INTRODUÇÃO
A atividade física (AF) regular é reconhecidamente importante para a prevenção de doenças crônicas como diabetes mellitus, obesidade, doenças cardiovasculares (Nocon, Hiemann, Müller-Riemenschneider, Thalau, Roll, & Willich, 2008; Qin, Knol, Corpelejin, & Stolk, 2010; World Health Organization [WHO], 2010) e câncer (Vainshelboim et al., 2017). Na adolescência, a AF também contribui para a prevenção de doenças psíquicas como a ansiedade e a depressão e auxilia no desempenho escolar (Viero & Farias, 2016). Contudo, para que os adolescentes desfrutem de tais benefícios recomenda-se, pelo menos, 60 minutos diários de prática de AF de intensidades moderada à vigorosa (WHO, 2010).
Apesar dos benefícios associados à prática regular de AF, mais de 80% dos adolescentes no mundo todo não atendem às recomendações mínimas de AF (Guthold, Stevens, Riley, & Bull, 2020), e no Brasil essa estimativa se aproxima dos 84% (Guthold et al., 2020). Ainda no Brasil, a prevalência de AF insuficiente é maior nas meninas (91,2%) em comparação aos meninos (70,1%) (Ferreira et al., 2018), e nos adolescentes da região Norte (93,0%) (Pinto et al., 2017) em relação àqueles da região Sul (77,2%) (Lima, Martins, Moraes, & Silva, 2019). Ademais, disparidades nas prevalências têm sido observadas em relação a idade, em que ora os adolescentes mais novos apresentam níveis mais baixos de AF e ora o desfecho é mais frequentemente observado nos adolescentes mais velhos (Ceshini et al., 2016).
Os estudos com adolescentes brasileiros acerca das prevalências de AF apresentaram um avanço considerável revelando, inclusive, a importância dos domínios da AF mediante o cenário crítico atual. No que diz respeito ao domínio do deslocamento, existem duas opções para se deslocar para casa, local de trabalho ou escola. São eles o deslocamento ativo, definido como uma forma de transporte ecológico, realizado por meio de AF (caminhada ou bicicleta), ou o deslocamento passivo, realizado por meio de transportes motorizados, que não exige o aumento do gasto energético (moto, carro ou ônibus) (Henriques-Neto et al., 2020). A utilização de modos ativos no deslocamento para a escola contribui em boa parte para os níveis de AF dos adolescentes (Larouche, Faulkner, Fortier, & Tremblay, 2014; Pinto et al., 2017). Apesar disso, estudos nacionais têm apontado que o deslocamento passivo tem ganhado a preferência desse público e isso é preocupante (Becker et al., 2017; Lourenço, Pires, Leite, Sousa, & Mendessterg, 2017; Burgos et al., 2019; Pinto, Silva, Silva, Felden & Pelegrini, 2020). Adolescentes que se deslocam passivamente para a escola tendem a apresentar piores índices na composição corporal, no perfil lipídico e baixa aptidão cardiorrespiratória quando comparados àqueles que se deslocam ativamente (Østergaard, Kolle, Steene-Johannessen, Anderssen, & Andersen, 2013; Larouche et al. 2014; Pinto et al., 2017).
Mesmo diante de tais informações, há lacunas que ainda precisam ser preenchidas. Por exemplo, a maior parte dos estudos sobre o deslocamento passivo em adolescentes brasileiros se concentra nas regiões Sul e Sudeste, já na região Norte nenhum estudo foi previamente rastreado (Ferrari, Victo, Ferrari, & Solé, 2018). A região Norte, sobretudo o estado do Amazonas (AM), ainda carece de estudos sobre AF em adolescentes, e por se tratar de uma região menos favorecida economicamente, situada em meio a grandes rios o que dificulta as condições de vida (Pinto et al., 2018), muitos jovens podem não ter as mesmas oportunidades de deslocamento em relação aos adolescentes da região Sul que apresenta melhor condição econômica. Nesse sentido, acredita-se que a renda familiar dos adolescentes indique alguma interação com o deslocamento passivo, contudo, essa hipótese ainda não foi testada comparando adolescentes dessas duas regiões. Adicionalmente, não é possível afirmar se os subgrupos de adolescentes mais expostos ao deslocamento passivo para a escola são os mesmos em regiões distintas.
