmas são um facto; os padrões de qualidade internacionais impõem-se e os actores, aos poucos, põem-se em marcha na direcção dessa referência; as novas desigualdades entre os estabelecimentos de ensino de redes locais e os estabelecimentos de ensino de redes globais começam a estruturar o rumo das formações. As hesitações, as reformulações, os desfasamentos levam simplesmente a levantar uma questão: qual o impacto destas resoluções na vida real? Organizam verdadeiramente a vida das aulas e dos estabelecimentos? Ou trata-se de falsas aparências que escondem práticas extremamente diferentes? Talvez escondam mesmo, sob uma roupagem racional e legal, as práticas decorrentes de um imperativo de justificação (Derouet, 2000).
A sociologia pode utilizar os resultados destas análises para construir uma nova posição, fundada nesta ciência dos actores que se desenvolve com sofrimento e astúcia. O negativo é tão importante quanto o positivo para o avanço de um pensamento dialéctico. O período compreensivo constituiu um forte momento positivo: uma esperança de democratização da sociedade, um prolongamento do período de estudos. Este projecto é hoje posto em causa e as críticas não vêm só da direita reaccionária. Sem dúvida que estamos a assistir ao esgotamento de um modelo. Embora ainda seja cedo para fazer uma apreciação sobre certas medidas como a validação dos conhecimentos adquiridos, o novo modelo não reclama essencialmente um objectivo de democratização. Como reconstruir um projecto progressista? As sociedades atlânticas entraram, durante longos anos, num período de negatividade onde os actores resistem em segredo sem que os seus esforços encontrem uma saída política. A sociologia deve interessar-se por esses aspectos negativos, ajudar a formalizá-los e apoiar-se em novas definições de bem comum, nas quais se vai trabalhando no sentido de reconstruir uma exterioridade. Por isso, ela deve regressar à base: fazer um inventário dos sofrimentos e dos subterfúgios desencadeados pela nova ordem do mundo. As denúncias gerais da mundialização que prosperam podem ter algo de jubiloso. Para apreenderem o real, têm de estar apoiadas em estudos exactos. O que é que esta organização muda na vida das pessoas? No fim deste artigo, parecerá, talvez, que o sofrimento e o rancor constituem firmes poderes de evolução que podem desembocar num novo momento positivo: um projecto de democratização da escola e da sociedade correspondente aos interesses dos novos dominados na sua pluralidade. O movimento já foi desencadeado há vários anos. Após a descolonização, os historiadores redescobriram a visão dos vencidos (Wächtel, 1971), o lugar da escravidão no sistema económico e o desenvolvimento das heresias populares (Ginzburg, 1980). Actualmente, existe uma história da loucura, uma história das mulheres; começa a escrever-se a dos homossexuais. Considerando o fenómeno de uma forma geral, é a história dos dominados, do seu sofrimento, dos seus rancores mas também dos subterfúgios que lhes permite moldar a sua condição que falta escrever.
No domínio da sociologia da educação, a questão foi trabalhada do lado dos alunos. É possível dar um panorama geral de duas reflexões. Patrick Rayou (2000) insiste na estranheza de dois mundos que coabitam nos estabelecimentos de ensino. A par do universo gerido por adultos, que põe em primeiro plano a acção justificada, os alunos constroem um «outro liceu», que se baseia muito mais na proximidade entre as pessoas (Rayou, 2000). Christophe Hélou (1994) põe em evidência, nos alunos, as técnicas de resistência aparentadas com a tradição operária do abrandamento de produção: colocam questões, pertinentes ou não, que abrandam o ritmo da aula; «esquecem» os seus compromissos; negoceiam o volume de trabalho, a avaliação; exploram a falta de clareza das normas ou as suas contradições. E estas condutas alimentam-se com as ferramentas críticas dadas pelo ensino. Importa cruzar as contribuições das duas atitudes. Se há realmente dois mundos que se tocam sem nunca se verem, o subterfúgio dos dominados alimenta-se frequentemente dos modelos fornecidos pelos dominadores. Marie-Claude Derouet-Besson (2005) estudou o papel do cristianismo nesta questão, que dá um stock de referências inesgotáveis à crítica do mundo que existe em nome do mundo que deve ser. A mesma atitude se observa a escalas mais modestas. Um professor que, na sua aula, faça uma crítica ao capitalismo e à organização taylorista do trabalho arrisca-se a ser posto em causa se mantiver, na sua turma, uma hierarquia e uma avaliação que se baseie nos mesmos princípios.
A implementação da nova ordem mundial estende este processo aos professores e aos quadros da educação. Desenvolve-se uma teoria espontânea da resistência civil. O nível de estudos dos professores permite-lhes construir uma definição de interesse geral, que não é nem mais, nem menos contestável que a do ministro, e justificar acções que não se inserem no quadro prescrito. Por outro lado, de forma a defender esta independência, os professores criam subterfúgios do mesmo género dos dos seus alunos: como, por exemplo, obter bons resultados numa altura em que as avaliações se baseiam em padrões internacionais que eles contestam totalmente, seguindo uma prática pedagógica que releva de outros princípios? Os quadros de referência são mais restritos mas alguns situam-se na orientação.
A reconstrução do ponto de vista crítico levará o seu tempo. Nesta fase, a sociologia deve interrogar a ordem instituída fazendo convergir duas abordagens: uma análise etnográfica que identifica e configura as novas formas de resistência; e uma reflexão política que se reconcilia com a tradição, pensando conjuntamente a infelicidade dos pobres e a felicidade dos ricos (Boltanski, 1999). O período antes da guerra assistiu a uma separação entre dois tipos de ensino: o secundário acolhia as crianças da burguesia e conduzia-as, bem ou mal, a uma formação de nível secundário e à universidade; o primário ensinava os rudimentos às crianças do povo e conduzia-os a uma carreira que culminava com o diploma aos 16 anos. O modelo compreensivo tentou realizar uma unificação que encerrava algumas ingenuidades. Supunha, em particular, que o mesmo currículo podia constituir uma plataforma comum para todos e um trampolim para os melhores. Esta utopia foi posta em causa. O relatório A Nation at Risk propõe uma diversificação baseada em outros princípios. A questão essencial, no entanto, permanece: a circulação de saberes, de riquezas, de poderes, inscreve-se num quadro global de «partilha de benefícios» (Darras, 1969) que tem de ser repensado.
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*UMR Éducation et Politique, Institut National de Recherche Pédagogique (INRP), França. Editor-chefe da revista Éducation et Sociétés, jean-louis.derouet@inrp.fr
Tradução do original em francês de Sandra Escobar