INTRODUÇÃO
Os cuidados paliativos são cuidados que melhoram a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias, abordando os problemas associados às doenças que ameaçam a vida, prevenindo e aliviando o sofrimento, através da identificação precoce e avaliação minuciosa da dor e outros problemas físicos, psicológicos, sociais e espirituais (Sepúlveda, Marlin, Yoshida, & Ullrich, 2002).
Por sua vez, a demência, por definição, trata-se de uma condição neurodegenerativa incurável, caracterizada por declínio progressivo da cognição e estado funcional. Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais, o diagnóstico obriga ao cumprimento dos seguintes critérios: Comprometimento cognitivo significativo em um ou mais domínios cognitivos; Défice adquirido que represente declínio significativo relativamente ao nível anterior de funcionamento; Interferência com a independência nas atividades do dia-a-dia; Alterações que não ocorrem exclusivamente em contexto de delirium e não são explicados por outro distúrbio mental (American Psychiatric Association, 2013).
Atualmente, mais de 55 milhões de pessoas vivem com demência e estima-se que o número aumente até 152 milhões até 2050. Todos os anos, há quase 10 milhões de novos casos a nível mundial. Assim, a demência é considerada uma prioridade de saúde pública, sendo uma das principais causas de incapacidade e dependência nos idosos. No entanto, o impacto da demência para a mortalidade global é difícil de avaliar, dado que a população idosa tem frequentemente comorbilidades que podem ou não estar relacionadas com a demência. Apesar da demência ser uma condição neurodegenerativa progressiva, pode não ser considerada ameaçadora de vida, o que resulta numa falta de cuidados especializados no doente com demência em fim de vida e num número reduzido de mortes atribuídas à demência (World Health Organization, 2021).
No decorrer da doença, as pessoas com demência estão em risco acrescido de desenvolver complicações médicas, entre as quais disfagia, pneumonia de aspiração, infeções e desidratação (Brunnström & Englund, 2009). De facto, nos estadios avançados da demência, assim como no fim de vida, é muitas vezes necessário tomar decisões importantes relativas ao tratamento médico, no que diz respeito a introdução de sonda nasogástrica, admissões hospitalares, cuidados intensivos, antibioterapia endovenosa, ressuscitação cardiopulmonar, entre outros. Quando, em fases avançadas de demência, o doente perde a capacidade de tomar estas decisões, o cuidador passa a ter um papel na decisão sobre intervenções terapêuticas ou diagnósticas, que podem ser difíceis (Riedl et al., 2020).
O papel do cuidador torna-se cada vez mais importante com o avançar da doença. No entanto, com o acréscimo de responsabilidades e com o aumento da dificuldade das tarefas necessárias para o cuidado e do tempo do dia na função de cuidador, os familiares dos doentes com demência sofrem frequentemente de depressão, isolamento e desgaste do cuidador. É importante que o médico de família esteja ciente destas comorbilidades, tentando minimizar este problema. O trabalho em conjunto com equipas de cuidados paliativos parece ter benefícios, não só na melhoria de sintomas físicos e do conforto do doente com demência, mas também na prevenção e melhoria da exaustão do cuidador. Alguns estudos analisaram o papel de várias intervenções no cuidador do doente com demência e avaliaram os resultados na sua qualidade de vida. No entanto, seria importante sistematizar quais destas intervenções aplicadas por equipas de cuidados paliativos têm evidência científica mais robustas. Assim, para colmatar essa lacuna na investigação, este trabalho teve como objetivo avaliar o papel dos cuidados paliativos no cuidador do doente com demência.
MÉTODO
Realizou-se, em setembro de 2023, uma revisão bibliográfica com base numa pesquisa de meta-análises, revisões sistemáticas, revisões bibliográficas, ensaios clínicos, normas de orientação clínica, e guidelines. Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: artigos publicados nos últimos 10 anos, nas línguas portuguesa e inglesa. Foram excluídos os estudos que não incluíssem os cuidadores. A pesquisa foi realizada na Pubmed utilizando os termos MeSH: ‘caregiver’, ‘palliative care’ e ‘dementia’. Inicialmente foram encontrados 633 artigos. Posteriormente, após a leitura do resumo e aplicando os critérios de inclusão e exclusão, foram considerados 528 artigos. Estes foram lidos integralmente, excluindo os artigos repetidos ou que não incluam os cuidadores. A pesquisa em artigos encontrados nas referências dos artigos originalmente selecionados, também foi realizada, permitindo enquadrar publicações relevantes que pudessem ter escapado à pesquisa inicial. No final, foram incluídos um total de 12 artigos, que se enquadravam nos critérios anteriores e tinham relevância clínica para o tema.