Em 2015 foi estimado que cerca de 33,3% dos adolescentes brasileiros se deslocavam passivamente para a escola (Brasil, 2016). No entanto, prevalências de deslocamento passivo superiores a 57% foram observadas em adolescentes de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul (Pires et al., 2017), Uberaba, Minas Gerais (Lourenço et al., 2017) e Curitiba, Paraná (Becker et al., 2017). Ademais, ser do sexo feminino (Silva et al., 2011a; Silva, Vasques, Martins, Williams, & Lopes, 2011b; Lourenço et al., 2017), estar no final da adolescência (Silva et al., 2011a; Silva et al., 2011b; Lourenço et al., 2017) e ser de família com maior renda familiar (Silva et al., 2011b; Santana et al., 2017) foram apontados como fatores associados ao deslocamento passivo. Porém, nenhum estudo comparou essas associações em adolescentes de diferentes regiões brasileiras.
Mediante essa contextualização, acredita-se ser importante fazer um comparativo entre adolescentes de regiões distintas, no sentido de aumentar o conhecimento sobre os fatores correlatos da AF no deslocamento, para que ações públicas sejam direcionadas à promoção de um comportamento ativo. Ainda, o conhecimento produzido a partir dessas comparações poderá ser útil para que as autoridades de saúde pública priorizem as estratégias nas regiões que mais suscitam atenção. Portanto, o presente estudo tem como objetivo comparar a prevalência de deslocamento passivo para a escola e analisar os fatores sociodemográficos (sexo, idade e renda familiar) associados em adolescentes das cidades de São José/Santa Catarina (SC) e Manaus/AM. Diante do exposto, formulou-se as seguintes hipóteses:
MÉTODO
Trata-se de um estudo epidemiológico de delineamento transversal, conduzido em adolescentes de duas regiões brasileiras (Norte e Sul), aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (pareceres nº 0302.0.115.000-11 e nº 746.536/2014). A população alvo foi constituída por adolescentes de 15 a 18 anos de idade, matriculados em escolas públicas estaduais das cidades de Manaus, AM, em 2011 e de São José, SC, em 2014.
De acordo com informações disponibilizadas por Brasil (2020), Manaus/AM e São José/SC apresentam diferenças no que se refere ao território e ambiente. Manaus possui uma área territorial de 11.401,092 km², 62,4% de domicílios com esgotamento sanitário adequado, 23,9% de domicílios urbanos em vias públicas com arborização e 26,3% de domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada (incluindo presença de bueiro, pavimentação, calçada e meio-fio). São José/SC possui área territorial de 150,499 km², esgotamento sanitário adequado em 93,7% de domicílios, 11,4% de domicílios em vias públicas com arborização e 76,3% de domicílios em vias públicas com urbanização adequada (incluindo presença de bueiro, pavimentação, calçada e meio-fio).
Amostra
Conforme informações cedidas pelas respectivas Secretarias de Estado de Educação havia, em Manaus/AM, 78.498 adolescentes matriculados nas escolas públicas estaduais em 2011, e em São José/SC, 5.182 adolescentes, em 2014. Para o cálculo amostral (Luiz & Magnanini, 2000) adotou-se prevalência de 50% (prevalência desconhecida), nível de confiança de 95%, erro tolerável estimado de cinco pontos percentuais e efeito de delineamento (deff) de 1,5 para a correção de amostras por conglomerados. Acrescentou-se aos parâmetros supracitados 20% para perdas e recusas e 20% para estudos de associação, estimando um número mínimo de 803 adolescentes em Manaus/AM e 751 em São José/SC.
A seleção dos adolescentes, em ambas as cidades, foi realizada em dois estágios:
inicialmente estratificado por escolas públicas estaduais empregando-se como critério a densidade da escola (pequenas, com menos de 200 alunos; médias, com 200 a 499 alunos; e grandes, com 500 estudantes ou mais), cujo sorteio foi realizado proporcionalmente de acordo com o porte;
por conglomerado de turmas, considerando o turno e o ano escolar. Foram incluídos no estudo adolescentes que se dispuseram a participar de maneira voluntária, que assinaram o Termo de Assentimento e apresentaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado por algum responsável (adolescentes com idade inferior a 18 anos) ou por eles mesmos (idade superior a 18 anos).
