Nos dias 22 e 23 de outubro de 2021 realizou-se na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) o Congresso Internacional «Neofascismos e Direitas Radicais: Do Pós-Guerra ao Século XXI». Organizado conjuntamente pelo Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» (CITCEM-FLUP) e pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC), o encontro contou com a participação de 75 investigadores e a apresentação de 60 comunicações.
O Congresso propôs-se contribuir para o aprofundamento da reflexão e do debate científico aberto, transversal e pluridisciplinar acerca dos diversos aspetos que caracterizam a ascensão e a consagração político-eleitoral dos neofascismos no Ocidente, apelando à mobilização de leituras a partir da História, da Sociologia, da Filosofia, da Ciência Política, das Ciências da Comunicação, do Direito e dos Estudos Culturais e Literários.
A Comissão Organizadora, que incluiu investigadores do CITCEM, do IHC e do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, lançou a discussão considerando que ao pôr em causa a democracia, dando voz a sentimentos racistas e xenófobos, negando liberdades, direitos e garantias, questionando a imparcialidade e a universalidade dos sistemas educativos, científicos e jurídicos, promovendo uma agenda nacionalista e relativizando, ou até mesmo reabilitando, as ideias, as políticas e as práticas dos regimes fascistas que se espalharam na Europa e no mundo entre as duas guerras, o neofascismo é um fenómeno de singular relevância no plano internacional.
No debate sobre os neofascismos é da maior importância compreender quais os fatores que contribuíram para a criação deste ambiente favorável a essa ideologia, que lhe permite influenciar a governação e ter uma representatividade eleitoral muito significativa em diferentes contextos nacionais da Europa e das Américas. Vários estudos parecem apontar para a confluência dos efeitos do neoliberalismo e da tabloidização da imprensa, numa primeira fase, e do impacto das redes sociais, mais recentemente, na formação de uma nova cultura política tendente à construção e ao reforço social do preconceito. Se a primeira pôs em causa as valências e as funções do Estado de bem-estar, assumindo práticas abertamente autoritárias naquele que se tem designado como o «capitalismo de vigilância», a segunda alimentou um crescente sentimento de alarme e de ansiedade social. Ambas terão, desse modo, contribuído para a criação das condições propícias ao reaparecimento, à normalização e à mediatização do discurso neofascista.
No fundo, pretendeu-se que o Congresso se estruturasse em torno de seis eixos: i) discussão, caracterização e problematização de conceitos como «neofascismo», «extrema-direita», «nacional-populismo», «pós-fascismo» e «direitas radicais»; ii) reflexão sobre a história dos fascismos e dos neofascismos no pós-Segunda Guerra, com particular enfoque no estudo das ideias, das experiências, dos percursos, das organizações e do poder; iii) análise dos processos de construção de memória, nomeadamente da historiografia das direitas radicais, da reescrita da história e das tentativas de reabilitação das experiências e das ditaduras fascistas; iv) debate sobre o papel e a importância dos média, da tabloidização da imprensa, das redes sociais e das fake news no crescimento das organizações de direita radical; v) equação da relação do neofascismo com a cultura, a religião, o ensino, a arte, a literatura e a ciência; vi) ponderação da forma como os grupos neofascistas pensam as liberdades, os direitos e as garantias individuais, nomeadamente os que estão associados com o racismo e a xenofobia, as migrações e as questões LGBTQ+ e de género.
A pandemia de Covid-19 - que obrigou ao adiamento do Congresso -, as limitações à circulação, a necessidade de assegurar o distanciamento físico, as incertezas quanto à evolução do quadro epidemiológico e ao alívio ou ao agravamento das restrições a ele associadas e as experiências positivas que em 2020 e 2021 se registaram na realização de encontros científicos em regime híbrido, aconselharam-nos a adoção deste formato. Com efeito, esta escolha foi determinante para a participação de dezenas de investigadores internacionais que, de outra forma, se teriam visto impossibilitados, na maioria dos casos, de se deslocarem ao Porto em outubro de 2021.
Entre estes últimos, o grupo mais significativo foi, sem dúvida, o dos académicos brasileiros. Estes dedicaram-se à caracterização, à discussão e à problematização da história da direita radical brasileira dos séculos XX e XXI e, muito particularmente, do bolsonarismo. Foram abordadas a importância das fake news e das teorias da conspiração no contexto da eleição e da governação de Jair Bolsonaro, a atuação do Governo brasileiro face à pandemia de Covid-19, os ataques às universidades públicas brasileiras e à comunidade LGBTQ+, as origens e a evolução histórica dos movimentos de direita radical que haviam de se congregar em torno da figura de Bolsonaro, a ideologia que permeia o discurso e a governação bolsonaristas, o negacionismo, a reescrita da história e a memória nostálgica da Ditadura Militar brasileira.
