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Motricidade

versão impressa ISSN 1646-107Xversão On-line ISSN 2182-2972

Motri. vol.20 no.1 Ribeira de Pena mar. 2024  Epub 18-Out-2024

https://doi.org/10.6063/motricidade.33995 

Artigo Original

Dignidade em fim de vida: perspetiva do estudante de enfermagem

Dignity at the end of life: the nursing student's perspective

Carlos Almeida1  * 
http://orcid.org/0000-0002-4497-4267

João Francisco de Castro1 
http://orcid.org/0000-0003-4090-9246

Vitor Manuel Costa Pereira Rodrigues1  2 
http://orcid.org/0000-0002-2795-685X

1Universidade de Trás-Os-Montes e Alto Douro – Vila Real, Portugal.

2Centro de Investigação em Desporto, Saúde e Desenvolvimento Humano, CIDESD – Vila Real, Portugal.


RESUMO

Segundo dados estatísticos oficiais cada vez mais se morre mais de doenças crónicas e oncológicas arrastando os últimos tempos de vida para as instituições de saúde. Neste sentido, a discussão sobre a defesa da dignidade do doente em fim de vida tem sido feita, muitas vezes, lado a lado com a discussão da eutanásia. Realizámos um estudo exploratório de natureza qualitativa, com o objetivo de identificar as situações que, na opinião dos estudantes de enfermagem, podem levar à perda da dignidade do doente terminal, e as razões que o podem levar a pedir eutanásia. A amostra foi composta por 55 estudantes do curso de licenciatura em enfermagem e a colheita de dados foi realizada a partir de um questionário constituído maioritariamente por questões abertas. Os dados foram tratados a partir da análise de conteúdo seguindo os procedimentos descritos por Bardin (2016). Os principais resultados indicam que as situações que podem levar o doente a sentir a perda da dignidade são a perda da autonomia, abandono, sofrimento, falta de respeito, pena e a perda do eu. Os motivos para evocar a eutanásia são o sofrimento, perda da autonomia, perda da esperança, ser um peso para a família e a perda de sentido.

PALAVRAS-CHAVE: dignidade; eutanásia; doente terminal; estudantes de enfermagem

ABSTRACT

According to official statistics, more and more people are dying from chronic and oncological diseases, dragging the last days of life into health institutions. In this sense, the discussion about the defence of the dignity of the patient at the end of life has often gone hand in hand with the discussion of euthanasia. We carried out an exploratory study of a qualitative nature, with the aim of identifying the situations that, in the opinion of nursing students, can lead to the loss of dignity of the terminally ill patient and the reasons that can lead them to request euthanasia. The sample consisted of 55 undergraduate nursing students, and the data was collected using a questionnaire consisting mainly of open questions. The data was processed using content analysis following the procedures described by Bardin (2016). The main results indicate that the situations that can lead patients to feel a loss of dignity are loss of autonomy, abandonment, suffering, lack of respect, pity and loss of self. The reasons for evoking euthanasia are suffering, loss of autonomy, loss of hope, being a burden on the family and loss of meaning.

