Introdução
A halitose é uma condição caracterizada por um odor desagradável exalado pela respiração, capaz de promover desconforto olfativo nos indivíduos afetados e naqueles com os quais interagem.1,2 Essa condição clínica representa a terceira causa mais comum de queixa nos consultórios odontológicos, e apresenta uma prevalência de aproximadamente 31,8% entre adolescentes e adultos ao redor do mundo.2
De modo geral, a halitose pode ser definida como genuína quando o paciente apresenta mau odor oral com intensidade superior aos níveis socialmente aceitáveis.3 Embora seu fator etiológico seja de difícil determinação,4,5evidências têm indicado que entre 80‑90% dos casos o fator causal principal está localizado na cavidade oral.6 Os focos principais são os tecidos do revestimento lingual e o biofilme periodontal,7 que fornecem substratos variados, como componentes salivares, resíduos alimentares e células epiteliais, que podem ser metabolizados por microrganismos, produzindo compostos de enxofre voláteis (CSVs) associados ao mau odor oral.6
Dentre os métodos de identificação da halitose, o teste organoléptico, mesmo apresentando um caráter subjetivo, ainda é considerado o padrão ouro de diagnóstico, devido sua simplicidade, baixo custo e capacidade de detetar diversos tipos de odores, incluindo os CSV.8 Esta avaliação pode ser incluída no exame clínico inicial para auxiliar o planeamento do tratamento dentário para adequado para os casos.
As consequências sociais e psicológicas relacionadas à presença de halitose, como baixa autoestima, auto depreciação, retraimento social, profissional e afetivo, reforçam a afirmação que o médico dentista deve estar atento aos sinais e sintomas dessa patologia.9 Neste sentido, a halitose é considerada um fator que pode interferir negativamente quando se analisa o conceito de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde (OMS).10
Desta forma, o presente estudo teve como objetivo analisar a correlação do nível de halitose com qualidade de vida relacionada à saúde oral, e investigar mudanças no nível de halitose após a reabilitação oral.
Material e métodos
Um estudo observacional foi conduzido na clínica odontológica da Universidade Federal do Maranhão. Inicialmente, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Maranhão. Todos os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos, procedimentos e etapas do estudo, e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Foram incluídos no estudo pacientes de ambos os sexos, com idade entre 18 e 60 anos, que estavam realizando o exame clínico inicial na clínica odontológica da Universidade Federal do Maranhão. Foram excluídos da amostra indivíduos com diabetes; participantes que tenham sido submetidos a tratamento periodontal nos 6 meses anteriores a pesquisa; gestantes; lactantes; usuários de aparelhos ortodônticos fixos e participantes que tenham utilizado nifedipina, ciclosporina, fenitoína ou antibiótico nos 6 meses anteriores a pesquisa. Um total de 32 participantes foram incluídos no estudo.
Na avaliação inicial, um questionário foi utilizado para a coleta das variáveis sócio demográficas e hábitos de higiene oral. Em seguida, o instrumento validado Oral Health Impact Profile em sua forma reduzida (OHIP‑14) foi aplicado para avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde oral. Neste instrumento, são utilizadas 14 perguntas agrupadas em pares para analisar 7 dimensões: limitação funcional, dor física, desconforto psicológico, incapacidade física, incapacidade psicológica, incapacidade social e deficiência. As perguntas foram respondidas em uma escala de Likert com as seguintes categorias: nunca = 0; raro = 1; às vezes = 2; frequentemente = 3; sempre = 4. Para o cálculo do score por dimensão e OHIP‑ 14 total foram utilizados os pesos descritos por Slade em 1997.11
O odor oral foi mensurado através do teste organoléptico.12,13 O teste organoléptico foi realizado por um único examinador previamente treinado, que obteve coeficiente de concordância intra‑examinador maior que 0,85, indicando ótima consistência na avaliação. Todos os participantes foram orientados previamente sobre a necessidade de não fumar, não ingerir alimentos muito condimentados e não fazer uso de qualquer produto ou substância que pudesse mascarar o odor oral, por pelo menos 24 horas antes da realização do exame.
