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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.1 Porto jun. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.18820 

Recensões críticas de livros

Ressonâncias da obra de Ivar Oddone e seus colaboradores em pesquisas e intervenções no Brasil

Resonancias de la obra de Ivar Oddone y sus colaboradores en investigaciones e intervenciones en Brasil

Résonances de l’ouvrage d’Ivar Oddone et ses collaborateurs dans les recherches et interventions au Brésil

Resonances of the work from Ivar Oddonne and his associates in research and interventions in Brazil

Hélder Pordeus Muniz1 
http://orcid.org/0000-0001-8430-3647

Denise Alvarez2 
http://orcid.org/0000-0002-3216-3993

Ana Luiza Corrêa Telles3 
http://orcid.org/0000-0001-9162-5919

1Professor do Departamento e da Pós-graduação em psicologia da Universidade Federal Fluminense - UFF Avenida Sete de Setembro, n. 180, apto. 603. Icaraí, Niterói- RJ, CEP 24230-252 heldermuniz@uol.com.br

2Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense Rua Passo da Pátria, 156 Bloco D sala 306 TEP, São Domingos, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil CEP 24210-240 alvarez.dena@gmail.com

3Cabinet Analusis e Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM) Espace Beauvalle Bât.C, 6 rue Mahatma Gandhi, 13090 Aix-en-Provence altelles@orange.fr


A publicação da segunda edição ampliada do livro “Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde” (Oddone, Marri, Gloria, Briante, Chiatela e Re, 2020) representa um ganho para os pesquisadores e profissionais que se interessam em compreender-transformar o trabalho visando a saúde dos trabalhadores. Além da reedição da obra original publicada em 1986 no Brasil, e em 1977 na Itália, o livro vem enriquecido com o prefácio de Alessandra Re e Marianne Lacomblez, o posfácio de Yves Schwartz e um anexo contendo oito textos de pesquisadores brasileiros que refletem sobre como o Modelo Operário Italiano (MOI) referencia suas práticas, ao mesmo tempo em que apresentam outros materiais teórico-metodológicos, que dialogam com essa contribuição.

1. A aventura coletiva de luta pela saúde ontem e hoje

O prefácio de Alessandra Re e Marianne Lacomblez recupera a importância histórica e política dessa obra, na Itália e no Brasil, pois ela foi fruto de um movimento coletivo formado por médicos, ergonomistas, psicólogos e outros especialistas, trabalhadores e sindicalistas, com o objetivo central de buscar uma linguagem comum entre eles, que tornasse possível a discussão sobre trabalho e saúde e a transformação das situações. Neste contexto, nasce este “livro-ferramenta” ou “livro-manual” que abandona a leitura da nocividade baseada nas características técnicas dos fatores de risco, voltando-se para seus efeitos sobre os seres humanos.

As autoras enfatizam como a obra valoriza o saber dos trabalhadores, sem desprezar o conhecimento científico. Ressaltam como esse encontro de saberes amplia a força da luta dos trabalhadores conferindo-lhe maior sistematização e enriquece a produção científica, na medida em que a enraíza nas experiências concretas e situadas dos trabalhadores. Fazem também importante avaliação de como a mudança de correlação de forças entre as classes sociais, com o advento do neoliberalismo e as propostas de reorganização das empresas precarizando os vínculos, produziu um arrefecimento das conquistas dos anos sessenta e setenta na Itália. Vislumbram assim, outras formas de lidar com os princípios do livro, que podem deixá-lo ainda atual, lançando-se mão da utilização de novas redes para o aumento da democracia cognitiva.

O prefácio também aborda um método, implícito nesta obra, mas que foi muito importante nas pesquisas do modelo operário italiano. Elas chamam a atenção sobre o fato das Instruções ao sósia se constituírem em uma metodologia essencial, para todos os grupos envolvidos, tanto na aprendizagem de uma epistemologia crítica, por meio da comparação e conscientização do potencial e dos limites de cada uma das linguagens, quanto no reconhecimento das diferentes formas de acumulação de saberes.

2. Perspectivas atuais no contexto brasileiro

O anexo, contendo capítulos escritos por pesquisadores da Fiocruz e seus colaboradores, faz emergir a influência do livro e de toda a experiência do MOI nos seus estudos, pesquisa e intervenções. Os escritos mostram como esse legado tem sido utilizado de forma criativa pelos autores, útil tanto nos enfrentamentos do contexto contemporâneo - que aporta várias diferenças com relação à década de setenta do século XX -, como para ressaltar as especificidades da formação social brasileira.