O dossiê temático da R:I que agora se publica corresponde a uma seleção desses contributos, pertinentes para a problematização, caracterização e compreensão do fenómeno bolsonarista. A sua publicação é tanto mais pertinente porque, em outubro de 2022, se cumprem quatro anos sobre a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República Federativa do Brasil e se realizam, nos dias 2 e 30 desse mês, respetivamente, a primeira e a segunda volta das eleições presidenciais brasileiras.
Os artigos aqui publicados, os quais oferecem uma interpretação do Brasil contemporâneo, focam-se, sobretudo: i) na discussão da operação Lava Jato e do impeachment à então Presidente Dilma Rousseff e da forma como esses dois processos foram determinantes para a conformação de uma nova agenda da direita brasileira, que favoreceu a emergência e a centralidade de um agente político como Bolsonaro; ii) na análise do projeto político-ideológico bolsonarista e na relação deste com o fascismo histórico e com o neofascismo; iii) na periodização e caracterização do percurso político de Jair Bolsonaro; iv) nas políticas educativas e de combate à «doutrinação marxista» nas universidades públicas, assim como no recurso à desinformação, à reescrita da história recente do Brasil e à reabilitação da memória e do exemplo cívico, moral e político da Ditadura Militar; v) na relação entre o crescimento e o recrudescimento da extrema-direita no Brasil e o aumento da violência e da discriminação xenófoba, racista, LGBTfóbica e misógina.
O artigo de Ricardo Moreno e Núbia Ramos, «“In Fux we trust”: a arquitetura de um estado de exceção de novo tipo», discute a utilização da lei como arma política no contexto da operação Lava Jato, do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão de Lula da Silva em abril de 2018, defendendo que o tribunal da 4.ª Vara Federal atuou como um tribunal de exceção e violou diversos direitos constitucionais. Moreno e Ramos fazem uma reflexão aprofundada sobre o conceito de estado de exceção, partindo de Giorgio Agamben e do conceito de lawfare para pensarem, posteriormente, a intensificação da utilização deste último na luta política brasileira, apontando a uma intromissão do poder judicial na vida política nacional com o objetivo de a condicionar e de a transformar. Os autores demonstram a construção e paulatina instauração do estado de exceção permanente a partir da análise de casos judiciais emblemáticos como o Mensalão, a Lava Jato, o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. Concluem pela normalização da suspensão de direitos dos acusados e das arbitrariedades processuais. Mais, o próprio poder judicial, com o juiz Sérgio Moro à cabeça, hostilizou as iniciativas legislativas do Congresso no sentido de punir legalmente os agentes da Justiça que cometessem abusos de autoridade e ordenassem e executassem prisões de forma ilegal. Desta forma, argumentam os autores, a suspensão momentânea do Estado de direito e a emergência de um estado de exceção não foram promulgados nem ratificados política ou judicialmente, foram, pelo contrário, sendo constituídos, normalizados e mantidos através da prática.
O artigo de Marcelo Badaró Mattos, «Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil», pensa o bolsonarismo, enquanto movimento político e de recomposição da direita brasileira, a partir de uma discussão sobre o fascismo histórico, o neofascismo, a autocracia burguesa e a contrarrevolução permanente e preventiva - conceitos desenvolvidos pelo sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. O autor apresenta sinteticamente o percurso político de Jair Bolsonaro - da agenda monotemática em torno dos rendimentos e dos interesses das corporações militar e policial à construção de um discurso capaz de representar e de mobilizar as bancadas parlamentares «do Boi, da Bíblia e da Bala». Badaró Mattos demonstra o impacto profundo e prolongado da crise económica de 2007-2008, gerando protestos como as Jornadas de Junho de 2013 contra o aumento dos preços dos transportes públicos e causando o declínio de popularidade do Governo de Dilma Rousseff e do Partido dos Trabalhadores.
A partir de 2015 e 2016, reflexo do agravamento da crise no Brasil e do conhecimento da operação Lava Jato em 2014, começam a surgir manifestações anticorrupção mobilizadas por novas organizações de direita. Como o autor realça, o Brasil viveu, entre 2013 e 2018, sob uma combinação de crises económicas, políticas e sociais. É nesse contexto de «crise orgânica» que «o hibridismo, a adaptabilidade e a mutabilidade do fascismo» se expressam na formação ou no reaparecimento de «ideologias, movimentos, partidos e lideranças» de tipo neofascista. Quanto à governação de Jair Bolsonaro, Badaró Mattos centra-se, sobretudo, na simbiose entre neoliberalismo e neofascismo, no desafio permanente à integridade das instituições democráticas, nas consequências económicas da política de Paulo Guedes, na violência estatal e paramilitar e na gestão da pandemia de Covid-19.