KEYWORDS: respect; eutanhasia; terminally ill; students nursing

INTRODUÇÃO

De acordo com as estatísticas oficiais, em Portugal morre-se cada vez mais como resultado de doenças crónicas e doenças oncológicas (dados INE). Este facto provoca que em grande parte destes casos a morte ocorra no hospital ou, pelo menos, com acompanhamento das unidades de saúde. A evolução tecnológica e científica verificada nas últimas décadas deu-nos a ilusão do controlo absoluto sobre a doença e, efetivamente, vive-se mais e morre-se cada vez mais tarde, contudo a morte continua a ser algo que não controlamos (Arantes, 2019). Neste sentido, a maioria dos enfermeiros terá inevitavelmente de lidar com a morte nos seus locais de trabalho, mas nem sempre se sente preparado para isso. Durante muito tempo os profissionais da área da saúde foram, apenas, ensinados a cuidar da vida, esquecendo, por vezes, a importância de cuidar na morte. São vários os autores que apontam que ainda se observa que a finitude da vida é encarada como sinónimo de falha ou fracasso dos profissionais da saúde, sentimento que provém de um processo formativo de valorização dos fundamentos técnicos, em detrimento da conceção holística do ser humano e centrado, quase que exclusivamente, na luta contra a doença, enquanto existem censuras para falar sobre morte (Brito, Sobreiro, Atzingen, Silva, & Mendonça, 2020; Delgado, Castro, Rodrigues & Almeida, 2023; Orth et al., 2019) e, nesse sentido, não admira que os próprios profissionais sintam uma impreparação para lidar com os doentes em fim de vida (Dominguez, Freire, Lima, & Campos, 2021). Assim a insistência na necessidade de promover cuidados que respeitem a dignidade em fim de vida continua, hoje, a ser uma prioridade pois como refere a sociedade Espanhola de tratamento da dor, supõe-se que o Ser humano deve viver com dignidade até o último momento, o que requer a consideração dos doentes como ser humano até o momento da morte, o respeito às suas crenças e aos seus valores, assim como a sua participação na tomada de decisões mediante uma relação próxima e sincera com a equipe assistencial (Gómez Sancho et al., 2010). A mesma associação, refere, ainda, que a promoção da dignidade se associa, também, à ausência de sofrimento e a outros fatores humanos, como a presença dos entes queridos e a criação de um ambiente amável (Gómez Sancho et al., 2010).

Recentemente, em Portugal, à discussão sobre o respeito da dignidade em fim de vida juntou-se a discussão sobre uma nova lei de eutanásia definida como "morte assistida" (Portugal, 2023), admitindo que em certos casos, em que a situação do doente seja incompatível com a sua noção de dignidade, este poderá solicitar que lhe proporcionem o fim da sua vida. Não sendo uma lei consensual, merecendo inclusive a oposição das várias ordens de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros) e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, há, no entanto, um aspeto que queremos realçar que é que com ou sem esta lei a necessidade de melhorar a qualidade dos cuidados aos doentes em fim de vida deve ser uma prioridade. Nesse sentido, perceber que situações podem levar a que um doente sinta desrespeitada a sua dignidade e que motivos o podem levar a recorrer à morte medicamente assistida são aspetos fundamentais pois, compreender a importância da dignidade nos cuidados em fim de vida e os métodos e impactos específicos de cada intervenção em saúde, pode melhorar significativamente a qualidade dos cuidados prestados aos doentes terminais (Yoojin Lim, 2023), da mesma forma que podem ajudar a melhorar a formação dos profissionais de saúde a lidar com o fim de vida.

Como já apontado a falta de preparação para cuidar da pessoa em fim de vida é sentido pelos enfermeiros e pode favorecer a fuga de uma situação de confronto com os seus próprios medos e angústias, levando-os a limitarem-se, na maioria das vezes, a cuidar do corpo que está morrendo, e não do ser humano que morre (Carneiro & Andrade, 2019; Moura, Passos, Santos, Rosa, & Nascimento Sobrinho, 2018; Prado, Leite, Castro, Silva, & Silva, 2017; Reis et al., 2021) sendo justamente, por isso, que as temáticas da morte, dos cuidados em fim de vida e da dignidade do doente devem ser privilegiadas na formação desses profissionais, levando a que os estudantes tenham momentos concretos de reflexão e aprendizagem sobre estes temas. É certo que preparar os profissionais para lidar com a morte e os cuidados em fim de vida, durante os 4 anos do curso não é, por si só, uma tarefa fácil, mas tendo em conta que os estudantes ao longo do curso se podem vir a deparar com esta situação torna-se premente que esses momentos sejam aproveitados de forma pedagógica. Quando o primeiro contacto do estudante de enfermagem com a morte e os cuidados em fim de vida ocorre em ensino clínico (EC) este pode ser um momento particularmente stressante capaz de expor as suas fragilidades e vulnerabilidades pela sua dificuldade na gestão de sentimentos e emoções (Edo-Gual, Tomás-Sábado, Gómez-Benito, Monforte-Royo, & Aradilla-Herrero, 2017), no entanto, esse pode ser também um momento de aprendizagem sobre a importância dos cuidados que prestou e de como esses cuidados podem ter sido um garante do respeito pela dignidade do doente auxiliando ao o desenvolvimento das competências profissionais necessárias.

