INTRODUÇÃO
A diferença entre os desempenhos de meninos e meninas em habilidades motoras é alvo de investigação há décadas. Em 1985, Thomas e French (1985) realizaram uma extensa revisão sistemática e metanálise sobre esta temática e seus resultados mostraram que as crianças do sexo masculino sempre apresentavam melhor desempenho do que as meninas na maioria das habilidades investigadas. Este foi um estudo abrangente, revisando investigações com métodos observacionais e experimentais. De um modo geral, os fatores sociais, econômicos e culturais, os quais pareciam estimular diferentemente meninos e meninas, foram as justificativas para as diferenças a favor dos meninos (Thomas & French, 1985).
No entanto, desde 2008, após a divulgação do modelo teórico desenvolvimental sobre a competência motora, variáveis psicológicas e de saúde (Stodden et al., 2008), houve um renovado interesse no fenômeno da competência motora, provocando um expressivo aumento no volume de publicações na área do Comportamento Motor. A competência motora pode ser definida como desempenho proficiente de um indivíduo em uma ampla gama de habilidades motoras grossas e finas, bem como os mecanismos subjacentes, incluindo coordenação e controle motor (Sigmundsson, Loras, & Haga, 2016; Stodden et al., 2008; Utesch & Bardid, 2019). Nestes estudos, mesmo que a comparação entre sexos não seja o foco, ela sempre é examinada, dado que a diferença entre sexos seria esperada, e os resultados nem sempre são consistentes. Tratando-se especialmente de habilidades motoras grossas (HMG), que envolvem grandes grupos musculares (Magill, 2011), não é raro ver estudos cujos resultados revelam que os meninos têm melhores desempenhos (Ré et al., 2018; Silva, Catuzzo, Monteiro, Tudela, & Ré, 2019) e, em outros estudos, as meninas mostram-se mais competentes que os seus pares de sexo oposto (Medeiros, Zequinão, & Cardoso, 2016; Oliveira, Oliveira, & Cattuzzo, 2013). As explicações para tais diferenças polarizam entre os fatores biológicos e socioculturais.
É também importante notar que programas de intervenção motora têm demonstrado efeitos positivos na competência motora em HMG de crianças de ambos os sexos (e.g.,Anjos & Ferraro, 2018; Palmer, Miller, Meehan, & Robinson, 2020). Assim, é plausível pensar que se a oportunidade de prática for a mesma para ambos, talvez as diferenças na competência motora em HMG entre meninos e meninas não apareçam. Hipoteticamente, a explicação para tal diferença entre os sexos (ou a ausência dela) poderia estar associada às oportunidades e à qualidade da prática ofertada às crianças, e não necessariamente por causa das restrições biológicas ou culturais associados ao sexo da criança.
Deste modo, uma revisão mais atualizada sobre as possíveis diferenças na competência motora em HMG entre meninos e meninas parece ser necessária. O presente estudo objetivou revisar sistematicamente a literatura, examinando os estudos que investigaram intervenções na competência motora e sintetizar os resultados da comparação entre sexos.
MÉTODOS
Trata-se de uma revisão sistemática e integrativa, cujo objetivo foi analisar criticamente e sintetizar o conhecimento acerca de um tema, utilizando busca sistematizada em bases de dados científicos (Cattuzzo, Feitoza, Santos, Pereira, & Silva, 2023); a revisão seguiu as diretrizes do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses - PRISMA (Page et al., 2022).
Bases de dados e termos de busca
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Pubmed, Medline, Embase, Web of Science e CINAHL. Com o auxílio da estratégica PICO (Nishikawa-Pacher, 2022) foi elaborada a pergunta norteadora deste estudo “- Será que, meninos e meninas (P= paciente) ao serem submetidos a programas de intervenção com atividades físico-motoras (I= intervenção), demonstram diferenças entre sexos (C= comparação) em sua competência motora (O= outcome/desfecho)?”. Os termos usados foram: child” OR “preschool” OR “childhood” AND “motor competence” OR “motor development” OR “motor skills” OR “fundamental movement skills” OR “motor coordination” OR “locomotor skills” OR “object control skills” OR “stability skills” AND “intervention” OR “trial” OR “randomized” or “controlled” OR “experiment”.
Critérios de elegibilidade
Foram incluídos artigos publicados em inglês e português, a partir do ano de 2008, considerando o marco do lançamento do modelo teórico de Stodden et al. (2008). Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: (1) a população ser composta por crianças sem deficiência na faixa etária de 3 a 10 anos, período que abrange as fases da primeira e segunda infância, identificada como um momento crucial em termos de formação e desenvolvimento das HMG (Ulrich, 2000); (2) o estudo deve avaliar a diferença no desempenho motor entre os sexos como desfecho primário ou secundário; (3) artigos do tipo pré-experimentais ou quase-experimentais.
Seleção dos estudos
Para realizar a seleção dos artigos, os resultados provenientes de todas as bases foram exportados para o aplicativo da web (gratuito) Rayyan (https://rayyan.qcri.org) (Ouzzani, Hammady, Fedorowicz, & Elmagarmid, 2016). Inicialmente, as duplicatas dos artigos foram removidas por um único pesquisador, MRSP. A seguir, dois pesquisadores independentes, na modalidade duplo-cego (MRSP, NNS), fizeram a leitura dos títulos e resumos para inclusão dos artigos. Os artigos incluídos foram novamente revisados pela leitura na íntegra, ainda de maneira independente pelos dois pesquisadores. Com o auxílio do aplicativo Rayyan, as inconsistências entre os dois revisores eram examinadas e decididas por um terceiro revisor (MTC).