RESULTADOS
Esta Revisão Bibliográfica incluiu diferentes tipos de artigos, permitindo perceber qual a evidência atual e prévia em relação ao tema. Assim, incluem-se 5 revisões sistemáticas, 3 revisões bibliográficas, 2 estudos descritivos qualitativos, 1 estudo de coorte, 1 estudo observacional transversal. Os estudos descritos na Tabela 1 abordam diferentes aspetos relacionados com os cuidados paliativos e os cuidadores dos doentes com demência. O próprio tema desta revisão implica uma multiplicidade de abordagens, o que justifica as diferentes linhas de investigação dos estudos encontrados na literatura.
Autor | Ano | Tipo de estudo | População | Objetivos | Conclusão |
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Browne et al. | 2021 | Revisão Sistemática | NA | Identificar como é medido e conceptualizado o fim de vida nas pessoas com demência | Definir fim de vida utilizando apenas os fatores cognitivos ou funcionais falha em reconhecer as complexidades e necessidades dos doentes com demência em fim de vida e seus respetivos cuidadores. |
Andrews et al. | 2017 | Descritivo qualitativo | 10 familiares de doentes com demência | Perceber a perceção dos familiares em relação à demência | A maioria dos familiares não reconhece a demência como uma condição terminal. |
Poole et al. | 2018 | Descritivo qualitativo | 11 doentes com demência inicial e 25 cuidadores | Perceber a opinião dos doentes e cuidadores sobre as opções ótimas para o fim de vida | Os profissionais de saúde devem explorar as perspetivas individuais dos doentes com demência e respetivos cuidadores. A maioria dos doentes referiu como cuidados ideais não ter dor, estar na sua própria casa e ter o apoio de uma equipa especializada em cuidados paliativos. |
Weisbrod et al. | 2022 | Revisão Bibliográfica | NA | Perceber o papel dos cuidados paliativos integrados nos cuidados de saúde primários no doente com demência | Os cuidados paliativos são essenciais no doente com demência e no seu cuidador. A maioria dos cuidados pode ser realizada pelo médico assistente. É importante perceber a capacidade do doente tomar decisões e o papel do cuidador neste processo. |
Nehen e Hermann | 2015 | Revisão Bibliográfica | NA | Entender a eficácia de diferentes intervenções no tratamento da demência. Entender como o suporte dos cuidadores pode contribuir para o bem-estar do doente com demência | Para além das estratégias terapêuticas já conhecidas na demência é também fundamental perceber as necessidades psicossociais dos cuidadores e adaptar as intervenções terapêuticas. |
Chiao et al. | 2015 | Revisão sistemática | NA | Identificar os fatores que contribuem para a sobrecarga do cuidador do doente com demência | Os fatores identificados incluem: a gravidade da demência, a presença de demência frontotemporal, os transtornos comportamentais e sintomas neuropsiquiátricos. Os profissionais de saúde devem estar atentos a estes fatores no doente com demência para permitir aplicar os cuidados necessários também ao cuidador. |
Adelman et al. | 2014 | Revisão Sistemática | NA | Perceber a epidemiologia dos cuidadores dos doentes com demência | Os fatores que se associam a maior sobrecarga do cuidador incluem: sexo feminino, baixo grau de escolaridade, maior número de horas por dia com essa função, a depressão, o isolamento social e as preocupações financeiras. |
Chan et al. | 2013 | Revisão Sistemática | NA | Rever a literatura acerca do luto no cuidador do doente com demência, incluindo as suas características e preditores de luto patológico. | Os cuidadores de doentes com demência têm maior prevalência de luto antecipatório e complicado. Os doentes que sofrem de luto antecipatório são mais diagnosticados com depressão. |
Cheung et al. | 2018 | Observacional transversal | 108 cuidadores de doentes com demência | Comparar o luto antecipatório dos cuidadores de doentes com demência em estadio inicial e terminal. Perceber a relação do luto antecipatório com o nível de sobrecarga do cuidador | Quanto mais avançado o estadio da demência, maiores os níveis de luto antecipatório, o que está associado a maior sensação de desgaste do cuidador. |
Bartley et al. | 2018 | Revisão Bibliográfica | NA | Rever a evidência atual sobre os cuidados na demência avançada | Cuidados paliativos nos doentes com demência, devem ser pensados desde estadios iniciais para permitir delinear objetivos e preparar estratégias para as complicações inevitáveis de fim de vida. As estratégias devem ser multidisciplinares e incluir o cuidador. |