É, então, importante que se analisem as dificuldades, atitudes e sentimentos dos estudantes face à morte e cuidados em fim de vida, as suas perceções sobre o sentir dos doentes e sobre as suas noções de dignidade, de modo a se poder adaptar os planos curriculares e as estratégias pedagógicas a esta realidade. Foi neste sentido que realizámos este estudo e para o qual definimos os seguintes objetivos:

  • Saber se os estudantes já possuem experiência de lidar com a morte ou cuidados em fim de vida.

  • Identificar quais as situações que, na perspetiva dos estudantes, podem criar no doente em fim de vida a sensação de perda de dignidade.

  • Identificar quais os principais motivos que, na perspetiva do estudante de enfermagem, podem levar o doente a pedir eutanásia.

MÉTODO

Foi realizado um estudo exploratório de natureza qualitativa, realizado a partir de entrevistas semiestruturadas que, através da análise de conteúdo, permita interpretar as perspetivas dos estudantes sobre a temática do fim da vida.

Amostra

O estudo foi realizado a partir de uma amostragem composta por 55 estudantes do curso de licenciatura em enfermagem de uma Escola da Região Norte de Portugal. Usámos uma amostragem não probabilística de conveniência. Definimos como critério de inclusão, os estudantes encontrarem-se a frequentar o do curso de Licenciatura em Enfermagem e terem já passado pela experiência de ensino EC Tendo em conta que os conteúdos sobre cuidados em fim de vida são abordados a partir do 2º semestre do 2º ano, optámos por fazer a colheita de dados antes dessa data de modo a podermos usar a perceção dos estudantes como ponto de partida para a abordagem pedagógica dos conteúdos. Assim todos os participantes no estudo frequentavam o segundo ano do curso de licenciatura em enfermagem.

Instrumentos

A colheita de dados foi realizada a partir de um questionário constituído maioritariamente por questões abertas e organizado em duas partes: numa primeira questionamos sobre a experiência de lidar com a morte em ensino EC na segunda procuramos saber quais as situações que na sua opinião podem levar à perda da dignidade do doente terminal, e quais as razões que podem motivar o pedido de eutanásia.

Procedimentos

O instrumento foi distribuído aos estudantes que preencheram de forma voluntária e anónima, durante o mês de outubro. No procedimento de recolha, de tratamento e de análise de dados tivemos em conta as considerações éticas, garantindo o consentimento informado dos participantes, o seu anonimato e a confidencialidade dos dados obtidos.

Análise estatística

Para a análise de conteúdo procuramos respeitar criteriosamente os procedimentos descritos por Bardin (2016); Delgado et al. (2023); Reis et al. (2021) que se organizam em três fases: i) pré-análise (leitura flutuante das respostas e redefinição dos objetivos) ii) exploração do material (criação das categorias) e iii) tratamentos dos resultados, das inferências e da interpretação. De forma a manter o anonimato dos discursos, estes surgem codificados com #1,#2, #3 sucessivamente.

RESULTADOS

Concluído o processo de recolha de dados, passamos à descrição e interpretação da informação recolhida, procurando, mais à frente no capítulo da discussão, fundamentá-la e relacioná-la com outros estudos existentes. Um primeiro dado importante seria saber se os estudantes durante as suas experiências em ensino EC lidaram de perto com a morte ou com doentes em fim de vida. Verificámos que 72.7%(40) respondeu afirmativamente e apenas 27.3%(15) não tiveram essa experiência. Passamos então para a questão sobre quais as situações que, na sua opinião, podiam levar os doentes a sentir que estavam a perder a dignidade. Das respostas a esta questão obtivemos 6 categorias (Tabela 1): perda da autonomia, abandono, sofrimento, falta de respeito, pena e a perda do eu.

Tabela 1 Situações que na perspetiva do estudante podem "reduzir" a Dignidade do doente em fim de vida. 