Qualidade dos estudos
A qualidade dos estudos foi examinada com a Escala Tool for The assessment of Study Quality and Reporting in Exercise (TESTEX) (Smart et al., 2015), que analisa a confiabilidade de estudos relacionados ao treinamento físico, por meio de: (a) qualidade do estudo (cinco pontos) e (b) qualidade do relato (10 pontos). Além disso, é baseada em 12 critérios e com escore total de 15 pontos, atribuindo um ponto à presença de evidência e zero na sua ausência. São considerados de alta qualidade estudos com pontuação igual a 13 pontos ou superior; são considerados de média qualidade estudos com pontuação entre 9 e 12; e são estudos de baixa qualidade os que apresentaram pontuação igual ou inferior a 8 pontos.
Extração dos dados
Nessa etapa foram extraídos dados dos estudos relativos à amostra, detalhes da intervenção, variáveis, instrumento de avaliação, resultado da diferença entre sexos (sim ou não) (Tabela 1, Material Suplementar).
Intervenção | ||||||
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Autor/ Ano/ Local | Amostra (n/sexo) | Tipo | Tempo Total/ Frequência Semanal/ Duração Diária | Variáveis dependentes e independentes | Instrumento | Resultados |
Zask et al. (2012) | 321 crianças (3, 5 e 8 anos) | HMG: jogos das habilidades do TGMD-2 | 2 meses e 2 semanas/ 2x/ | VD: HMG VI: sexo, tempo, grupo | TGMD-2 | Superioridade masculina nas habilidades de locomoção. |
Ha et al. (2021) | 171 crianças (102 meninos e 69 meninas) com 10 anos | Atividades e jogos para pais e filhos centrados nas HMG | 6 meses/ 30 min, seguidas de aulas de 60 min/ 2 ou 3 semanas | VD: HMG. VI: tempo, grupo e sexo | TGMD-3 | Não houve diferenças entre os sexos |
Sousa et al. (2016) | 75 crianças (35 meninos e 40 meninas) com 7 a 10 anos. | Atividades Esportivas (programa social) | 3 meses | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo | TGMD-2 | Superioridade masculina nas habilidades de locomoção e controle de objetos. |
Barnett et al. (2015) | 106 crianças, entre 4 e 8 anos. | videogames ativos (variedade de esportes com uso de habilidades de controle de objetos) | 1 mês e 2 semanas/ 1x/ 60 min | VD: habilidades de controle de objeto. VI: tempo, grupo, sexo, experiências em esporte com bola | TGMD-2 | Melhora significativa nas meninas nas habilidades de controle de objetos. Os meninos não apresentaram diferenças no pré e pós-intervenção |
Sheehan e Katz (2013) | 64 crianças (28 meninas e 36 meninos) | videogames ativos | 1 mês e 2 semanas/ 4 a 5 dias/ 34 min | VD: Equilíbrio VI: tempo, grupo, sexo. | A estabilidade postural foi testada de seis maneiras: postura unipodal e tandem | Não houve diferença entre sexos, porém as meninas apresentaram estabilidade postural melhor que os meninos. |
Leis et al. (2020) | 492 crianças de 3 a 5 anos. | Atividades de HMG e jogo ativo. | 6 a 8 meses. | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2, | Não houve diferença entre os sexos. |
Duncan et al. (2018) | 94 crianças (49 meninos e 45 meninas), de 5 a 8 anos de idade. | Treinamento Neuromuscular Integrado | 2 meses e 2semanas/ 1x/ 30 a 40 min | VD: produto e processo das HMG VI: tempo, grupo, sexo. | Processo: TGMD-2; Produto: tempo de corrida de 10 m no ar, altura do salto vertical; distância do salto horizontal e do arremesso de medicine ball. | Não houve diferença entre os sexos. |
Foulkes et al. (2017) | 162 crianças,de 3 e 4 anos | Brincadeiras ativas (programa social) | 6 semanas/ 1x/ 60 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Faigenbaum et al. (2015) | 41 crianças de 9 e 10 anos. | Aulas de Educação Física com treinamento neuromuscular integrado | 2 meses/ 2x/ 15 min de treinamento de força e 45 de aulas de educação física. | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | Salto em distância e salto unipodal, | Não houve diferença significativa entre os sexos. |
Gu et al. (2021) | 104 crianças de 3 a 6 anos (50 meninos e 54 meninas) | Tênis de mesa | 3 meses / 3x/ 50 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Meninos: melhora significativa no escore total de habilidades motoras de locomoção; meninos e meninas: melhora significativa no escore total para habilidades motoras grossas e controle de objetos. |
Liu et al. (2022) | 186 crianças, de 3 a 6 anos (116 meninos e 70 meninas) | Treinamento das HMG | 3 meses/ 2x/ 1h de duração | VD: escores totais de salto e três estágios do salto VI: tempo, grupo, sexo. | Escala de avaliação motora FMS Fundamental Motor Skills: Learning, Teaching, and Assessment. | Não houve diferença significativa entre os sexos. |
Silva et al. (2021) | 84 crianças, de 4 a 5 anos | Atividades de HMG (locomotoras, controle de objetos e estabilizadoras). | 18 aulas/ 2x/ 50 min | VD: Coordenação motora VI: tempo, grupo, sexo. | KTK | Meninos: superiores na trave de equilíbrio. Meninas: sem diferenças entre o grupo controle e experimental após intervenção. |
Šalaj, Milčić e Šimunović (2019) | 31 crianças, 15 meninos e 16 meninas) | Aulas de ginástica artística | 2 anos/ 3x/ 1h30 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Não apresentaram diferenças entre os sexos. |