O artigo de Lincoln Secco, «O bolsonarismo no Brasil», prossegue e acrescenta elementos de reflexão ao debate acerca do bolsonarismo. Diacronicamente mais profundo, Secco recua à Ação Integralista Brasileira (1932-1937), a Plínio Salgado e à Ditadura Militar (1964-1985) para pensar as raízes e a evolução da extrema-direita brasileira. O autor analisa a imagem política projetada por Bolsonaro através da consideração de três arquétipos eminentemente propagandísticos: «revolucionário» (1986-2002), «reacionário» (2003-2016) e «mito» (2016-2018). Secco sublinha que é a transição para os temas relacionados com as liberdades individuais, as questões identitárias e a hegemonia cultural que lhe permite uma aproximação à bancada evangélica (da Bíblia), estimulando uma plataforma de ação comum que, em 2018, seria determinante para o seu sucesso eleitoral. A diversificação da agenda política e mediática de Bolsonaro foi acompanhada por uma aproximação à cúpula militar, aos meios de comunicação social e à elite económico-financeira. Por outro lado, a fase mitológica corresponde ao significativo crescimento da sua base de apoiantes e da sua influência popular que começa a ser notório durante o processo de destituição de Dilma Rousseff. Uma última fase, identificável no artigo de Lincoln Secco, corresponde aos anos da sua presidência e à queda da sua popularidade, sobretudo em virtude da atuação errática face à pandemia de Covid-19.
Em «Memória e desinformação: os ataques da extrema-direita às universidades públicas brasileiras», Graziela Ares, Gabriela Villen, Leda Maria Caira Gitahy e Leandro R. Tessler partem do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, para a análise da política de revisionismo histórico, de aumento da violência estatal e de ataques à universidade pública partilhada pelos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Segundo os autores, o atual Presidente do Brasil serviu-se da desinformação nas redes sociais para promover uma reabilitação da memória da Ditadura Militar, um clima favorável a uma política autoritária e uma aceitação do receituário neoliberal e do consequente desmantelamento do Estado e das políticas de bem-estar social promovidos pelos governos do Partido dos Trabalhadores. No que concerne às universidades públicas, destacam o crescimento significativo, «fruto de políticas públicas de promoção do acesso e da diversidade», do número de alunos matriculados nas instituições de ensino federais entre 2009 e 2018. Argumentam, contudo, que a trajetória de democratização do acesso ao ensino superior começa a inverter-se, por ação do Governo Temer, a partir de 2016. O artigo elenca, caracteriza e discute as várias acusações feitas pela extrema-direita, no âmbito das «guerras culturais» por si conduzidas, às universidades públicas e aos seus estudantes: doutrinação comunista e destruição dos valores morais e cívicos da juventude brasileira, assim como um desperdício de dinheiro público. Desta forma, no combate à «ameaça comunista» e à «ideologia de género» e pela defesa dos valores da tríade «Deus, Pátria, Família», a universidade pública torna-se um dos principais alvos do Governo de Bolsonaro.
Denise Osório Severo, Maria da Graça Luderitz Hoefel e José Joclison Nascimento Silva apresentam uma extensa revisão da produção bibliográfica referente aos anos 2015-2020, que permite equacionar a ascensão da extrema-direita no Brasil e o recrudescimento dos ataques e da violência, tanto físicos como simbólicos, contra as minorias. Partindo de um balanço do crescimento da extrema-direita no século XXI na Europa, na América do Norte e na América Latina, os autores argumentam que essa ascensão foi acompanhada pela popularização de discursos de tipo xenófobo, racista, homofóbico e misógino, assim como do «aumento da intolerância e violência contra grupos sociais minoritários». Através da revisão qualitativa de 52 artigos científicos, discutem não só esses discursos de ódio, como os decorrentes processos de colonização do imaginário e da normalização da violência. Os autores mostram como, para a extrema-direita, que, em alguns casos, se formou, cresceu, disputou e conquistou o poder, sobretudo nas últimas duas décadas, o discurso antielitista e antissistema é central. Numa lógica discursiva maniqueísta - sempre formada pelo binómio nós-eles e pela necessidade de identificação de um inimigo e/ou de um grupo social ou político que possa ser responsabilizado por todos os problemas do país -, destaca-se ainda a demonização das minorias étnicas, raciais e sexuais, dos migrantes, do feminismo, da esquerda e dos intelectuais. É esse processo de construção do inimigo e da sua inculcação popular através das redes sociais e de outros aparelhos ideológicos do Estado que os autores denominam «colonização do imaginário». Esta, devidamente estimulada por um discurso de ódio que visa a polarização radical da sociedade, contribuirá decisivamente, argumentam, para a normalização da violência contra as referidas minorias e grupos políticos inimigos.
Estes artigos aportam, a partir de diferentes ângulos de análise e de distintas abordagens metodológicas, contributos interpretativos que, cremos, permitirão pensar um fenómeno complexo, dinâmico e em evolução.