Introdução
A manutenção da saúde geral da criança é fundamental para promoção do desenvolvimento físico, intelectual e social adequados. Enquanto parte integrante da saúde geral, a saúde oral do paciente pediátrico não deve ser descuidada.1
Embora exista uma tendência mundial em relação à atenção precoce à saúde da criança, quando se trata de saúde oral, no Brasil observa-se um desequilíbrio quando comparado o acesso ao dentista ao do pediatra, tanto na saúde pública como na privada.2 A American Academy of Pediatrics (AAP) refere que para cada 250 visitas pediátricas nos EUA durante o primeiro ano de vida, acontece apenas uma visita odontológica.3
Esses dados reiteram a importância do papel que o pediatra possui diante das primeiras orientações sobre saúde oral, pois as crianças no primeiro ano de vida dificilmente vão ao dentista, enquanto realizam consultas mensais com o pediatra.
Como é justamente na primeira infância que se instalam os principais hábitos de higiene, dietéticos, e também alguns hábitos deletérios, o pediatra pode assim, atuar de forma conjunta com o profissional odontoólogo na prevenção de doenças orais.3,4
A AAP juntamente com a American Academy of Pediatrics Dentistry (AAPD) formularam um guia com o objetivo de normatizar e sistematizar a prevenção em saúde oral para os pediatras.3 Mais recentemente a Sociedade Brasileira de Pediatria lançou o Guia de saúde oral materno-infantil, elaborado pela equipe de consultores da Global Child Dental Fund e adaptado para o Brasil a partir da revisão de conteúdo desenvolvido por pediatras brasileiros.5
No entanto, diversas pesquisas realizadas no Brasil e em vários países do mundo que abordam o conhecimento, as práticas e atitudes do médico pediatra em relação à saúde oral no decorrer dos últimos anos, ainda mostram a necessidade de melhor difusão de conhecimentos e diretrizes a cerca desta problemática aos médicos pediatras.
Desse modo, esta pesquisa objetivou avaliar o conhecimento, as práticas e atitudes do pediatra em relação à promoção de saúde oral, cuidados bucais, cáries e lesões orais em crianças.
Material e métodos
Após aprovação pelo Comitê de ética em Pesquisa do Centro Universitário CESMAC, a pesquisa foi realizada com médicos pediatras de ambos os sexos que estavam em atividade no Estado de Alagoas em 2019, tanto a nível hospitalar como em ambulatório, em serviços público ou privado.
Como instrumento de pesquisa, um questionário foi elaborado baseado em estudos anteriores,2,4,6-13e após compilação das questões e adequação para os objetivos da pesquisa, o questionário com 37 questões foi organizado em 4 blocos que abordaram: 1. perfil profissional; conhecimento, práticas e atitudes sobre, 2. cuidados bucais; 3. cárie dentária e 4. Lesões bucais em crianças.
Um estudo piloto foi realizado com 20 pediatras escolhidos de forma aleatória com a finalidade de averiguar a adequação da forma de colheita, avaliar o método de aplicação, aferir a logística do estudo, a clareza e a precisão do instrumento de recolha dos dados. Os dados recolhidos através deste estudo piloto foram utilizados para fins de adequação metodológica e não foram incluídos nos resultados da pesquisa.
Para acesso aos pediatras de Alagoas, foi utilizado um canal de comunicação da Sociedade Alagoana de Pediatria, o aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas (Whatrev sapp®). A Sociedade Alagoana de Pediatria (SAPAL) é uma associação filiada à Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e sua representante legal no estado de Alagoas para os assuntos referentes à infância e adolescência.
Obtivemos acesso a população de 242 pediatras, sendo que aqueles que não se conseguiu acesso mediante a multiplataforma Whatsapp®, o contato também foi realizado através do e-mail de cada profissional, fornecido pela SAPAL, única e exclusivamente para os fins desta pesquisa.
O questionário foi enviado e aplicado através da plataforma de questionários online Google Forms® mediante o fornecimento de um link específico aos participantes da pesquisa, onde primeiramente tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre Esclarecido - TCLE, e somente após o conhecimento do termo e a sua aceitação, os participantes tiveram acesso ao questionário da pesquisa. A pesquisa ocorreu no período de março a julho de 2019.
Na atualidade, tem-se observado que a aplicação de questionário ou formulário é um instrumento de colheita de dados amplamente utilizado nas pesquisas, em especial na área da saúde, principalmente pela dinâmica laboral, na qual a maioria destes profissionais exercem suas atividades em vários locais de trabalho paralelamente.
Todos os dados coletados foram tabulados no programa Microsoft Office Excel® 2016 e posteriormente as variáveis foram organizadas em tabelas de contingências.
Na análise descritiva, utilizaram-se frequências absolutas e relativas. Para avaliação do conhecimento, práticas e atitudes dos pediatras em relação aos cuidados bucais, à cárie e às lesões bucais, cada bloco foi analisado separadamente, sendo os resultados confrontados com a melhor evidência científica atual disponível na literatura e com as recomendações de sociedades nacionais e internacionais.