Categorias Unidades de Registo Exemplo de Unidades de significação
Autonomia 15 "o facto de me estar a aperceber que já não era capaz de fazer atividades que hoje em dia tomo como garantidas. Comer, tomar banho, pentear-me…são atividades que faço sem pensar muito" #1
Abandono 8 "Como estou em fim de vida ninguém se importar mais comigo" #5
Sofrimento 4 "o prolongamento do meu sofrimento, prolongando a vida apenas, sem a preocupação se a minha qualidade de vida fosse adequada, sem a preocupação do sofrimento constantemente presente"#36
Falta de respeito 3 "Não receber tratamento adequado, na medida em que não me tratariam com o devido respeito, delimitando a minha condição de "pessoa humana" #14
Pena 1 "Sentirem pena de mim" #7
Perda do eu 1 "Deixar de poder ser eu própria" #2

A categoria mais referida foi a perda de autonomia e aqui é possível verificar que ela é apontada em duas dimensões ligeiramente distintas. A mais apontada refere-se à perda gradual da capacidade do doente em realizar as suas atividades de vida diária até chegar à dependência total. Em discursos como "…me estar a aperceber que já não era capaz de fazer atividades que hoje em dia tomo como garantidas. Comer, tomar banho, pentear-me…são atividades que faço sem pensar muito. Se já não conseguisse fazer essas coisas e fosse completamente dependente de alguém ia sentir-me muito mal e frustrada por não conseguir fazer essas coisas pequenas, mas tão importantes" #15, ou "não ser capaz de fazer as coisas que estou habituado a fazer normalmente e depender totalmente de outros" #18, fica bem claro a associação da perda de dignidade à incapacidade de poder fazer as suas atividades, o seu autocuidado, desenvolver a sua vida normal e ver-se dependente de outros. A outra dimensão, embora menos apontada tem a ver com a perda de capacidade de tomar as decisões e a possibilidade de ver as opções sobre a sua vida a ser tomadas por outros, como se pode ler no discurso que valoriza "o poder de escolha acerca da minha vida"#19.

A segunda categoria mais referida relaciona-se com o medo de ser abandonado e desvalorizado e fica bem patente na frase que aponta ao medo de "Morrer num hospital, sozinho"#32 ou de "não receber a devida atenção"#10. De seguida surge a referência ao sofrimento como capaz de levar o doente a pensar que está a perder a sua dignidade, sendo que na maioria das referências dos estudantes o sofrimento está muito associado ao prolongamento exagerado da vida, como se comprova no discurso "Estar em uma situação terminal onde já não tinha nenhuma esperança de sobreviver e mesmo assim estar a ser prolongado a vida só para sofrer mais" #26. Há ainda a referência à falta de respeito que pode ser manifestada na não prestação de cuidados adequados, e por fim ainda surge a ideia da perda do eu ou da identidade e da manifestação de sentimentos de pena.

Passando para os motivos que, na opinião dos estudantes, podem levar os doentes a pedir eutanásia, extraímos 5 categorias (Tabela 2): o sofrimento, perda da autonomia, perda da esperança, ser um peso para a família e a perda de sentido.

Tabela 2 Situações que na perspetiva do estudante podem levar ao pedido de eutanásia. 

Categorias Unidades de Registo Exemplo de Unidades de significação
Dor e sofrimento 30 "Ninguém merece uma vida em constante sofrimento e acredito que eles só querem parar de sofrer, parar de sentir…." #1
Perda da autonomia 6 "Incapacidade de realização das necessidades básicas (comer, dormir, falar) e das atividades de vida diária" #30
Perda da esperança 6 "Estado terminal/paliativo em que não há esperança de melhorar"#37
Sensação de peso para a família 4 "Sentirem-se um estorvo para as pessoas " #9
Falta de sentido 1 "Quando já não faz sentido para ele viver " #21

A categoria mais referida apresenta o sofrimento e a dor como a principal causa para a possibilidade de pedir a eutanásia. Esta ideia pode encontrar-se em discursos como "dor, sofrimento, ausência de qualidade de vida…"#40 ou "o sofrimento físico e psicológico que daí pode provir" #26. Na verdade mais de 50% dos participantes apresentam a dor e o sofrimento como a principal justificação para os pedidos de eutanásia. Em segundo lugar surgem duas categorias: A perda de autonomia, num sentido muito semelhante ao já descrito na pergunta anterior e a perda da esperança. Esta última está muito ligada á consciência do doente da ausência de cura para o seu problema e está expressa em frases como "Ter consciência de uma evolução desfavorável do estado de saúde" #28 ou na ideia de um certo desistir devida à "falta de esperança e cansaço" #48. Por fim, surge ainda a ideia do incómodo provocado por o doente se sentir um peso para a família muito associada à ideia de que os está a fazer sofrer como visível no discurso "o sofrimento que uma doença causa a ele mesmo e à sua família" #17, e também a ideia da perda de sentido.