Riedl et al. | 2020 | Estudo de coorte | 38 cuidadores de doentes com demência | Estudar o conhecimento dos familiares acerca dos cuidados paliativos na demência antes e depois de ser fornecido um booklet informativo | Os cuidadores valorizam a informação em formato escrito mas não ficou clara a associação direta entre o fornecimento de informação aos cuidadores e a melhoria do seu conhecimento sobre a demência. |
Chan et al. | 2023 | Revisão sistemática | NA | Determinar a associação entre os cuidados paliativos e os outcomes dos doentes com doenças neurológicas progressivas e respetivos cuidadores | Os cuidados paliativos parecem melhorar a satisfação dos doentes com demência e dos seus cuidadores. |
Quatro estudos debruçaram-se sobre o fim de vida no doente com demência (Andrews, McInerney, Toye, Parkinson, & Robinson, 2017; Bartley et al., 2018; Browne, Kupeli, Moore, Sampson, & Davies, 2021; Poole et al., 2018): uma revisão sistemática (Browne et al., 2021), uma revisão bibliográfica (Bartley et al., 2018) e dois estudos baseados em entrevista (Andrews et al., 2017; Poole et al., 2018), chegando à conclusão que é necessário entender a complexidade do utente para definir fim de vida (Browne et al., 2021), avaliar a perceção da família em relação à demência com condição terminal (Andrews et al., 2017) e entender as preferências do doente em relação aos cuidados de fim de vida ideais (Poole et al., 2018), permitindo delinear estratégias multidisciplinares atempadamente e que incluam o cuidador (Bartley et al., 2018).
Uma revisão bibliográfica reforçou a importância do papel dos cuidados de saúde primários na prestação de cuidados paliativos no doente com demência e no seu cuidador (Weisbrod et al., 2022). Nehen e Hermann (2015) salientaram a relevância da inclusão das necessidades do cuidador na abordagem do doente com demência. Um estudo coorte mostrou que os cuidadores valorizam o conhecimento sobre a doença para a prestação de melhores cuidados, dando preferência à informação em formato escrito (Riedl et al., 2020).
Duas revisões sistemáticas debruçaram-se sobre os fatores que contribuem para a sobrecarga do cuidador identificando fatores dependentes do doente e fatores dependentes do cuidador (Adelman, Tmanova, Delgado, Dion, & Lachs, 2014; Chiao, Wu, & Hsiao, 2015).
Um estudo observacional transversal (Cheung, Ho, Cheung, Lam, & Tse, 2018) e uma revisão sistemática (Chan, Livingston, Jones, & Sampson, 2013) estudaram o luto no cuidador do doente com demência, identificando os fatores para luto antecipatório e depressão.
Uma revisão sistemática mostrou que os cuidados paliativos parecem melhorar a satisfação dos doentes com demência e dos seus cuidadores (Chan et al., 2023).
DISCUSSÃO
Cuidados paliativos no doente com demência
Os doentes com demência têm um défice funcional crescente e estão em risco acrescido de desenvolver múltiplas complicações médicas. Este risco vai aumentando com a progressão da doença, sendo que, em fases avançadas, estes doentes podem beneficiar de cuidados paliativos. Por vezes, é difícil definir qual o timing ideal de referenciação destes doentes dado que, apesar da deterioração ser expectável, o fim de vida pode ser inesperado e está dependente de diversos fatores.
Definir "fim de vida" na demência é complexo devido à trajetória potencialmente longa e imprevisível da doença. Uma revisão sistemática mostrou a inconsistência na definição de fim de vida nos doentes com demência. Os estudos não abrangem a complexidade da definição de fim de vida, sendo que alguns estudos se focam na deterioração cognitiva e outros no declínio funcional. No entanto, nenhum considera as necessidades holísticas do indivíduo. Assim, torna-se necessária uma abordagem multidisciplinar e paliativa individualizada à pessoa com demência, englobando as suas necessidades físicas, médicas e psicossociais (Browne et al., 2021). Os sintomas associados ao fim de vida na demência incluem dor, apatia e disfagia e podem necessitar de cuidados especializados baseados nas necessidades individuais (Kumar & Kuriakose, 2013). Nos doentes com demência em fim de vida, outros sintomas da esfera psicossocial, como depressão, ansiedade e irritabilidade tendem a ser desvalorizados, quando comparados com as necessidades físicas (Hansen, Hauge, & Bergland, 2017).