Pode-se identificar neste conjunto de textos quatro vertentes que indicamos à seguir.

2.1. Perspectivas epistemológicas e contribuições de método

O primeiro texto, de Jussara Brito e Milton Athayde, traz o encontro de três patrimônios: o do MOI, o da Ergologia e o da Educação Popular no Brasil. A partir da retomada crítica que Schwartz faz da Comunidade Científica Ampliada, desenvolvendo o Dispositivo Dinâmico de três Polos - DD3P, estes autores propuseram no Brasil a criação de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa-Intervenção. Esta proposta visa, como os dispositivos italiano e francês, propiciar as condições para uma colaboração comum entre trabalhadores e pesquisadores objetivando transformação-compreensão das situações de trabalho e luta e construção pela sua saúde.

Nela destacam-se alguns elementos importantes, como a utilização da “pedagogia da pergunta”, de Paulo Freire e Antonio Faundez, que busca um processo de formação direcionado à produção de questões acerca da realidade e das estratégias para as mudanças. Na concepção de dialogia que aplicam, buscam subsídio em Freire e em Bakhtin, parceria que permite questionar a vida no trabalho e fora dele. Os autores elencam outras influências oriundas do Movimento de Cultura e Educação Popular que vão do teatro ao cinema, passando pela música. Estão atentos também para os desenvolvimentos das ciências da cognição, que não veem a atividade cognitiva limitada ao cérebro, e sim envolvendo todo o corpo e a estrutura do vivente. Questão que retorna à Oddone e à linguagem, pois a experiência é distinta do que se explica sobre ela.

Já no segundo texto, Letícia Pessoa Masson, Bernardo Suprani, Mary Yale Neves e Hélder Pordeus Muniz, enfocam como o legado do MOI auxiliou a criar uma ferramenta de pesquisa coletiva denominada “Encontros sobre o trabalho”, que foi aplicada em três diferentes situações do serviço público: junto aos profissionais de educação, com auxiliares de enfermagem de uma Unidade Neonatal e com os trabalhadores de um banco público de desenvolvimento. Os exemplos apontam que uma parte da luta política consiste em poder definir uma gestão coletiva do trabalho a partir da atividade.

O foco no setor público deve-se a que o contexto de luta dos trabalhadores de serviços públicos pela melhoria das condições e da organização do seu trabalho, bem como a luta dos usuários pelo acesso e pela qualidade dos serviços, acontece em um país que nunca teve um estado de bem-estar social e onde as políticas públicas duramente conquistadas são constantemente atacadas. Uma das formas de gerenciamento que vem desmontando estes serviços se dá pela redução crescente do financiamento público, a outra forma é a que cobra eficiência no uso dos poucos recursos, induzindo ao cumprimento de indicadores quantitativos que não dão conta das fontes reais de eficácia desses serviços.

O terceiro texto, de Simone Santos Oliveira e de Sérgio Portella, aborda a experiência de construção de cartografias sociais numa colaboração de pesquisadores com comunidades atingidas por desastres. A intenção é a produção de uma autogestão coletiva de seu meio que possa lidar com as consequências econômicas, sociais e políticas desses eventos, a partir de seus próprios interesses e saberes.

Os autores defendem a junção da contribuição da perspectiva ergológica com a Ecologia de saberes, proposta por Boaventura de Sousa Santos, e trazem a discussão da importância de fazer a crítica ao colonialismo e ressaltar a relevância dos saberes dos povos que lutam pela sua emancipação. Da mesma maneira que os criadores do MOI levam sua experiência de cartografia de riscos, realizada primeiramente nas fábricas, para os locais de moradia e para os distritos, os autores propõem que essa construção de mapas seja baseada nos saberes da população. A experiência do MOI vai, inclusive, influenciar a produção de aplicativos digitais que podem ser utilizados nos telefones móveis incorporando as redes virtuais como instrumento de intervenção.

O quarto texto também traz a contribuição da Ecologia de saberes, da Educação Popular freiriana e da influência da Comunidade Científica Ampliada, e apresenta um desafio importante, que é o de articulação com moradores da favela de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro. Fátima Pivetta, Marcelo Firpo Porto e Marize Bastos da Cunha destacam como a violenta história da colonização no Brasil gerou uma grande massa de excluídos, provocando o que Boaventura de Souza Santos denominou como uma “linha abissal”, que separa os que tem minimamente direitos daqueles a quem são negados os direitos constitucionais mais básicos como saúde, educação, segurança etc.