Instrumentos
As informações utilizadas no presente estudo foram obtidas utilizando-se um questionário autoadministrado pelos adolescentes, por meio do qual eles informaram o sexo (masculino, feminino) e a idade (15, 16, 17 e 18 anos). A renda familiar foi estimada considerando o salário mínimo familiar, conforme utilização em diversos estudos brasileiros (Pinto et al., 2020; Pinto et al., 2018; Pinto, Claumann, Barbosa, Nahas, & Pelegrini, 2017). A renda familiar foi categorizada em até dois salários, de três a cinco salários, de seis a dez salários e onze salários ou mais, estimada com base no salário mínimo vigente no ano em que cada coleta de dados foi realizada (R$ 545,00 em 2011 e R$ 724,00 em 2014).
A variável dependente, deslocamento para a escola, foi avaliada por meio de uma questão extraída do questionário “Comportamento dos Adolescentes Catarinenses” (Silva et al., 2013), traduzido e adaptado para uso em adolescentes brasileiros, cuja reprodutibilidade foi examinada em 107 adolescentes da cidade de Florianópolis/SC, de 15 a 19 anos, apresentando proporção de concordância de 94,2% e índice Kappa igual a 0,77 para a questão: “Como normalmente você se desloca para ir à escola (colégio)?”. As respostas “a pé” ou “bicicleta”, foram categorizadas em deslocamento ativo e “de carro”, “moto” ou “ônibus” foram consideradas deslocamento passivo (Silva et al., 2011a; Silva et al., 2011b).
Procedimentos
Nas duas cidades, foram empregados os mesmos procedimentos e instrumentos de coleta de dados. Inicialmente, solicitou-se à Secretaria de Estado de Educação a autorização para a realização da pesquisa e após concedida, as escolas foram visitadas para a apresentação do projeto, seus objetivos e importância. Pesquisadores previamente treinados foram os responsáveis pela condução da coleta de dados, que ocorreu em dias e horários agendados com a direção de cada escola e com os professores de Educação Física que gentilmente cederam espaço em suas aulas para a realização da coleta.
Os adolescentes das turmas visitadas, que se encontravam presentes em sala de aula, foram informados sobre os objetivos da pesquisa, sua importância e convidados a integrarem a mesma. Aqueles que se dispuseram a participar da pesquisa entregaram o Termo de Assentimento assinado e apresentaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinados pelos pais/responsáveis.
Análise estatística
Na análise descritiva foram calculados os valores médios e desvios padrão (DP) para a idade e as proporções para as demais variáveis. Diferenças significativas entre as prevalências de deslocamento passivo das regiões foram assumidas quando não houve sobreposição dos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As diferenças de proporções nas variáveis independentes entre os municípios foram testadas por meio do qui-quadrado (χ2). As associações entre os fatores de exposição e a variável dependente foram testadas empregando-se a Regressão de Poisson, com variância robusta, estimando-se a razão de prevalência (RP) e os respectivos IC95%. Foram conduzidas análises bruta e ajustada por todas as variáveis, independentemente do valor de p na análise bruta. A qualidade do ajuste dos modelos foi avaliada pelo teste Deviance goodness-of-fit. Todos os procedimentos de análise de dados foram realizados no software IBM® SPSS® Statistics, versão 20.0, com nível de significância de 5%.
RESULTADOS
A amostra total incluída no presente estudo foi de 2.133 adolescentes. Em Manaus/AM, Norte do Brasil, foram coletados dados de 1.109 adolescentes (56,9% do sexo feminino), com média de 16,6 (DP= 1,04) anos de idade, e em São José/SC, Sul do Brasil, 1.024 adolescentes (54,4% do sexo feminino), com média de 16,2 (DP= 1,00) anos de idade. As características gerais dos adolescentes na amostra total e em cada uma das regiões são apresentadas na Tabela 1.