Robinson et al. (2017) | 124 crianças, (58 meninas e 66 meninos) com 3 anos de idade | Atividades de habilidades de controle de objetos com bola | 2 meses e 1 semana/ 2x/ 30 min | VD: Habilidades de controle de objetos com bola VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Gao et al. (2019) | 65 crianças (33 meninas e 32 meninos) com 4 e 5 anos. | videogames ativos | 2 meses/ 5x/ 30 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Bardid et al. (2017) | 992 crianças (280 meninos e 243 meninas), de 3 a 8 anos | Atividade Lúdicas e Jogos Ativos | 7 meses e 2 semanas/ 1x/ 60 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo, Idade. | TGMD-2 | Meninas: menor desempenho nas habilidades de controle de objetos e maior desempenho nas habilidades de locomoção do que os meninos em ambos os grupos. |
Tsapakidou et al. (2014) | 98 crianças (50 meninos e 48 meninas de 3 a 5 anos. | Atividades de HMG | 2 meses / 2X/ 30 a 40 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Chan et al. (2019) | 282 crianças | Atividades de HMG | 550 minutos | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-3 | Não houve diferença entre os sexos. |
Piek et al. (2013) | 511 crianças (257 meninos e 254 meninas) com 4 a 6 anos | Atividades Lúdicas com imitação dos movimentos dos animais | 6 meses/ 4x/ 30 min | VD: competência motora de habilidades motoras grossas e finas VI: tempo, grupo, sexo. | Teste Bruininks-Oseretsky (BOT-2SF) e M-ABC | Os meninos melhoraram com o tempo, mas as meninas não no desempenho das habilidades motoras, porém não houve diferenças entre os sexos. |
Palmer et al. (2020) | 46 crianças (41% meninos) de 3 a 5 anos | Atividades de HMG | 3 meses e 3 semanas/ 3x/ 30 min | VD: Processo e produto das HMG VI: tempo, grupo, sexo, altura | TGMD-3 e seis medidas de produto das HMG. | Os meninos superaram as meninas em habilidades de bola, considerando a análise de processo. |
Rudd et al. (2017) | 333 crianças (51% meninas, 41% intervenção) com idade média de 8,1 anos | Ginástica | 2 meses e 2 semanas / 2 h/ semana | VD: HMG. VI: tempo, tipo de condução, grupo, sexo. | TGMD-2, Avaliação de Habilidades de Estabilidade e KTK | O sexo não teve efeito significativo nas habilidades de estabilidades, e sim nas habilidades de locomoção, no qual as meninas demonstram maior melhora do que os meninos. Já os meninos, melhoraram significantemente mais que as meninas nas habilidades de controle de objetos. |
Fu et al. (2018) | 65 crianças (31 meninas e 34 meninos) | videogames ativos | 3 meses/ 5x/ 30 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-3 | Diferenças entre sexos ocorreram nas habilidades de controle de objetos, com os meninos exibindo maiores pontuações do que as meninas. |
Burns et al. (2017) | 1460 crianças (730 meninas e 730 meninos) | Educação Física Escolar | 3 meses 1x/ 50 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Apenas os meninos melhoraram na pontuação das HMG. |
Mulvey, Miedema, Stribing, Gilbert e Brian (2020) | 93 crianças (46 meninas, 47 meninos) de 3 a 5 anos. | Atividades de HMG | 2 meses e 2 semanas/ 2x/ 30 min | VD: HMG VI: tempo, grupo, sexo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Telford et al. (2022) | 314 crianças (180 meninos, 134 meninas) de 3 a 5 anos | Atividades de Alfabetização Física | 5 meses e 2 semanas/ 5x/ 1 a 3h | VD: HMG de controle de objetos, locomoção, equilíbrio e controle motor fino VI: idade, tempo, sexo, status socioeconômico, agrupamento de centros. | MABC e teste de destreza manual (tarefa de lançamento de moeda) | Não houve diferença entre os sexos. As meninas tiveram uma pontuação TGMD-2 mais baixa no início do estudo. Mas, ao longo do tempo a melhora foi igual para os sexos. |
Coppens et al. (2021) | 922 crianças, com idade de 3 a 8 anos | Atividades de HMG | 7 meses e 2 semanas/ 1x/ 1h | VD: HMG. VI: idade, tempo, sexo, Grupo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Bellows et al. (2013) | 274 crianças de 3 a 5 anos | Atividades de HMG | 4 meses e 2 semanas/ 4x/ 15 a 20 min | VD: HMG. VI: tempo, grupo, sexo, etnia, sala de aula e idade. | Escala Peabody Development Motor (PMDS-2) | As meninas melhoraram mais que os meninos nas habilidades de controle de objetos. |
Wasenius et al. (2018) | 215 crianças de 3 a 5 anos | Atividades de HMG | 7 meses/ 5x / 60 min | VD: HMG VI: idade, tempo, sexo, Grupo. | TGMD-2 | Não houve diferença entre os sexos. |
Bryant et al. (2016) | 165 crianças de 4 e 5 anos (77 meninos e 88 meninas) | Atividades de HMG | 1 mês e 2 semanas | VD: HMG. VI: idade, tempo, sexo, grupo, IMC. | Processo: lista de verificação da corrida, galope lateral, salto, chute, recepção, lançamento por cima do ombro, salto vertical e equilíbrio estático. Produto: velocidade corrida de 10 m e altura do salto vertical. | Não houve diferença entre os sexos. |
Božanić et al. (2011) | 58 crianças com idade média de 6 anos (34 meninos e 24 meninas) | Ginástica | 2 meses e 2 semanas/ 3x/ 35 min | VD: HMG. VI: idade, tempo, sexo, grupo. | Bruininks-Oseretsky Test of Motor Proficiency (BOT-2) | Diferença entre sexos em equilíbrio, velocidade de corrida e agilidade em favor das meninas. |
Livonen et al. (2011) | 84 crianças (38 meninas e 46 meninas), com idade média de 4 anos | Aulas de Educação Física | 6 meses/2x/45 min | VD: HMG VI: idade, tempo, sexo, grupo. | APM-Inventory: Cartilha de teste manual para avaliação de habilidades motoras, perceptivas e fundamentais. | Não houve diferença entre sexos |
VD: Variáveis Dependentes; VI: Variáveis Independentes; HMG: habilidades motoras grossas. Fonte: os autores.
RESULTADOS
Processo de seleção dos artigos
O processo de seleção dos artigos resultou em trinta e um artigos incluídos, como mostrado no fluxograma da Figura 1.
PRISMA: Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses.
Fonte: modificado de Page et al. (2022).