DISCUSSÃO

De uma primeira análise dos resultados verificamos que a maioria dos estudantes já tinha a experiência de lidar com a morte ou com cuidados em fim de vida o que vem de encontro ao expresso por Novais, Aguiar, Sousa, Almeida e Raposo (2021) quando aponta que em consequência do aumento da esperança média de vida e da melhoria dos cuidados de saúde, muitas vezes, o primeiro contacto do estudante de enfermagem (EE) com a morte e os cuidados em fim de vida ocorre em ensino clínico. Este facto aponta para a necessidade estas temáticas serem inseridas nos conteúdos programáticos logo nos primeiros anos do curso de enfermagem de modo a preparar os estudantes para o impacto dessa realidade. Na verdade, os estudantes podem não se sentir preparados para cuidarem de pessoas em fim de vida e para o confronto com a morte, o que pode gerar ansiedade ou medo. Assim, prepará-los, desde cedo, para esta situação pode ajudá-los a proporcionar melhores cuidados às pessoas em fim de vida e a atribuir desde logo maior importância a estes cuidados, ou mesmo, estar mais atentos para a valorização dos sentimentos dos doentes e da sua dignidade. É certo que a dignidade tem significado em todas as fases da vida, uma vez que é um direito e valor inerentes a cada ser humano. No entanto, a sua importância torna-se particularmente acentuada quando se trata de doentes que se aproximam do fim da vida, devido à sua maior vulnerabilidade a condições que a podem comprometer (Yoojin Lim, 2023).

Em relação às situações que podem levar o doente a sentir que está a perder a dignidade e os motivos que podem levar o doente a pedir eutanásia, tendo em conta a relação evidente entre os dois temas entendemos fazer a discussão em conjunto. Um dos primeiros temas realçado por este estudo é a valorização da autonomia e o problema da sua perda progressiva sendo, por isso, importante gerir esse aspeto ao longo do desenvolvimento do processo patológico. Esta preocupação está, por exemplo, muito presente nos vários estudos elaborados no desenvolvimento da terapia da dignidade (Chochinov et al., 2002; Julião, Barbosa, Oliveira, Nunes, & Carneiro, 2013; Yoojin Lim, 2023) que apontam para a importância de acompanhar o nível de independência do doente em fim de vida quer na dimensão da autonomia funcional como cognitiva. Na realidade, o ser humano atual, em funcionamento normal raramente depende de terceiros, raramente passa pela relação de dependência com o outro, orgulhando-se da sua independência funcional. Por outro lado, o progressivo desenvolvimento de uma ética baseada nos valores da autonomia e liberdade promove a valorização da pro-atividade e da tomada de decisão pessoal ao longo da vida. Estes dois aspetos podem ser muito afetados perante a doença que, de forma mais ou menos abrupta, o limita e pode ir privando da sua independência e que sem dúvida poderá impactar na sua noção de dignidade (Julião et al., 2013). Neste sentido, quando os estudantes apontam a perda da autonomia como um dos principais motivos para o pedido de eutanásia vão de encontro ao estudo desenvolvido por Wiebe, Shaw, Green, Trouton e Kelly (2018), com doentes que requereram a morte assistida e que foi aceite pelos médicos em British Columbia durante o ano de 2016, onde 52,7% dos indivíduos apresentaram a perda de autonomia como justificação (Wiebe et al., 2018). Também no estudo de Leboul et al. (2022), a autonomia surge como motivo para a possibilidade de pedir eutanásia sendo referida pelos participantes como uma espécie de exigência de liberdade para pensar e tomar decisões por si próprios, e que as suas decisões fossem respeitadas.