Variáveis | Total n (%) | Manaus/AM n (%) | São José/SC n (%) | p-valor | |
---|---|---|---|---|---|
Sexo | 0,245 | ||||
Masculino | 945 (44,3) | 478 (43,1) | 467 (45,6) | ||
Feminino | 1188 (55,7) | 631 (56,9) | 557 (54,4) | ||
Idade (anos) | < 0,001 | ||||
15 | 480 (22,4) | 190 (17,1) | 290 (28,3) | ||
16 | 624 (29,3) | 313 (28,2) | 311 (30,4) | ||
17 | 663 (31,1) | 333 (30,0) | 330 (32,2) | ||
18 | 366 (17,2) | 273 (24,7) | 93 (9,1) | ||
Renda familiar (salários) | < 0,001 | ||||
Até dois | 873 (41,7) | 624 (56,3) | 249 (25,1) | ||
De três a cinco | 900 (42,9) | 392 (35,3) | 508 (51,5) | ||
Seis a 10 | 255 (12,2) | 65 (5,9) | 190 (19,3) | ||
11 ou mais | 68 (3,2) | 28 (2,5) | 40 (4,1) | ||
Total | 2.133 | 1.109 | 1.024 |
n: frequência absoluta; %: frequência relativa.
O deslocamento passivo para a escola foi de 45,1%, sendo superior nos adolescentes de São José/SC em comparação àqueles de Manaus/AM (Figura 1).
Na análise bruta foram observadas associações entre idade e renda familiar com o deslocamento passivo nos adolescentes de Manaus/AM, enquanto em São José/SC o sexo e a renda familiar se associaram ao desfecho. Após ajuste por todas as variáveis, em ambas as cidades, os grupos mais expostos ao deslocamento passivo foram o sexo feminino e adolescentes com renda familiar de três a cinco, de seis a 10 e 11 salários ou mais. Por outro lado, observou-se que os adolescentes de Manaus/AM de 16 e 17 anos tiveram 24% e 20%, respectivamente, menos chances de se deslocarem de maneira passiva para a escola (Tabela 2).
Variáveis | Manaus | São José | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
P | RP bruta (IC95%) | RP ajustada (IC95%) | P | RP bruta (IC95%) | RP ajustada (IC95%) | ||
Sexo | |||||||
Masculino | 34,9 | 1 | 1 | 48,8 | 1 | 1 | |
Feminino | 39,1 | 1,12 (0,96– 1,31) | 1,22 (1,04– 1,42) | 57,5 | 1,18 (1,05– 1,32) | 1,27 (1,13– 1,43) | |
Idade (anos) | |||||||
15 | 43,2 | 1 | 51,7 | 1 | 1 | ||
16 | 34,2 | 0,79 (0,63– 0,99) | 0,76 (0,61– 0,95) | 55,6 | 1,08 (0,93– 1,25) | 1,05 (0,84– 1,33) | |
17 | 34,2 | 0,79 (0,64– 0,99) | 0,80 (0,64– 0,99) | 53,6 | 1,04 (0,89– 1,20) | 1,05 (0,90– 1,22) | |
18 | 40,7 | 0,94 (0,76– 1,17) | 0,95 (0,76– 1,17) | 51,1 | 0,95 (0,80– 1,25) | 1,05 (0,91– 1,23) | |
Renda familiar (salários) | |||||||
Até dois | 31,7 | 1 | 1 | 44,2 | 1 | 1 | |
De três a cinco | 41,6 | 1,31 (1,11– 1,54) | 1,34 (1,30– 2,55) | 52,2 | 1,18 (1,00– 1,39) | 1,20 (1,02– 1,41) | |
Seis a 10 | 56,9 | 1,79 (1,41– 2,28) | 1,94 (1,50– 2,50) | 65,3 | 1,48 (1,24– 1,76) | 1,56 (1,31– 1,86) | |
11 ou mais | 57,1 | 1,80 (1,28– 2,53) | 1,88 (1,33– 2,62) | 75,0 | 1,70 (1,35– 2,13) | 1,83 (1,45– 2,29) |
P: prevalência; RP: razão de prevalência; IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Qualidade do ajuste (Manaus/AM: χ2 de Pearson p= 0,638; Deviance goodness-of-fit p= 0,719; São José/SC: χ2 de Pearson p= 0,477; Deviance goodness-of-fit p= 0,654).