Características gerais dos estudos
A Tabela 1 (Material Suplementar) detalha as características de cada estudo. No geral, as amostras investigadas variaram de 31 à 992 crianças; a faixa etária predominante da amostra variou de três a cinco anos; as creches/escolas foram os lugares mais frequentes das intervenções (n= 28; 90,3%); a intervenção mais utilizada foi atividades com habilidades motoras (14 artigos; 45,16%), seguidas do videogame ativo (quatro artigos, 12,9%), atividades lúdicas e jogos (3 artigos, 9,67%), ginástica artística (três artigos, 9,67%), treinamento neuromuscular integrado e educação física escolar (dois artigos cada, 6,45%), atividades esportivas, tênis de mesa e alfabetização física (um artigo cada, 3,22%). A duração total das intervenções variou de um mês a dois anos; a frequência das sessões variou de uma vez a cada duas ou três semanas, e até cinco vezes por semana; a duração das sessões diárias variou de 30 minutos a uma hora e 30 minutos. O instrumento mais utilizado para avaliar o desempenho motor foi o TGMD-2 (Ulrich, 2000), utilizado em 18 estudos (58,06%). As variáveis dependentes que apareceram com mais frequência foram: habilidades motoras fundamentais (n= 12, 38,7%), habilidades de controle de objetos (n= 15, 48,3%) e habilidades de locomoção (n= 13, 42,9%). As variáveis independentes foram: tempo, grupo e sexo. A maior proporção dos estudos analisados (n= 25; 80,6%), mostrou resultados positivos para os efeitos das intervenções.
Avaliação da qualidade dos estudos
Nenhum dos artigos analisados atingiu a pontuação máxima de 15 pontos (Tabela 2). Apenas três estudos (9,67%) alcançaram um escore de 13 pontos. Os estudos de baixa qualidade totalizaram 32% da amostra. Os pontos mais frágeis nos estudos foram: ocultação da alocação (85,7%), ausência de cegamento do avaliador para avaliação do desfecho (75%) e ausência de descrição sobre eventos adversos (71,4%).
Itens avaliados* | ||||||||||||||||
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Artigo | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6a | 6b | 6c | 7 | 8a | 8b | 9 | 10 | 11 | 12 | Total |
Wasenius et al. (2018) | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 13 |
Fu et al. (2018) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 13 |
Robinson et al. (2017) | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 13 |
Mulvey et al. (2020) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 12 |
Chan et al. (2019) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 12 |
Faigenbaum et al. (2015) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 12 |
Duncan et al. (2018) | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 12 |
Barnett et al. (2015) | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 12 |
Bryant et al. (2016) | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 12 |
Ha et al. (2021) | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 12 |
Bellows et al. (2013) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 11 |
Telford et al. (2022) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 11 |
Palmer et al. (2020) | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 11 |
Gao et al. (2019) | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 11 |
Gu et al. (2021) | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 11 |
Sheehan e Katz (2013) | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 11 |
Leis et al. (2020) | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 10 |
Rudd et al. (2017) | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 10 |
Tsapakidou et al. (2014) | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 10 |
Silva et al. (2021) | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 10 |
Foulkes et al. (2017) | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 10 |
Livonen et al. (2011) | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 10 |
Liu et al. (2022) | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 9 |
Coppens et al. (2021) | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 9 |
Burns et al. (2017) | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 9 |
Piek et al. (2013) | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 9 |
Bardid et al. (2017) | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 9 |
Šalaj et al. (2019) | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 9 |
Sousa et al. (2016) | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 8 |
Zask et al. (2012) | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 1 | 7 |
Božanić et al. (2011) | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 7 |
Itens da escala TESTEX (Smart et al., 2015): 1= critério de elegibilidade específico; 2= tipo de randomização especificada; 3= alocação ocultada; 4= grupos similares no baseline; 5= os avaliadores foram cegados (pelo menos em um resultado principal); 6= resultados avaliados em 85% dos participantes (6a= concluíram mais de 85%; 6b= os eventos adversos foram relatados; 6c= foi relatado atendimento ao exercício); 7= intenção de tratar a análise estatística; 8= comparação estatística entre os grupos foi relatada (8a= comparações entre grupos são relatadas para a variável de desfecho primário de interesse; 8b= comparações entre grupos são relatadas para pelo menos uma medida secundária); 9= medidas de tendência central e medidas de variabilidade para todas as medidas de resultado foram relatadas; 10= monitoramento da atividade no grupo-controle; 11= a intensidade relativa ao exercício permaneceu constante; 12= o volume do exercício e o gasto de energia foram relatados.
A Tabela 3 detalha algumas das informações extraídas dos estudos; ali estão expostos os resultados das diferenças entre sexos (ou a ausência) considerando o tipo de intervenção e a qualidade do estudo.