A avaliação da halitose foi realizada desde o momento em que o paciente entrou no consultório de medicina dentária, por meio da perceção do odor oral no ambiente e durante a conversação. Nos casos em que não foi possível detetar a presença de halitose no contato inicial, os participantes foram orientados a permanecerem sentados, de boca fechada e respirando exclusivamente pelo nariz por 2 minutos. Posteriormente, uma régua de 15 cm foi posicionada no sulco mentoniano do paciente em direção à base do nariz do examinador e na sequência, o paciente foi orientado a exalar lentamente o ar contido em sua boca. Ao final do exame os voluntários foram classificados de acordo com scores: (1) Ausência de halitose e de qualquer outro odor (hálito inodoro), (2) Presença de odor natural da boca, que não promove desconforto olfativo, (3) Halitose da intimidade, percetível apenas ao se aproximar, a partir de 15 cm de distância (teste da régua), (4) Halitose do interlocutor, percetível na distância de 50 cm, que é a distância média de conversação, (5) Halitose social, percetível no ar do ambiente em que o portador se encontra.14
Além disso, foi realizado o exame periodontal em todos os dentes presentes, com o auxílio de uma sonda periodontal milimetrada Williams (Trinity, São Paulo, Brasil) nos seis sítios (disto‑vestibular, centro‑vestibular, mésio‑vestibular, disto‑lingual, centro‑lingual e mésio‑lingual). Foram aferidos os seguintes parâmetros: índice de placa visível (IPV) examinado nas quatro superfícies dentárias, por meio de avaliação dicotómica; profundidade de sondagem (PS), distância em milímetros (mm) da margem gengival ao ponto mais apical do sulco gengival ou da bolsa; nível de inserção clínica (NIC), distância em mm da junção amelocementária até o fundo do sulco gengival ou da bolsa; índice de sangramento à sondagem (ISS), determinado pela presença ou ausência de sangramento durante à sondagem. A presença de periodontite foi definida como três ou mais dentes com um ou mais sítios apresentando profundidade de sondagem ≥ 4 mm, nível de inserção clínico ≥ 3mm, e sangramento à sondagem no mesmo sítio.15
Após a coleta inicial, a reabilitação oral foi planeada seguindo as necessidades de cada participante. Tratamentos periodontais, restauradores, cirúrgicos e endodônticos foram realizados de acordo com o planeamento do tratamento dentário.
Do baseline ao momento da reavaliação esses pacientes foram acompanhados e orientados para a realização dos procedimentos de higienização oral. Foram disponibilizados kits de higiene oral (escova, creme dental e fio dental) e prescritos elixires de digluconato de clorexidina 0,12% como coadjuvante no tratamento dos pacientes com doença periodontal.16
Concluído a reabilitação oral um novo teste organaleptico foi realizado nos participantes. Os dados foram analisados utilizando os recursos dos softwares SPSS 26.0 (IBM, Chicago, IL, USA) e GraphPad Prism versão 8 (GraphPad Software, San Diego, CA, USA). A estatística descritiva foi realizada utilizando medidas de frequência, média e de desvio‑padrão.
Os testes Qui‑quadrado e Exato de Fisher foram utilizados para analisar a distribuição das variáveis categóricas entre os grupos de estudo. As variáveis numéricas foram testadas para normalidade através do teste Shapiro‑Wilk.
Após este procedimento o teste T independente foi utilizado para comparar grupo halitose e controle, e o teste T emparelhado foi utilizado para comparar o grau de halitose antes e após a reabilitação oral. Gráficos tipo scatter plot foram utilizados para expressar os resultados do teste organoléptico e score OHIP‑14 total. O tamanho do efeito foi calculado através da medida Cohen’s d. Além disso, o coeficiente de Pearson foi utilizado para analisar a correlação das dimensões do questionário OHIP‑14 e o nível de halitose na amostra avaliada. Para todas as análises adotou‑se o nível de significância de 5%.
Resultados
Um total de 15 pacientes compuseram o grupo com halitose (GH) e 17 indivíduos saudáveis foram alocados no grupo controle (GC). Observou‑se, na Tabela 1, que o GH apresentou uma frequência mais elevada de indivíduos na faixa etária de 31 a 45 anos (p=0,003), com escolaridade até 8 anos (p=0,028) e casados (p=0,037) quando comparada ao GC.
Na Tabela 2 foi possível verificar uma associação da halitose com higiene oral insatisfatória (93,3%, p<0,001). Além disso, no GH também foi percebido uma baixa adesão ao uso regular de fio dentário (p<0,001), com 46,6% dos indivíduos relatando seu uso raramente, assim como, a elevação presença de biofilme lingual (86,7%, p<0,001). Com relação a presença da periodontite, o GH apresentou prevalência mais elevada do que o grupo controlo (p=0,026). Categorias com maior comprometimento de IPV (p=0,007) e NIC (p=0,045) foram observadas no GH.
Um maior impacto da saúde oral sobre a qualidade de vida foi detetado no Grupo Halitose (p=0,003), com maior média do score OHIP‑14 quando comparado ao Grupo Controlo (Figura 1).
* Diferenças estatisticamente significantes através do teste T independente (p<0,05).
O tamanho do efeito (Cohen’s d) foi igual a 1,12, indicado alta magnitude de efeito. A Tabela 3 expressa as medidas de correlação entre as dimensões do OHIP‑14 e teste organoléptico revelou, na amostra avaliada, que quanto maior o score de halitose maior foi o impacto da saúde oral sobre as dimensões dor física (R=0,49, p=0,003), desconforto psicológico (R=0,42, p=0,013), Incapacidade psicológica (R=0,51, p=0,002), incapacidade social (R=0,41, p=0,019) e deficiência (R=0,44, p=0,011).