Os desafios apontados pelo MOI na busca de uma interface com trabalhadores em seus locais de trabalho e de moradia são mais uma vez aqui ampliados, já que, como bem apontou o sociólogo Clóvis Moura, 2019), além da violência do uso do trabalho escravo no Brasil é importante lembrar que depois da abolição jurídica da escravatura a imensa massa de pessoas negras foi abandonada a própria sorte e condenada a fazer aqueles trabalhos com menos segurança e direitos que os trabalhadores brancos inseridos no trabalho formal.

Essa “linha abissal” dificulta a cooperação e exige que os profissionais preocupados com a saúde pública admitam, primeiramente, sua imensa ignorância sobre as condições de vida dessa população e de suas estratégias de resistência, e em seguida, que criem condições para construir um trabalho em comum com ela. Isso exige aprendizado sobre seus processos de adoecimento e luta pela saúde e, ao mesmo tempo, a criação de suporte para a ampliação dessas lutas.

Os autores operacionalizaram um “Dispositivo Comunidades Ampliadas de Pesquisa-ação” que envolve jovens da comunidade para fazerem formação de iniciação científica na Fiocruz, pessoas da comunidade que conhecem bem a sua história e pessoas que fazem parte de movimentos sociais. Esses grupos produzem mapas com a história das pessoas e dos lugares, mapas sobre a saúde e outros temas. Esta experiência foi levada para outras favelas.

2.2. A mudança na abordagem sobre os riscos

O quinto texto, de Ariane Leites Larentis, Leandro Vargas Barreto de Carvalho, Eline Simões Gonçalves e Isabele Campos Costa-Amaral, aborda a inversão da visão dos riscos proposta por Oddone e mostra a atualidade dos ensinamentos do livro no campo da avaliação dos riscos toxicológicos. Se apoiando nos ensinamentos do MOI, as autoras e o autor comentam as limitações do modelo atualmente em vigor (abordagem das Normas Regulamentadoras) e criticam os “limites de tolerância” para riscos químicos no ambiente. Segundo eles, a exposição aos riscos químicos, mesmo abaixo dos limites continua prejudicando a saúde dos operários. Isso porque em situação de trabalho os riscos estão em sinergia, ampliando os efeitos uns dos outros. Para esta abordagem crítica, é necessária uma melhor avaliação dos efeitos desses riscos no adoecimento das pessoas. Esta visão defende que a toxicologia incorpore o paradigma das ciências sociais de produção de conhecimento, pois não se pode avaliar os riscos sem compreender como e por que os trabalhadores são submetidos a eles.

2.3. Perspectivas sobre a “não delegação”

A noção de “não delegação” presente na relação com os sindicatos é apresentada no sexto capítulo do anexo por José Augusto Pina, Leonardo Dresch Eberhardt, Eduardo Navarro Stotz, Bruno Souza Bechara Maxta, Thaís Vieira Esteves e Elaine Cristina Vieira de Magalhães. O texto aborda principalmente a dificuldade de organização nos locais de trabalho e atribui a isso o atrelamento do sindicalismo brasileiro ao Estado, o que vem dificultando a luta emancipatória da classe trabalhadora.

Apesar deste enfoque, porém, e essa é sua maior riqueza, o texto mostra experiências de lutas pela emancipação que ajudaram a construir grandes greves. Tais experiências acontecem em um período de rebeldia da luta operária contra a intensificação da exploração do trabalho nos anos de ditadura militar.

Enquanto leitores deste texto, destacamos que a estratégia do MOI envolvia uma formação de delegados sindicais na empresa e não uma separação entre sindicato e a luta no interior da fábrica. A riqueza e singularidade de tal estratégia é que esses delegados não executam as ordens da direção do sindicato, mas eles traziam para ela a realidade dos trabalhadores, de suas lutas, de sua experiência, possibilitando guiar esta direção para uma luta associada à sua base.

No que tange à realidade brasileira, o importante é salientar que todas as vezes que o movimento operário busca construir uma autonomia ao engessamento da estrutura sindical há uma violenta retaliação das empresas.