Nome/ano | Tipo da intervenção | Qualidade do estudo | |
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Estudos onde houve diferenças entre sexos | |||
Sexo/habilidade | |||
Fu et al. (2018) | Meninos: > CO | VA | Alta |
Barnett et al. (2015) | Meninas: > CO | VA | Alta |
Bellows et al. (2013) | Meninas: > CO | HMG | Média |
Palmer et al. (2020) | Meninos: > CO | HMG | Média |
Silva et al. (2021) | Meninos: > Equilíbrio | HMG | Média |
Gu et al. (2021) | Meninos: > LO | Tênis de Mesa | Média |
Burns et al. (2017) | Meninos: > Escore total | EF Escolar | Média |
Rudd et al. (2017) | Meninos: > CO; Meninas: > LO | Ginástica | Média |
Bardid et al. (2017) | Meninos: > CO; Meninas: > LO | Ativ. Lúdicas | Média |
Zask et al. (2012) | Meninos: > LO | HMG | Baixa |
Sousa et al. (2016) | Meninos: > CO e LO | Ativ. esportivas | Baixa |
Božanić et al. (2011) | Meninas: > Equilíbrio; Velocidade de Corrida | Ginástica | Baixa |
Estudos onde não houve diferenças entre sexos | |||
Wasenius et al. (2018) | --- | HMG | Alta |
Mulvey et al. (2020) | --- | HMG | Alta |
Chan et al. (2019) | --- | HMG | Alta |
Bryant et al. (2016) | --- | HMG | Alta |
Ha et al. (2021) | --- | HMG | Alta |
Faigenbaum et al. (2015) | --- | TNI | Alta |
Duncan et al. (2018) | --- | TNI | Alta |
Robinson et al. (2017) | --- | CO | Alta |
Leis et al. (2020) | --- | HMG | Média |
Tsapakidou et al. (2014) | --- | HMG | Média |
Liu et al. (2022) | --- | HMG | Média |
Coppens et al. (2021) | --- | HMG | Média |
Gao et al. (2019) | --- | VA | Média |
Sheehan e Katz (2013) | --- | VA | Média |
Telford et al. (2022) | --- | AAF | Média |
Foulkes et al. (2017) | --- | Jogos Ativos | Média |
Livonen et al. (2011) | --- | EF Escolar | Média |
Piek et al. (2013) | --- | Ativ. Lúdicas | Média |
Šalaj et al. (2019) | --- | Ginástica | Média |
AAF: Atividades de Alfabetização Física; HMG: Habilidades Motoras Grossas; Ativ: Atividades; CO: habilidades de controle de objetos; EF: Educação Física; LO: habilidades de locomoção; TNI: Treinamento Neuromuscular Integrado; VA: Videogames ativos; > desempenho superior.
Síntese crítica da revisão
Dos estudos incluídos nesta revisão, a maior proporção (74,19%) foi publicada entre os anos de 2011 e 2017, reforçando a ideia da renovação do interesse e um novo olhar para temática após a divulgação do modelo teórico de Stodden et al. (2008). De maneira geral, os resultados mostraram que creches e escolas foram os lugares mais frequentes da intervenção. Na maioria das vezes essa locação é escolhida por conveniência do estudo, aumentando a probabilidade de obter uma amostra homogênea. Alinhado com esse resultado, a faixa etária predominante das amostras variou de três a cinco anos, período que compreende a fase da primeira infância e a educação básica ou pré-escolar (Brasil, 2022). O ambiente escolar é um fator importante para o desenvolvimento infantil, devido a quantidade de horas que as crianças despendem no local (Venetsanou & Kambas, 2010). Portanto, deveria ser um lócus primário de intervenção na competência motora infantil.
O TGMD-2 (Ulrich, 2000) foi o instrumento de avaliação mais utilizado, o que também está alinhado às características das amostras mais investigadas. Esse teste foi elaborado para crianças de três a dez anos de idade, avaliando as HMG. Possui dois subtestes: (a) habilidades de locomoção (correr, saltar obstáculo, saltitar, galopar, saltar horizontal e deslizar) e (b) habilidades de controle de objeto, no caso a bola (chutar, rolar, receber, rebater, quicar e lançar). É um teste referenciado à norma e critério, de fácil aplicação, com um tempo variando entre 15 e 30 minutos.
Nesta revisão, 80,6% dos estudos incluídos mostraram resultados positivos para os efeitos das intervenções, incluindo intervenções com videogames ativos. Portanto, pode-se sugerir que em crianças para as quais são ofertadas oportunidades de prática, organizadas e sistemáticas, o resultado em sua competência motora é positivo. Este achado é semelhante a outros estudos de revisão sistemática (Morgan et al., 2013; Tompsett, Sanders, Taylor, & Cobley, 2017).
Entre os artigos incluídos, não houve diferenças entre os sexos em 19 estudos (61,3%) os quais foram classificados como sendo de alta ou média qualidade (Tabela 3). Estes resultados permitem sugerir que tanto meninos como meninas que têm as mesmas oportunidades de práticas físico-motoras de forma organizada e sistemática, tendem a apresentar melhoras substanciais em sua competência motora. Em suma, crianças submetidas aos mesmos programas de treinamento respondem igualmente à aprendizagem de habilidades motoras, as quais resultam na melhora das HMG, controle e coordenação motores (aumento da competência motora), independentemente do seu sexo.
Entre os estudos que encontraram diferenças na competência motora entre meninos e meninas após intervenção (n= 12), a maior proporção deles (n= 7; 58,3%), mostrou a superioridade dos meninos em relação às meninas em algum componente da competência motora; em apenas três estudos (25%) o desempenho das meninas foi superior (Tabela 3).
Esses estudos que apresentaram diferenças entre sexo em seus achados contabilizaram 18,1% de estudos de alta qualidade, seguidos por 54,5% de estudos de média qualidade e 27,2% de estudo de baixa qualidade (Tabela 3). Em suma, cerca de um terço dos estudos que acharam diferenças podem ter seus resultados comprometidos pela baixa qualidade metodológica. Estes resultados tomados juntos, reforçam a sugestão de que o desempenho de meninos e meninas após intervenções físico-motoras tende a ser positivos e semelhantes.
Intervenções focadas em HMG
Nos estudos cujas intervenções foram atividades e jogos focados nas HMG houve efeitos positivos em algum (ns) dos componentes motores (habilidades de controle de objetos, locomoção e equilíbrio). Zask et al. (2012) acompanharam a amostra por três anos e as crianças do grupo intervenção permaneceram com pontuações maiores do que as do grupo controle ao longo do tempo; no entanto, os meninos mostraram desempenho superior nas habilidades de locomoção (Zask et al., 2012); para estes autores a explicação para esses resultados é que as habilidades de locomoção podem ser adquiridas em ambientes típicos que as crianças são expostas, como em suas casas e na comunidade; uma outra justificativa estaria no efeito teto, já que as crianças analisadas tiverem mais espaço para melhorar as habilidades de controle de objetos em oposição as de habilidades de locomoção. Leis et al. (2020) apresentaram uma justificativa semelhante para o seu resultado positivo da intervenção apenas nas habilidades de locomoção, afirmando que a maior parte das creches participantes do estudo enfatizam em suas atividades contendo habilidades de locomoção em detrimento das habilidades de controle de objetos (Leis et al., 2020). Ha, Lonsdale, Lubans, Ng e Ng (2021), também analisaram as crianças pós-intervenção e seis meses depois; houve efeitos positivos após a intervenção nas HMG, mas esses resultados não se mantiveram satisfatórios após seis meses. Os autores demonstraram preocupação com esses dados, já que as crianças receberiam aulas de Educação Física formal, sugerindo que os profissionais deveriam receber um suporte adicional ou até mesmo uma mudança curricular focada no desenvolvimento das HMG (Ha et al., 2021).