Por meio da análise comparativa do nível de halitose realizado antes e após a adequação do meio oral (Figura 2), observou‑se que os pacientes do GH apresentaram uma redução significante após a reabilitação oral (p=0,002), com medida Cohen’s d igual a 1,11, indicando alta magnitude de efeito. No entanto, mesmo após o tratamento dentário o nível de halitose no GH permaneceu estatisticamente mais elevado do que o nível detetado no GC (p<0,001), e medida Cohen’s d igual a 1,77 (Figura 3).
* Diferenças estatisticamente significantes através do teste T emparelhado (p<0,05).
* Diferenças estatisticamente significantes através do teste T independente (p<0,05).
Discussão
Os principais achados do presente estudo sugerem que indivíduos com halitose apresentam um maior impacto da saúde oral sobre a qualidade de vida, e a reabilitação oral, compreendendo a educação em saúde oral e o tratamento dentário podem contribuir para a redução do nível de halitose.
O reforço nos procedimentos de higiene oral é importante para o controle dos níveis de halitose. Entretanto, é importante destacar que a maioria dos pacientes apresenta uma melhora nos cuidados com a saúde oral apenas durante o período do tratamento dentário, retornando logo em seguida aos velhos hábitos e comportamentos de higiene insatisfatórios.17 Deste modo, o regresso ao consultório com os mesmos sinais e sintomas de halitose acaba sendo inevitável, principalmente quando o paciente apresenta desconforto emocional instalado.9
A categoria de menor escolaridade foi observada no presente estudo apenas entre os indivíduos com halitose. Este achado pode ser explicado por evidências na literatura que associam o menor nível de instrução ao maior risco de adoção de hábitos nutricionais e higiene oral,2,18 possibilitando um ambiente oral propício para a acumulação de restos de alimentos, crescimento de biofilme e instalação de patologias orais.
Além disso, fatores salivares também podem estar associados a presença de halitose, por exemplo a diminuição do fluxo salivar torna a saliva mais viscosa, contribuindo para o aumento da descamação celular e da deposição de restos alimentare no dorso da língua, ocasionando um aumento da saburra lingual.10 Por consequência, a decomposição do biofilme lingual pelas bactérias anaeróbicas liberta CVS na cavidade oral gerando halitose.10,13
Entre os problemas de saúde oral identificados na literatura científica como possíveis fatores etiológicos da halitose, as doenças periodontais foram apontadas como as principais geradoras da halitose,6 baseado no fato da morfologia da bolsa periodontal cria um ambiente ideal para as bactérias produtoras de enxofre, que ao libertarem esse composto químico podem contribuir para o agravamento dos problemas periodontais. No presente estudo, todos os pacientes do grupo halitose foram diagnosticados com periodontite no exame clínico inicial.
Segundo a OMS, um dos fatores associados a qualidade de vida é a perceção do indivíduo em relação aos seus objetivos, expectativas e preocupações em relação ao seu bem‑estar físico e social.9 Neste contexto, os dados do presente estudo mostram que pacientes com halitose apresentaram scores OHIP‑14 mais elevados, indicam um maior impacto negativo da saúde oral sobre a qualidade de vida. Além disso, a análise de correlação mostrou que pode haver uma correlação direta entre piores níveis de halitose e maior impacto negativo sobre as dimensões dor física, desconforto psicológico, incapacidade psicológica, incapacidade social e deficiência. As dores físicas podem ser provenientes da presença de lesões cariosas, raízes residuais e necessidades endodônticas. O desconforto psicológico foi correlacionado aos pacientes que apresentavam queixas de mau hálito, e acabavam se afastando do convívio social, por acreditarem que outras pessoas poderiam perceber.18,19Estes achados reforçam que a halitose pode estar associada a um maior impacto negativo na qualidade vida relacionada à saúde oral, em especial para aspetos psicológicos e interações sociais.
As limitações do estudo estão relacionadas ao tamanho da amostra e ao seguimento após o início do tratamento por apenas 6 meses. Desta forma, sugere‑se o desenvolvimento de novos estudos com seguimento de longo prazo para melhor avaliação de causa e efeito, com amostras maiores e a investigação de outros fatores orais.20
Conclusões
A adoção de cuidados de higiene oral e planeamento adequado do tratamento odontológico pode auxiliar no controle da halitose e contribuir para a melhora da qualidade de vida relacionada à saúde oral. Neste sentido, a educação em saúde deve ser pensada como um processo capaz de desenvolver nas pessoas uma consciência crítica das reais causas dos seus problemas de saúde, atuando com um importante instrumento da sua transformação social.