DISCUSSÃO
Este estudo comparou a prevalência de deslocamento passivo para a escola e investigou os fatores sociodemográficos associados em adolescentes de duas cidades brasileiras. Os principais achados apontam que as prevalências de deslocamento passivo para a escola diferem entre os adolescentes de ambas as regiões, sendo maior nos adolescentes de São José/SC; o sexo feminino e a renda familiar acima de dois salários mínimos estiveram associados positivamente ao deslocamento passivo em ambas as cidades enquanto a idade (16 e 17 anos) se associou negativamente ao desfecho apenas nos adolescentes de Manaus/AM.
Ao contrário do que se esperava, a prevalência de deslocamento passivo para a escola foi maior nos adolescentes catarinenses em relação aos amazonenses. Prevalências menores à encontrada em São José/SC (53,5%) foram evidenciadas em estudo conduzido em adolescentes pernambucanos (43%)(Santos, Júnior, Barros, Farias Júnior, & Barros, 2010) e catarinenses (43,3%)(Silva et al., 2011a). Por outro lado, o deslocamento passivo em adolescentes amazonenses é semelhante aos adolescentes rio-grandenses (37,5%)(Silva et al., 2011b). Ainda, prevalências superiores foram identificadas em adolescentes curitibanos (57,1%) (Becker et al., 2017) e mineiros (58,3%)(Lourenço et al., 2017). Em relação às informações internacionais, prevalências de deslocamento passivo foram superiores nos Estados Unidos (Bungum, Lounsbery, & Gast, 2009) e Portugal (Aires et al., 2011). Isso demonstra que o problema não é característico somente de países de renda alta (Bungum et al., 2009), mas também atinge países de renda média como é o caso do Brasil.
Quanto às diferenças observadas na prevalência de deslocamento passivo entre as duas cidades, uma possível justificativa pode estar atrelada ao período em que as variáveis foram coletadas. Entre os anos de 2012 e 2015, o Brasil encontrava-se em um momento de intenso estímulo à compra de automóveis, devido à redução de impostos sobre os produtos industrializados (Abrantes, Barbosa, Almeida, & Oliveira, 2017), circunstância que não se encontrava presente em 2011 quando a coleta de dados foi realizada em Manaus/AM. Além disso, não se rejeita a possibilidade das diferenças culturais existentes entre as regiões, por exemplo, em Manaus/AM, é possível que o hábito de se deslocar a pé, entre um lugar e outro, pode ainda se manter enraizado na cultura local mesmo que a cidade inquirida tenha evoluído estrutural e economicamente nos últimos anos.
Em relação às associações, o sexo feminino e os adolescentes de famílias com maiores níveis de renda familiar estiveram, em ambas as regiões, mais suscetíveis a se deslocarem de forma passiva para a escola presumindo-se que esses podem ser potenciais determinantes para o deslocamento passivo, independentemente da região. Esses achados vão ao encontro de diversos estudos realizados com adolescentes brasileiros (Lourenço et al., 2017; Santos et al., 2010; Silva et al., 2011a) e em vários países do mundo conforme descrito em revisão sistemática (Pinto et al., 2017).
Em relação ao sexo feminino, tem sido descrito que se trata de um público que recebe maior zelo por parte dos pais/responsáveis, e, por questões de segurança, esses podem acabar por restringir a mobilidade de suas filhas impossibilitando que as mesmas se desloquem de forma ativa para a escola (Davison, Werder, & Lawson, 2008). Ainda, as meninas tendem a estar mais suscetíveis às variações climáticas, e a depender da temperatura, por exemplo, quando calor, optam por se deslocar passivamente para a escola a fim de preservar a aparência que poderia ser “prejudicada” em virtude do aumento da sudorese (Bungum et al., 2009).
Observou-se que quanto maior a renda familiar maior a probabilidade de o adolescente se deslocar de maneira passiva para a escola. Possivelmente por se tratar de dois levantamentos realizados no Brasil, considerado um país de renda média, famílias com rendas menores podem não ter acesso a algum tipo de transporte motorizado, o que pode reduzir as chances de deslocamento passivo pelos adolescentes, especialmente no contexto em questão, cujos alunos de escolas públicas geralmente são de famílias de renda baixa (Pinto et al., 2017). Além disso, é característico de famílias com maior renda mensal a possibilidade de possuir transporte motorizado e de adquirir serviços particulares de condução escolar, o que certamente favorece o deslocamento passivo para a escola (Rech et al., 2013). Essas evidências podem suportar o fato de que, ainda que São José/SC seja significativamente menor do que Manaus/AM, os adolescentes catarinenses possuíam renda superior, o que, provavelmente, possibilitaria que tivessem maior acesso e pudessem optar por se deslocar passivamente de modo geral e também em distâncias menores, explicando as diferenças de prevalências entre as duas cidades.