Resultados semelhantes foram apresentados em Robinson, Veldman, Palmer e Okely (2017), que avaliaram os efeitos ao final da intervenção e nove semanas depois; os resultados mostraram uma leve diminuição no desempenho das habilidades de controle de objetos, o que explicitaria a necessidade da continuidade dos programas para o desenvolvimento dessas habilidades (Robinson et al., 2017). Tsapakidou, Stefanidou e Tsompanaki (2014) enfatizaram a importância de envolver crianças jovens, ainda nas idades pré-escolares, em programas de movimento para o desenvolvimento das HMG, aproveitando a inclinação natural das crianças ao movimento (Tsapakidou et al., 2014). Chan, Ha, Ng e Lubans (2019) ressaltaram que a importância da prática fornecida por professores especializados para melhorar a proficiência de crianças em HMG, e Silva, Silva e Velten (2021) também destacaram a necessidade da atuação profissional desde o início da primeira infância e a atenção em propiciar meios para o desenvolvimento adequado das HMG das crianças (Chan et al., 2019; Silva et al., 2021). Coppens et al. (2021), acompanharam a amostra de seu estudo durante seis anos e os resultados positivos obtidos na competência motora logo após as intervenções não se mantiveram ao longo do tempo. Uma das justificativas foi a idade, isso porque as crianças do grupo controle eram um ano mais novas do que as do grupo de intervenção; isto poderia proporcionar uma janela de oportunidade um pouco maior para as crianças mais novas melhorando suas HMG; a segunda explicação seria o tempo curto ou a intensidade do programa não ter sido suficiente para obter efeitos sustentados (Coppens et al., 2021).
Palmer et al. (2020) justificam a eficácia do programa de intervenção apenas nas habilidades de locomoção devido ao contexto. As atividades ocorreram num ambiente ao ar livre com demonstração de habilidades com equipamentos que podem ter encorajado um maior envolvimento em habilidades de locomoção ao invés das habilidades de controle de objetos; de fato, foi observado pelos profissionais envolvidos na aplicação da intervenção um maior gasto de tempo das crianças em habilidades de locomoção (Palmer et al., 2020). Os autores ressaltaram, ainda, que esses achados podem indicar que as habilidades de controle de objetos podem exigir mais feedback e instrução durante a prática motora. Já Liu et al. (2022) em uma intervenção com a habilidade saltar observaram que o desempenho do salto das crianças novatas (sem conhecimento prévio da habilidade) diminuiu com o aumento da dificuldade da tarefa; já com as crianças especialistas (com conhecimento prévio da habilidade) o desempenho aumentou; os autores sugeriram que esses resultados podem estar atrelados às habilidades cognitivas e de tomada de decisão (Liu et al., 2022). Em Bryant, Duncan, Birch e James (2016), os desempenhos nas HMG foram medidos pelo produto do movimento, a altura de salto e velocidade da corrida; os resultados mostraram que a altura do salto aumentou, mas o mesmo não ocorreu com a velocidade da corrida. Segundo os autores, esse resultado se deveu à dificuldade de dominar as habilidades de locomoção, como a corrida de velocidade e que, nessa amostra, a técnica correta ainda não estava na fase autônoma; eles sugeriram que as crianças gastam mais energia se concentrando na execução da habilidade, influenciando negativamente no produto do desempenho da corrida (velocidade) (Bryant et al., 2016).
Considerando que todos os estudos de intervenções com HMG apresentaram alta ou média qualidade, a presente revisão sugere que tais intervenções tendem a provocar efeitos positivos na competência motora de pré-escolares.
Intervenção com videogames ativos na competência motora de pré-escolares
Nas intervenções que utilizaram os videogames ativos, Gao, Zeng, Pope, Wang e Yu (2019), revelaram melhores resultados nos grupos de intervenção comparados ao grupo controle, embora essa evidência não tenha sido estatisticamente significativa. Estes resultados, segundo os autores, podem ter uma explicação na curta duração da intervenção, no pequeno tamanho da amostra e no pouco nível de atividade física gerado pela intervenção (Gao et al., 2019). Explicação semelhante àquela de Barnett et al. (2015) que relataram, ainda, a dificuldade de manter as crianças envolvidas por longos períodos nos videogames ativos sem uma variedade de jogos (Barnett et al., 2015). Essa justificativa também foi utilizada em Foulkes et al. (2017), numa intervenção de brincadeiras lúdicas e jogos na qual não foram encontrados efeitos positivos nos escores de HMG; eles também argumentaram que fatores como o treinamento e experiências anteriores dos aplicadores da intervenção, o currículo e qualidade do programa podem ter interferido (Foulkes et al., 2017). Fu, Burns, Constantino e Zhang (2018), por outro lado, encontraram resultados de melhora nas HMG e nos níveis de atividade física, quando comparados ao grupo controle de jogo livre (Fu et al., 2018). No estudo de Sheehan e Katz (2013), também houve efeitos positivos da intervenção de seis semanas utilizando uma variedade de equipamentos de videogames ativos e destacaram a importância dessa variedade de ambientes para que as crianças possam ter melhores desempenhos em práticas que mais gostem e se sintam atraídos (Sheehan & Katz, 2013). Revisão prévia já havia destacado a vantagem da atratividade no uso de exergames com jovens (Medeiros et al., 2017); no entanto, no caso de pré-escolares essa sugestão deve ser pensada com mais cautela.