Resultados
Da população de 242 pediatras contactados, 134 responderam ao questionário, o que correspondeu a uma taxa de resposta de 55,3%. Em relação ao perfil dos participantes, a maioria foi do sexo feminino (89,5%), com uma idade média de 45,4 anos (DP+ 10,3), eram egressos de universidades públicas (83,6%) e exerciam a pediatria há mais de 20 anos (44,8%).
No momento da pesquisa, a grande maioria dos respondentes atuava na capital (88,8%), trabalhava tanto no setor público como no privado (65,6%) e exercia a pediatria em ambiente hospitalar em ambulatório concomitantemente (55,2%).
Dentre os pediatras, 59% referiram não trabalhar com docência, e quando questionados sobre onde haviam obtido conhecimentos específicos sobre saúde oral, 28,3% informaram que foi durante o curso de graduação, bem como o mesmo percentual referiu ter sido durante o internato médico. No entanto, 34,4% relatam que foi através de outros eventos (leituras, experiências familiares, informações de amigos, entre outros).
Quando solicitados a classificarem seu próprio conhecimento sobre saúde oral, cerca de 46,3% classificaram como inadequado, 30,6% como adequado e 23,1% não souberam informar.
Quando questionados sobre os principais obstáculos relacionados à promoção da saúde oral, os mais referidos pelos pediatras foram: a falta de tempo na consulta (29,8%), a falta de conhecimento para a identificação de problemas orais (20,9%) e a falta de conhecimento sobre o que orientar (19,4%).
Outros dados relevantes, que dizem respeito à prática clínica dos pediatras estão expostos no quadro abaixo (Tabela 1).14-38 Esses resultados foram analisados à luz das evidências científicas mais atuais e/ou com base nas recomendações de órgãos de classe ligados a odontologia.
Outro resultado que chamou à atenção na pesquisa, é que 59,7% dos pediatras afirmaram conhecer os sinais iniciais da cárie, porém destes, 75% pediatras responderam quais seriam, e apenas 10% relataram manchas claras/brancas como sinais precoces da cárie dentária.
Em relação as lesões bucais mais conhecidas pelos pediatras, tais como: lesão de Riga-Féde, nódulo de Bohn, épulide do RN, rânula, mucocelo, cisto gengival, cistos de erupção, gengivite herpética, pérolas de Epstein, candidíase e língua geográfica, encontramos uma média 5,3 lesões/pediatra (Figura 1). As lesões mais conhecidas estão mostradas na Figura 2.
Discussão
A maioria dos pediatras são do sexo feminino (89,5%), com uma média de idade de 45,4 anos, que trabalha nos setores público e privado concomitantemente (65,6%) e está formada há mais de 20 anos (44,8%), corroborando com a literatura consultada.2,6Baseado nas respostas obtidas no questionário, quanto à autoavaliação do conhecimento sobre saúde oral, 46,3% dos participantes deste estudo declararam como inadequado, o que não difere de outros estudos já realizados que abordaram este tipo de avaliação.7,9
Apesar do exame da cavidade oral ser importante para a avaliação da saúde global da criança, apenas 64,2% dos participantes deste estudo realizam rotineiramente o exame da cavidade oral nos seus pacientes. Taxa semelhante encontrada por Balaban et al.9 (68,1%), no entanto, estudos realizados por outros autores,6,7mostraram que esta prática entre os pediatras variou de 87 a 100%.
Em relação às orientações aos pais sobre erupção dentária e cuidados dentários, 52,2% referiram sempre orientar aos progenitores sobre a importância de hábitos saudáveis e da higienização da boca do bebé. Estudo realizado por Nunes et al.2 verificou que 100% dos pediatras sempre realizavam este tipo de orientação.
Quanto à higiene oral antes da erupção do primeiro dente, 43,3% dos pediatras participantes sempre orientam esta conduta. Percentagem menor foi encontrada no estudo realizado por Schalka e Rodrigues,4 no qual apenas 8,4% indicavam a necessidade de higienização neste período. Mais recentemente, numa pesquisa realizada por Silva et al.3, para 79,6% dos pediatras entrevistados, também a higiene da cavidade oral deveria iniciar-se ao nascimento do bebé. Quanto ao início da escovagem dentária, 91% dos pediatras participantes indicam a escovagem após a erupção do primeiro dente, corroborando outros estudos encontrados na literatura.4,6,8
Ao analisarmos as respostas relacionadas ao uso do dentífrico, 50,7% dos pediatras alagoanos recomendam o uso de creme dental na escovagem dentária, na quantidade adequada pela grande maioria (84,4%), porém apenas 10,4% recomendam o uso do dentífrico com concentração padrão de flúor para todas as idades, tais achados foram semelhantes a outros estudos realizados.3,9Tal postura pode ser justificada pelo receio de se promover a fluorose dentária.39 Com relação às orientações sobre o consumo de doces e alimentos açucarados, 71% dos participantes referem sempre realçar os riscos da ingestão deste tipo de alimento, dado semelhante ao encontrado por outros autores,2,3com taxas de 62,5% e 87,8%, respetivamente. O risco de cárie é diretamente proporcional ao consumo e frequência de consumo de açucares, devendo os pais serem orientados quanto a importância da qualidade da dieta para a saúde oral da criança, devendo ser uma parte essencial da consulta pediátrica.3
A glicose foi o carboidrato apontado como o mais cariogénico, sendo citado por 40,3% dos pediatras, seguido pela sacarose (28,4%). Porém, a sacarose é o açúcar mais cariogénico, porque permite a formação de glucano, favorecendo a adesão bacteriana nos dentes, bem como, limita a difusão e o tamponamento de ácidos.37 Na prática pediátrica é muito comum a prescrição de medicações na apresentação de xaropes.