Um segundo aspeto muito valorizado nas respostas dos estudantes é a dor e o sofrimento. A presença ou o medo da dor e do sofrimento pode levar a sentimentos de perda da dignidade e ao pedido de eutanásia. Numa época em que se privilegia o bem-estar e a felicidade pessoal, ter de encarar a dor e o sofrimento não é questão fácil. Por outro lado, são várias as descrições de que, por vezes, o fim de vida é marcado por estes aspetos. O sofrimento físico originado tanto por episódios agudos de exacerbação de sintomas e de desconforto mais crónico, como dispneia, fadiga, diminuição da mobilidade em declínio e incontinência, são apontados pelos doentes terminais em vários estudos, como aspetos difíceis de entender e aceitar (Leboul et al., 2022). Talvez, por isso, no estudo de Wieb, E. et all a dor e os sintomas relacionados com a doença foram apontados como a primeira ou segunda razão mais importante para solicitar a morte assistida por 59,8% dos envolvidos. Este dado reforça a importância que os cuidados paliativos têm dedicado ao melhoramento do tratamento da dor e do sofrimento nos doentes em fim de vida e da necessidade de elaboração precoce de planos individualizados de cuidados que atendam ao sofrimento que pode ser físico, psicológico, social ou espiritual, pelo que as intervenções a planear deverão ter como preocupação não só os sintomas mal controlados como também outros aspetos como as alterações da imagem corporal, do estatuto familiar e social, ou mesmo de outros fatores encontrados neste estudo como a perda da identidade(perda do eu) ou a perda de esperança num futuro que não deixam de, por si, provocar sofrimento (Julião et al., 2013; Chochinov et al., 2002).

Outro aspeto salientado por este estudo é a sensação de abandono do doente terminal que também pode ser interpretado como solidão. Vários estudos internacionais relatam a presença de fortes sentimentos de solidão e abandono em doentes terminais (Çıracı, Nural, & Saltürk, 2016; Hanna et al., 2022; Sand & Strang, 2006) e é frequentemente identificada pelos profissionais de saúde como altamente prevalente nas pessoas com uma doença terminal (Hanna et al., 2022). Assim, o facto dos estudantes identificarem este fator já é por si um fator positivo, no entanto aponta, também, para a necessidade de compreender melhor as causas deste fenómeno e como se pode combater. É necessário compreender como as experiências de solidão podem ser atenuadas para esta população vulnerável de modo a promover melhores experiências de fim de vida.

O doente em fim de vida, mantém a mesma necessidade de estar "conectado" com os outros, com a família, amigos, com a sociedade e esta possibilidade é fundamental para evitar sentimentos de solidão existencial (Smith, 2017).

Por fim, é importante ainda salientar que desenvolver estas temáticas no âmbito da formação de futuros enfermeiros é um grande desafio, mas que tem de ser enfrentado. A formação destes profissionais tem de acompanhar os desenvolvimentos da realidade e o envelhecimento populacional, o aumento da prevalência das doenças crónicas e oncológicas transforma os cuidados ao doente em fim de vida numa presença constante. Assim, nos planos pedagógicos é importante estabelecer estratégias para ajudar a preparar para lidar com a morte e o morrer, o sofrimento humano, a limitação terapêutica e os conflitos morais decorrentes de crenças religiosas (Dominguez et al., 2021).

CONCLUSÕES

A perspetiva dos cuidados de saúde aos cidadãos não pode estar apenas centrada na vertente curativa. Hoje, tem de se ter presente que quando o curar termina é preciso não esquecer que tem de se continuar a cuidar, e a fazê-lo de forma Humana. Assim, o cuidar humanizado dos doentes em fim de vida tem de ser uma prioridade e preparar os futuros enfermeiros para essa realidade é fundamental. Neste sentido, é importante promover a reflexão sobre a dignidade do doente em fim de vida, de modo a estabelecer estratégias pedagógicas que ajude à sua formação.

Os estudantes são capazes de identificar as principais situações que podem levar o doente a sentir que está a perder a sua dignidade e, nesse sentido apontaram a perda da autonomia, abandono, sofrimento, falta de respeito, pena e a perda do eu.

Quando confrontados com quais os motivos que podem levar os doentes a pedir eutanásia apontaram o sofrimento, perda da autonomia, perda da esperança, ser um peso para a família e a perda de sentido, indo de encontro à maioria dos estudos sobre este tema.

Fica, por isso, claro que os estudantes conseguem identificar as principais situações, mas isso não é indicativo para que se sintam preparados ou com formação suficiente para lidar com elas. Esse será o desafio para estudos futuros.

Financiamento:nada a declarar.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 16 de Dezembro de 2023; Aceito: 13 de Janeiro de 2024

*Autor correspondente: Carlos Almeida – Quinta de Prados – CEP: 5000-801 – Vila Real, Portugal. E-mail: calmeida@utad.pt

Conflito de interesses:

nada a declarar.

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