Os quatro estudos de intervenções com o uso de videogames ativos apresentaram alta ou média qualidade metodológica. Assim, de acordo com nossa revisão, videogames ativos parecem ser ferramentas promissoras para a melhora da competência motora em HMG em pré-escolares, no entanto mais estudos são necessários para concluir sobre seu efeito positivo.
Intervenção com brincadeiras lúdicas e jogos
O estudo de Bardid et al. (2017) com intervenção de brincadeiras lúdicas e jogos mostrou que, quando comparadas às crianças com pontuações iniciais mais altas, as crianças com pontuações iniciais mais baixas demonstraram maiores ganhos tanto em habilidades de locomoção quanto nas de controle de objetos; a explicação foi o maior potencial destas últimas de melhorarem seu desempenho e os autores destacaram a importância da intervenção, não importando o estado inicial de desenvolvimento das crianças (Bardid et al., 2017). No estudo de Gu et al. (2021), em uma intervenção com o tênis de mesa, houve a influência dos jogos de bola no desenvolvimento de habilidades de controle de objetos. Para os autores, a própria característica do esporte pode limitar o desenvolvimento de certas habilidades; portanto, é importante projetar programas esportivos diversificados e com métodos abrangentes para promoção da competência motora das crianças (Gu et al., 2021).
Telford, Olive e Telford (2022), com uma intervenção baseada em atividades de alfabetização física, sugeriram que a melhora na habilidade de lançamento de moedas (controle motor fino), apesar de inesperada — já que a intervenção envolveu HMG —, pode ser explicada como um efeito mediado por processos cognitivos.
Intervenção com treinamento neuromuscular integrado
Faigenbaum et al. (2015) relataram que a falta de efeitos da intervenção com TNI no salto em distância pode ser atribuída ao grupo controle ter sido submetido às aulas de Educação Física que, além de jogos tradicionais, envolviam atividades esportivas (Faigenbaum et al., 2015). Duncan, Eyre e Oxford (2018), por sua vez, evidenciaram o uso de uma intervenção de TNI como uma importante fonte na construção de uma base atlética fornecendo força e condicionamento até o final da infância (Duncan et al., 2018). Assim, intervenção com TNI em crianças pré-escolares parece ainda precisar de mais estudos para conhecer seu impacto sobre a competência motora.
Estudos que apontaram desempenho superior dos meninos
Gu et al. (2021) observaram que somente os meninos apresentaram melhora significativa nas habilidades de locomoção. Porém, ambos os sexos apresentaram melhoras no escore total de HMG e de controle de objetos. Nas investigações de Piek et al. (2013) apenas os meninos melhoraram seus desempenhos nas HMG após o programa de intervenção, porém, estatisticamente, não houve diferenças entre os sexos (Piek et al., 2013).
No estudo de Fu et al. (2018) os resultados indicaram diferenças significativas a favor dos meninos nas habilidades de controle de objetos. Esses resultados corroboraram com os de Palmer et al. (2020), no qual os meninos superaram as meninas em HMG com bola, considerando as medidas de processo do movimento. Os resultados de Rudd et al. (2017) também apontaram para a superioridade dos meninos nas HMG de controle de objetos, enquanto as meninas foram melhores nas de locomoção. E esses resultados foram semelhantes aos de Bardid et al. (2017). Os resultados de Silva et al. (2021), por sua vez, apontaram que os meninos foram melhores no teste trave de equilíbrio e em Burns, Fu, Fang, Hannon e Brusseau (2017), os meninos foram melhores no escore total das HMG do TGMD-2. Os resultados na investigação de Zask et al. (2012) apontaram superioridade masculina nas HMG de locomoção. Os resultados de Sousa, Bandeira, Valentini, Ramalho e Carvalhal (2016) também apontaram a superioridade dos meninos nas HMG de locomoção e de controle de objetos.
Piek et al. (2013), cuja intervenção demonstrou uma melhora das HMG dos meninos, mas não das meninas, argumentaram que esse resultado pode ser justificado pela diferença nas características corporais, como massa muscular e massa gorda, que começam a ser demonstradas a partir dos 6 anos de idade. Além do instrumento de avaliação utilizado (BOT-2) possuir valores normativos para crianças nos EUA ter sido aplicado em crianças australianas. Gu et al. (2021) usaram como justificavas para as diferenças entre sexos fatores biológicos (crescimento individual) e socioambientais (hábitos de vidas e educação familiar). Os resultados do estudo de Bardid et al. (2017) mostraram que a superioridade dos meninos nas habilidades de controle de objetos e das meninas nas habilidades de locomoção; segundo eles, as diferenças podem ser atribuídas mais a fatores ambientais, tais como a maneira como os professores interagem com os meninos, dando mais feedback para eles do que para as meninas e, assim, provocando diferenças no desempenho e na aprendizagem; segundo esses autores, as diferenças entre sexos podem estar ligadas a papéis de gênero que tendem a influenciar o comprometimento de meninos em mais atividades relacionadas ao controle de objetos, como jogos com bola, e as meninas às atividades com habilidades de locomoção, como a dança, por exemplo. Tais preferências nas atividades influenciadas pelo contexto podem permitir que as crianças, dependendo do seu sexo, desenvolvam certas habilidades mais facilmente. Zask et al. (2012) também apontam a influência do ambiente na aquisição das habilidades motoras e nas diferenças entre os sexos, permitindo uma maior oportunidade dos meninos se tornarem mais qualificados em esportes coletivos do que as meninas (Sousa et al. 2016) ressaltaram que, mesmo os meninos apresentando melhores desempenhos nas habilidades de locomoção e controle de objetos após a intervenção, foram encontradas melhorias significativas nessas habilidades em ambos os sexos, sugerindo a importância de um ambiente propício para o envolvimento de forma semelhante para meninos e meninas. Já Silva et al. (2019) acreditaram que as meninas, por gastarem menos tempo em atividade física, seriam mais sensíveis às intervenções; porém, essa hipótese não foi confirmada em seu estudo. Em suma, oportunidades de prática e contextos incentivadores, juntos, parecem potencializar a proficiência em HMG, a competência motora.