Um estudo mostrou que as famílias cuidadoras não consideram a demência como uma condição terminal, o que contribui para um conhecimento limitado sobre a prestação dos cuidados necessários no fim de vida (Andrews et al., 2017).
Os critérios de referenciação para a equipa de cuidados paliativos não são universais e variam com a área geográfica e o tipo de equipa disponível. No entanto, na sua maioria incluem a deterioração física/cognitiva apesar de terapêutica otimizada; sintomatologia complexa e de difícil controlo; disfagia, dispneia, insuficiência respiratória; dificuldade na comunicação; sintomas psiquiátricos — psicose, ansiedade, depressão; perda ponderal significativa.
Uma outra investigação, com base em entrevistas, avaliou a perspetiva de doentes com demência em estadio inicial e dos seus cuidadores no que seriam os cuidados ideais para o fim de vida. Esta demonstrou que tanto os doentes como os cuidadores concordaram que gostariam de permanecer na sua própria casa e receber cuidados domiciliários adequados. Os doentes reforçaram a importância de ‘estar confortável’ nos momentos de fim de vida, não só relativamente aos sintomas físicos como dor, mas também emocionalmente e com suporte espiritual, muitas vezes referindo a importância deste suporte estar de acordo com a sua religião. Tanto os utentes como os familiares referiram a importância de ter uma equipa especializada em cuidados paliativos a acompanhá-los durante a doença. Uma vez que esta investigação foi feita em doentes em estadios iniciais de demência, na sua maioria, os doentes referiram a importância de ter planos futuros, indicando quais os tratamentos e intervenções a que queriam ser submetidos, o que pode corresponder a uma diretiva antecipada de vontade ou decisão de não reanimar (Poole et al., 2018).
A importância do cuidador no doente com demência
Aquilo que se verifica nos doentes com demência é que o cuidador é importante ao longo de todo o curso da doença. Numa fase inicial, no momento do diagnóstico, é uma peça fundamental, dado que ajuda a fornecer uma história clínica detalhada. Mais tarde, assume um papel ativo na gestão da doença e da dolência da pessoa de quem cuida. Neste sentido, com a progressão da deterioração funcional e do grau de dependência, o cuidador vai assumindo um papel progressivamente mais importante no acompanhamento do doente. Além disso, é muitas vezes necessária a tomada de decisões por parte do cuidador sobre a realização de exames complementares de diagnóstico ou instituição de terapêutica, respeitando as vontades do doente. Estas decisões são particularmente importantes na ausência de diretiva antecipada de vontade (Weisbrod et al., 2022).
É imperativo que a comunicação entre os profissionais de saúde e os cuidadores de pessoas com demência seja clara, permitindo a discussão sobre o prognóstico, possibilidade de morte, necessidade de tomada de decisões, opções terapêuticas e de suporte disponíveis e otimização de cuidados. Além disso, compreender as necessidades psicossociais dos cuidadores é fundamental na abordagem holística da pessoa com demência, dado que a deterioração cognitiva e funcional contribui para o desenvolvimento de sobrecarga no cuidador, assim como sentimentos de tristeza e raiva que podem afetar a sua capacidade de prestar cuidados adequados (Nehen & Hermann, 2015).
Sobrecarga do cuidador
Os cuidadores do doente com demência estão em risco acrescido de sobrecarga/desgaste do cuidador, que se define como "uma resposta multidimensional a ‘stressores’ físicos, psicológicos, emocionais, sociais e financeiros associados à experiência de fornecer cuidados" (Etters, Goodall, & Harrison, 2008). À medida que a demência evolui, a dependência funcional e as alterações de comportamento obrigam a uma supervisão constante que gera um aumento da sobrecarga do cuidador. Um estudo revelou que a prestação de cuidados a doentes com demência gera mais stress do que a prestação de cuidados em casos de deficiência física, e é igualmente stressante quando comparada ao auxílio a doentes com cancro (Volicer & Simard, 2015). Esta sobrecarga leva a diminuição da qualidade de vida do cuidador e pode levar a complicações mais sérias como comprovou uma revisão sistemática que indicou que os cuidadores de doentes com demência têm mais patologia ansiosa e depressiva que os cuidadores de doentes com acidentes vasculares cerebrais (Chiao et al., 2015).