Quando questionados sobre as orientações de cuidados de higiene oral diante desta necessidade, mais da metade dos pediatras responderam que nunca recomendam tais cuidados (53%).
Sobre a visita ao médico-dentista/odontopediatra, 37,3% dos pediatras participantes da pesquisa recomendam que a primeira visita seja realizada entre o sétimo e o décimo-segundo meses de vida da criança, (24,7%) entre o 1.º e 2.º anos de vida e 21,6% recomendam que seja realizada entre zero e 6 meses de idade. A American Academy of Pediatric Dentistry, a American Dental Association e a American Association of Public Health Dentistry recomendam que os bebés sejam agendados para um exame oral inicial dentro de 6 meses após a erupção do primeiro dente decíduo, mas no máximo 12 meses de idade.37
Outro achado importante neste estudo é que cerca de 59,7% dos pediatras participantes afirmaram reconhecer os primeiros sinais de surgimento de cárie. No entanto, destes, 75% descreveram os sinais reconhecidos, e as manchas brancas foram relatadas por apenas 10% dos pediatras como o sinal mais precoce do processo carioso. Dados semelhantes também foram encontrados em estudos realizados anteriormente.7,9
Quando questionados sobre o reconhecimento de lesões bucais como manifestação de doenças sistémicas, 76,8% dos participantes relataram reconhecer. Este fato é muito importante, pois as manifestações bucais são muito comuns e podem ser os primeiros sinais e sintomas de doenças ou de alterações sistémicas decorrentes de certas terapêuticas. Tais lesões podem indicar o início ou evolução de alguma enfermidade, e, portanto, podem funcionar como um sistema de alarme precoce para algumas doenças.40-42
Outro importante resultado neste estudo foi em relação aos prejuízos provocados pela prematuridade na dentição futura, pois 40,3% dos pediatras afirmaram desconhecer esta informação e 8,2% afirmaram não haver prejuízos. Diversas alterações e disfunções bucais podem estar presentes em crianças prematuras, a literatura tem mostrado aumento na incidência de defeitos de esmalte, como hipoplasia e hipomineralização, atraso do desenvolvimento e na erupção da dentição decídua, malformação do palato e aumento na incidência de cárie dentária.31
Em relação à aptidão e segurança para conduzir e orientar os progenitores quanto às lesões bucais, apesar de 47% afirmarem estar aptos e seguros, 38,8% relataram conduzir e orientar, mas necessitam de mais informações, 9,1% negaram aptidão, e 7,8% relataram que diante das lesões orais preferem encaminhar diretamente ao médico-dentista/odontopediatra/ estomatologista.
Estudo realizado por Rampin et al.8 na cidade de Ribeirão Preto, 95,2% dos médicos participantes afirmaram que necessitam de informações sobre a prevenção de doenças bucais. A falta de tempo na consulta (29,8%), a falta de conhecimento para a identificação de problemas orais (20,9%) e a falta de conhecimento sobre o que orientar (19,4%), foram apontados como os principais obstáculos relacionados à promoção de saúde oral pelos pediatras participantes. Tais achados corroboram com outras pesquisas realizadas.6,7,9
A American Academy of Pediatrics Dentistry defende a orientação antecipatória de saúde oral, devendo esta ser parte integrante da pediatria preventiva. Informações sobre o impacto da dieta na saúde oral e aconselhamento sobre higiene oral, hábitos orais não nutritivos e segurança dentária devem ser compartilhadas com os pais. A orientação antecipada durante as visitas de puericultura é uma ferramenta eficaz para educar os pais sobre a manutenção da saúde das crianças.37 Para que os pediatras sejam capazes de abordar problemas de saúde oral nos seus pacientes, eles devem ter conhecimento adequado do processo de doença, fatores de risco, sinais e sintomas, prevenção e estratégias de intervenção.
Conclusões
Apesar de os pediatras atuarem diretamente na prescrição dos cuidados bucais da criança desde o nascimento, nesta pesquisa o conhecimento, atitudes e práticas sobre saúde oral dos pediatras pesquisados não se encontram suportados pelas melhores evidências científicas existentes. Torna-se necessário a criação de programas de educação médica continuada, ou até mesmo de uma melhor formação na graduação e/ou internato médico, para fornecer aos profissionais médicos/pediatras o conhecimento e capacidades necessárias para que ele possa diagnosticar e dar orientações adequadas às crianças e a seus familiares em relação à prevenção, possíveis tratamentos e encaminhamento adequado ao profissional da odontologia.