Estudos que apontaram desempenho superior das meninas
Em seu estudo, Barnett et al. (2015) observaram uma melhora significativa das meninas nas HMG de controle de objetos após serem submetidas a um programa de intervenção, enquanto os meninos não apresentaram mudanças. De acordo com os resultados do estudo de Sheehan e Katz (2013) não houve efeito de interação estatisticamente significativo para sexo entre a pré e pós-intervenção; porém, as meninas apresentaram estabilidade postural significativamente melhor que os meninos após a intervenção. No estudo de Božanić, Delaš Kalinski e Žuvela (2011) os resultados também mostraram uma superioridade em favor das meninas, dessa vez em equilíbrio e velocidade de corrida. No estudo de Bellows, Davies, Anderson e Kennedy (2013), as meninas foram melhores do que os meninos nas HMG de controle de objetos. Em Coppens et al. (2021), as meninas tiveram uma pontuação mais baixa no início do estudo. No entanto, a melhora após a intervenção, não houve diferença entre meninos e meninas.
Os tipos de intervenção e as diferenças entre sexos
Os tipos de intervenções foram analisados para entender se as intervenções diferiam entre os estudos que apresentaram diferenças entre os sexos e aqueles que não apresentaram tal diferença. Como resultado observou-se uma variação semelhante entre esses grupos (Tabela 3). Dos estudos que apontaram diferenças entre os sexos, 33,3% tiveram as HMG como intervenção, 16,66% ginástica, videogames ativos e atividades lúdicas; 8,3% aulas de Educação Física escolar, tênis de mesa e atividades esportivas. Já nos estudos cujos resultados não apresentaram diferenças entre os sexos, 47,36% utilizaram HMG, 10,5% ginástica e treinamento integrado; 5,26% de aulas de Educação Física escolar, jogos ativos e TNI. Este resultado está alinhado com a afirmação feita em uma revisão integrativa, de que as habilidades motoras podem ser treinadas por diferentes métodos de intervenção (Van Hooren & De Ste Croix, 2020). Isso significa que independente do método utilizado, as intervenções físico-motoras têm potencial para melhorar as HMG dos indivíduos expostos a esses programas de atividades.
Sheehan e Katz (2013) apontaram como uma das razões para que, em seus resultados, as meninas tenham apresentado desempenho superior no equilíbrio o fato de os sistemas envolvidos no equilíbrio, como o neurológico, visual, vestibular e proprioceptivo, amadurecerem mais cedo nas crianças do sexo feminino do que nas crianças do sexo masculino. Ao contrário de Sheehan e Katz (2013) que sugeriram essa justificativa biológica para seus achados, Božanić et al. (2011) argumentaram a favor de fatores contextuais. Em seu estudo o teste usado para avaliar o equilíbrio (apoio unipodal na trave) requer demandas muito semelhantes a um jogo tradicional praticado pelas meninas da região, pular corda (Božanić et al., 2011). Assim, tanto fatores biológicos (maturação) como fatores contextuais (exposição a brincadeiras e jogos distintos para cada sexo), foram apontados como explicação para os resultados das diferenças no desempenho em HMG entre os sexos.
Estudos que não encontraram diferenças entre os sexos
A maioria dos estudos analisados (n= 19; 61,3%), não apontaram diferenças significativas entre os sexos após a intervenção e todos eles foram classificados com alta ou média qualidade (42,1% de estudos de alta qualidade e 57,9% de estudos de média qualidade), o que proporciona dados mais confiáveis e precisos.
Entre as justificativas para a ausência de diferenças entre sexos, a mais plausível parece ser a de Leis et al. (2020), que argumentaram que não há diferenças no desempenho cinético das habilidades motoras entre as crianças. Também, Liu et al. (2022), argumentaram que o desenvolvimento e aprendizagem da habilidade sob investigação (saltar) em pré-escolares não estava associado ao sexo. Portanto, não parece haver fatores biológicos atuantes em meninos e meninas pré-escolares que pudessem justificar diferenças no desempenho em suas HMG.
Pontos fortes do presente estudo e limitações
A busca sistemática e a análise crítica dos estudos que avaliaram as diferenças no desempenho em HMG entre os sexos, somado ao exame da qualidade desses artigos, torna este um estudo robusto. Esta revisão permite uma perspectiva atualizada sobre a temática da diferença entre sexos relativos à competência motora em HMG, e o conjunto de dados revisados, além de gerar conhecimento, também, originou uma base de dados para futuros estudos. Uma limitação do estudo está na ausência de uma meta-análise para confirmar as evidências dos resultados desta revisão; outrossim, deve-se apontar que o presente estudo somente ocupou-se em observar os desfechos relativos às HMG, embora o fenômeno da competência motora também inclua habilidades motoras finas (Sigmundsson et al., 2016).
CONCLUSÕES
A partir da análise dos artigos incluídos nesta revisão, pode-se afirmar que as intervenções físico-motoras organizadas e sistemáticas melhoram as HMG de meninos e meninas. E, que este resultado tende a ser semelhante entre os sexos, mesmo quando são usados os mais variados conteúdos de intervenção. Outrossim, pode-se concluir que o ambiente tem um papel muito relevante para evitar as diferenças na competência motora em HMG de escolares: oportunidades de prática e contextos incentivadores, juntos, parecem potencializar o desempenho das HMG para ambos os sexos.
Secundariamente, com os dados desta revisão pode-se concluir que aquelas intervenções com o conteúdo explícito de HMG tendem a provocar efeitos positivos na competência motora; os videogames ativos, embora pareçam ser promissores, precisam ser mais estudados para que se possa ter uma conclusão sobre sua evidência de impacto nas HMG; a intervenção com TNI precisa ser mais estudada para conhecer seu real impacto sobre a competência motora de crianças pré-escolares.