A triagem, avaliação e monitorização do grau de sobrecarga do cuidador é essencial. Ferramentas como como o Zarit Burden Interview, Caregiver Strain Index e o Screen for Caregiver Burden são questionários que juntamente com informação clínica podem ajudar a predizer quais os cuidadores em maior risco de sofrer desgaste do cuidador (Etters et al., 2008). Estas escalas estão validadas e podem ser utilizadas na população portuguesa.
Alguns estudos debruçaram-se acerca dos fatores de risco para desenvolver sobrecarga do cuidador (Adelman et al., 2014; Chiao et al., 2015). Em relação aos fatores dependentes do doente, comprovou-se que o aumento da gravidade da demência, a presença de demência frontotemporal, transtornos comportamentais, sintomas neuropsiquiatricos, deambulação e delírios e a maior duração temporal da doença foram associados a um maior desgaste do cuidador (Chiao et al., 2015). Já em relação aos fatores dependentes do cuidador, o sexo feminino, baixo grau de escolaridade, maior número de horas por dia com essa função, a depressão, o isolamento social e as preocupações financeiras, são as condições que mais se associam a sobrecarga do cuidador (Adelman et al., 2014).
Está também comprovado que os cuidadores dos doentes com demência sofrem de lutos mais complicados. Por um lado, inicialmente os cuidadores sofrem de luto antecipatório devido à ambiguidade sobre o futuro, sentimentos de frustração e culpa. Sofrendo de luto antecipatório é também mais provável que o cuidador seja diagnosticado com depressão. Este problema é tanto maior quanto mais grave é a demência. Por outro lado, estas pessoas têm também mais probabilidade de vivenciar lutos complicados, após a morte do familiar (Chan et al., 2013; Cheung et al, 2018).
Intervenções para diminuir o desgaste do cuidador
O cuidador do doente com demência deve ser, por definição, incluído na prestação de cuidados paliativos. No entanto, é muitas vezes descurado, dado que a evidência ainda é escassa sobre qual o papel das diferentes intervenções dos cuidados paliativos no cuidador do doente com demência. Estudos mostram a eficácia de diferentes estratégias na diminuição da sobrecarga do cuidador, na educação, na melhoria da qualidade de vida e nos sintomas depressivos (Marriott, Donaldson, Tarrier, & Burns, 2000; Callahan et al., 2006; Haley et al., 2004).
Um ensaio clínico randomizado mostrou que programas de intervenção familiar focados na educação, gestão de stress e estratégias de coping reduzem significativamente a depressão e o stress dos cuidadores (Marriott et al., 2000).
Num outro ensaio clínico, com mais de 150 doentes com demência e respetivos cuidadores, investigou-se o papel da educação dos cuidadores através de recomendações por profissionais de saúde especializados. Foram dadas recomendações individualizadas com base em protocolos de gestão de sintomas como: distúrbios do sono, agitação, comportamento repetitivo, depressão e delírio, com medidas farmacológicas e não farmacológicas. Após doze meses, os pacientes do grupo de intervenção apresentaram melhorias significativas nos sintomas comportamentais e psicológicos, e houve uma redução significativa no stress do cuidador em comparação com o grupo de controlo. Para além disso, não houve aumento no uso de antipsicóticos ou medicamentos sedativos-hipnóticos no grupo de intervenção (Callahan et al., 2006).
Outros investigadores debruçaram-se sobre intervenções que incluíam informação individual, trabalho de sistemas familiares, treino psicoeducacional e baseado em habilidades, apoio de grupo, estratégias no ambiente doméstico e sistemas de tecnologia. Verificou-se que após 6 meses, os cuidadores do grupo de intervenção obtiveram pontuação significativamente menor nos questionários de desgaste do cuidador em comparação com os do grupo controlo (Haley et al., 2004).
Ainda uma revisão bibliográfica, confirmou os resultados já descritos, indicando que as estratégias multidisciplinares que mais beneficiam o cuidador incluem a psicoeducação (educação sobre a trajetória da doença e os sintomas), treino de estratégias de coping, exercício físico, grupos de apoio e terapia cognitivo-comportamental (TCC) (Bartley et al., 2018).