O sétimo texto, de Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos e Renato José Bonfatti, vai abordar como as proposições do MOI encontraram no Brasil dos anos oitenta um terreno fértil para germinar a semente de múltiplas ações voltadas para o campo da saúde do trabalhador, ações estas que reforçam a perspectiva de “não delegação”. A partir do relato da abertura política e do surgimento do movimento de “Reforma sanitária brasileira”, os autores vão explicar vários fatos históricos que ilustram como a saúde dos trabalhadores passa a ser vista como uma questão de saúde pública.

Um dos fatos históricos é a construção do Centro de Estudos sobre Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) que até hoje é uma referência acadêmica importante em pesquisas e intervenções nessa área e cujas formações são buscadas por vários profissionais-pesquisadores de todo o Brasil.

Outro fato abordado é a constituição de um dispositivo que reúne forças de profissionais de saúde que trabalham no Estado do Rio de Janeiro, sindicalistas e pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa e que foi denominado Conselho Estadual de Saúde do Trabalhador/RJ (Consest). Nesse espaço público, trabalhadores, profissionais de saúde e pesquisadores colaboraram para conhecer e transformar diversas situações de trabalho no Rio de Janeiro, parceria que contribuiu tanto para a intervenção, como para a produção de conhecimento e formação de todos os envolvidos.

Anos depois, os participantes dessa experiência frutífera se rearticulam com novos companheiros e criam, em 2015, o Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito, que novamente, reúne trabalhadores, pesquisadores e profissionais de saúde, em espaços de debates. Utilizam a metodologia dos círculos de cultura de Paulo Freire, em que se privilegia a postura compartilhada e dialogada, de respeito a todos os saberes e busca de estratégias de intervenção.

2.4. O resgate da visão gramsciana

Por fim, o oitavo texto, após um aporte sobre a historicidade do período de Gramsci (1916-20) e do MOI (anos 1960/70), resgata alguns temas abordados por Gramsci no âmbito da formação dos trabalhadores e de sua emancipação, tais como trabalho como princípio educativo, conselhos de fábrica, intelectuais orgânicos, coletivos de trabalho e círculos de cultura, e demonstra como o MOI os retoma em sua proposta.

Kátia Reis de Souza, Maria Blandina Marques dos Santos, Regina Helena Simões Barbosa, Gideon Borges dos Santos e André Luis de Oliveira Mendonça encerram o anexo com algumas considerações sobre o cenário “político-econômico avassalador” do início da década 2020 no Brasil, enfatizando a necessidade de atualização e experimentação dos aspectos pedagógicos das contribuições gramscianas e do MOI.

3. Um diálogo orquestrado sob forma de posfácio

No posfácio, Yves Schwartz produz o diálogo entre os diferentes capítulos do anexo, propondo uma análise original da reapropriação brasileira da herança de Gramsci e do MOI. Ele enfatiza questões importantes como: dada uma conjuntura tão diferente, de que modo as contribuições do MOI seriam adequadas para a intervenção na transformação social? O autor faz uma brilhante inversão de sentido ao alertar que, o que poderia ser considerado uma fragilidade - ou seja, a ausência de um grande movimento sindical organizado como o da a década de sessenta e a presença de uma classe de trabalhadores na informalidade, fora dos vínculos legais de trabalho e abandonada pelas políticas públicas -, se transformou em uma potencialidade. Isso porque se criaram iniciativas originais de produção de conhecimento e intervenção como a educação popular, o teatro do oprimido, a “comunhão da libertação” (teologia), dentre outras.

As lutas para constituir serviços públicos, formas de organização econômicas com bases na experiência e com referência na atividade concreta das pessoas, vieram acompanhadas de encontros entre diversos movimentos sociais, apropriação singular do livro-manual por intelectuais e criação de novas ferramentas.

Uma outra questão abordada por Schwartz é como a contribuição de Gramsci, bastante presente nos textos, foi efetiva e não apenas mero repertório de uma apropriação acrítica de conhecimento produzido em outro contexto. Sua interpretação é a de que no contexto atual há uma prática de contra-hegemonia epistemológica que intervém para mudar as relações de saber-poder, usando os encontros para produzir, em colaboração, uma gestão coletiva do trabalho e da vida.

Referencias bibliográficas

Moura, C. (2019). A sociologia do negro brasileiro.2ª ed. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]

Oddone, I., Marri, G., Gloria, S., Briante, G.,. Chiattella, M., & Re, A. (2020). Ambiente de Trabalho: A luta dos trabalhadores pela saúde, 2ª ed, ampliada. São Paulo, Hucitec Editora. [ Links ]

Recebido: 01 de Abril de 2022; Aceito: 18 de Junho de 2022

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