Os adolescentes de 16 e 17 anos de Manaus/AM tiveram menor probabilidade de se deslocar passivamente para a escola. Estes achados podem ser explicados, possivelmente, pelo envolvimento dos adolescentes dessa faixa etária em atividades extracurriculares comuns no ensino médio, como cursos ou trabalho. Um estudo realizado nos Estados Unidos comprovou que os adolescentes que não realizavam essas atividades apresentaram maior prevalência de deslocamento ativo (Evenson, Huston, McMillen, Bors, & Ward, 2003). Além disso, acredita-se que a maioria dos adolescentes nessa faixa etária (16 e 17 anos) tendem a ter mais autonomia para ir à escola (a pé ou de bicicleta), se comparado aos adolescentes de 15 anos. Em contraponto, ainda não possuem carteira de motorista, como alguns adolescentes de 18 anos, o que possibilita um deslocamento mais ativo.
Algumas limitações do estudo devem ser consideradas, tais como a inexistência de informação sobre a distância entre a residência e a escola, se o adolescente possui colegas ou vizinhos que também optam pelo deslocamento ativo para a escola, bem como a falta de segurança para se deslocar, sendo considerados fatores que podem influenciar diretamente na forma em que os alunos se deslocam até ela; outra informação ausente refere-se ao conhecimento acerca dos pais/responsáveis possuírem ou não automóveis/motocicletas. Ademais, o período de coleta de dados distinto entre as cidades pode ter influenciado nos resultados encontrados. Recomenda-se que futuros estudos com delineamento longitudinal possam contornar essas limitações, possibilitando maiores inferências sobre os aspectos que podem influenciar o hábito de se deslocar ativamente para à escola por parte dos adolescentes brasileiros.
Entre os pontos fortes podem ser destacados, a comparação realizada entre duas cidades de regiões distintas brasileiras, algo único no que se diz respeito a deslocamento no Brasil, visto que até o momento dessa pesquisa não foi encontrado na literatura pesquisada nenhum estudo com esse objetivo. Além disso, por trazer dados importantes de deslocamento para o Brasil, especialmente para região Norte e Sul, e para literatura em geral no que se refere ao deslocamento passivo.
Esses dados podem ser utilizados pelos órgãos públicos locais, com o intuito de promover ações que motivem os adolescentes, especialmente as meninas, adolescentes com maior renda familiar e mais jovens, a utilizarem transportes mais ativos no deslocamento, ou estratégias de estímulo de práticas de atividades físicas em outros contextos quando o deslocamento ativo para a escola não for viável. Além disso, de acordo com o modelo ecológico, que considera intervenções multiníveis (individual, interpessoal, organizacional, comunitário e político) que podem impactar a prática de AF, destaca-se que o ambiente pode influenciar o indivíduo (King & Gonzalez, 2018). Dessa forma, a estrutura urbana merece um olhar diferenciado voltado à adequação de espaços públicos para a prática de atividades físicas da população, como priorizar a construção e manutenção de calçadas, ciclovias, faixas de pedestres e parques, bem como reforçar a segurança desses locais públicos para maior aderência da comunidade à prática de atividades físicas em seus diferentes domínios. Ademais, outros estudos comparando esse comportamento e os fatores associados em adolescentes de diferentes cidades devem ser conduzidos em períodos semelhantes.
CONCLUSÕES
Ao contrário do esperado, os adolescentes catarinenses se deslocam mais passivamente que adolescentes amazonenses. Dentre as variáveis observadas, apenas sexo e renda familiar apresentaram associação simultaneamente nas duas cidades. Medidas para evitar e reduzir o deslocamento passivo devem ser direcionadas principalmente ao sexo feminino e aos adolescentes com maior renda familiar. Considerando-se que os adolescentes foram recrutados na escola, esta pode assumir um papel importante na promoção de um comportamento mais ativo.