Por sua vez, houve ainda um ensaio clínico randomizado que avaliou o impacto de intervenções de apoio no luto baseadas em sessões de terapia individuais e familiares nos sintomas de depressão dos cuidadores. Este demonstrou que os cuidadores do grupo de controlo tinham probabilidade mais de duas vezes superior de desenvolver depressão, quando comparados com os cuidadores que receberam intervenções de apoio ao luto. Além disso, mostrou também o impacto benéfico do apoio ao cuidador desde os estadios iniciais da doença (Haley et al., 2008). Estas são estratégias que, em Portugal, são aplicadas pelas equipas de cuidados paliativos, que incluem psicólogos que apoiam as famílias, realizando múltiplas terapias e posteriormente, após morte do utente, continuam o seguimento no sentido de apoiar no luto, diagnosticar e orientar situações de luto patológico.
Em relação à educação sobre a doença e fornecimento de informação ao cuidador, uma revisão sistemática demonstrou que os cuidadores valorizam preferencialmente material informativo escrito, nomeadamente em "livrete". No entanto, nos resultados obtidos não ficou clara a associação direta entre o fornecimento de informação aos cuidadores e a melhoria do seu conhecimento sobre a demência. Além disso, também não houve alterações significativas do humor ou da sobrecarga do cuidador (Riedl et al., 2020).
Por fim, segundo uma revisão sistemática recente, os cuidados paliativos parecem melhorar a satisfação dos doentes com demência e dos seus cuidadores (Chan et al., 2023). No entanto, os resultados em relação à melhoria de forma quantitativa da qualidade de vida e da exaustão do cuidador foram ainda inconclusivos. Ainda assim, comprovou-se que a presença de equipas multidisciplinares, médicos especializados em cuidados paliativos, visitas domiciliárias e suporte espiritual estão associados a uma melhoria dos sintomas dos utentes com demência, havendo por sua vez maior tranquilidade dos cuidadores (Chan et al., 2023).
A presente revisão bibliográfica sistematiza a evidência científica disponível acerca das intervenções no cuidador do doente com demência, permitindo esclarecer o papel dos cuidados paliativos nesta população. No entanto, este estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente a escassez de estudos que incluam especificamente os cuidadores dos doentes com demência. Além disso, alguns estudos apenas se baseiam em medidas qualitativas, outros apenas comparam diferentes amostras com e sem intervenção, sendo que poucos avaliam os resultados na mesma amostra antes e depois da intervenção.
Para além disso, como os estudos incluídos são de várias nacionalidades, os critérios de referenciação para cuidados paliativos variam entre países, os modelos de organização de cuidados de saúde são diferentes e a realidade da prestação de cuidados pode não corresponder à portuguesa.
CONCLUSÕES
Em suma, através desta revisão, conclui-se que, de facto, o cuidador tem um papel fundamental na prestação de cuidados adequados ao doente com demência. Apesar da definição de fim de vida e do momento ideal de referenciação para cuidados paliativos serem controversos, é importante integrar técnicas de cuidados paliativos na prática clínica de qualquer médico de família e referenciar assim que indicado. Para além disso, é crucial a inclusão do cuidador na gestão da doença e na prestação de cuidados paliativos no sentido de diminuir o stress/desgaste e prevenir a exaustão.
A abordagem multidisciplinar em conjunto com a equipa de cuidados paliativos permite implementar estratégias de prevenção da exaustão do cuidador. As estratégicas que provaram ter resultados na diminuição da exaustão do cuidador incluem: a psicoeducação, a prestação de cuidados por uma equipa multidisciplinar no domicílio, o fornecimento de técnicas de coping, a TCC, a intervenção no luto, o apoio espiritual, a educação sobre a doença, e a prestação de cuidados individualizados e atempados. Estas podem trazer benefício no que diz respeito ao conhecimento do cuidador sobre a doença, e à diminuição do stress, da sobrecarga, do isolamento e dos sintomas depressivos, permitindo um melhor ambiente em casa e uma maior qualidade de vida quer para o doente quer para o cuidador.
Ainda assim, as investigações que existem sobre esta temática são escassas e com amostras pequenas e pouco representativas. Efetivamente, são necessários mais estudos para avaliar os efeitos dos cuidados paliativos no cuidador do doente com demência, nomeadamente sobre os componentes de intervenção mais eficazes e quais os benefícios para o cuidador. Seria ainda importante que estas investigações utilizassem as escalas validadas de modo a ser possível realmente quantificar os resultados e reproduzi-los.
Por fim, é importante reforçar que o médico de família deve adotar uma abordagem holística dos utentes com demência em fase avançada, incluindo o cuidador como parte recetora de cuidados e trabalhando em equipa com os profissionais especializados na prestação de cuidados paliativos.