1. Introdução - Trabalho e alto risco na indústria do petróleo
Na exploração e produção (E&P) de óleo e gás, os trabalhadores estão expostos a uma extensa gama de riscos à sua saúde e segurança, como veremos adiante, associados às condições e à organização do trabalho típicas deste segmento da indústria petrolífera. Nosso objetivo, neste artigo1, é analisar como tal exposição tende a se potencializar em função da precarização e da intensificação do trabalho presentes em situações ligadas à perfuração de poços, atividade central no segmento de E&P e considerada de alto risco, seja em terra (onshore) ou no mar (offshore). Nossa análise terá como foco o prolongamento das jornadas de trabalho - que, em determinadas circunstâncias, atinge uma extrapolação desmedida - e alguns dos elementos ligados ao ambiente e aos instrumentos de trabalho, entremeados pelos demais fatores de cunho organizacional.
Além das possíveis consequências nefastas para os trabalhadores, constata-se que algumas formas de gestão adotadas por empresas que atuam nesta etapa do processo produtivo contribuem para que se configure uma inversão da perspectiva ergonômica, à medida em que se impõe a adaptação/sujeição dos trabalhadores a condições de extrema adversidade, nas quais situações-limite são naturalizadas, ao invés de se adotarem modelos de gestão compatíveis com os preceitos elementares da ergonomia e da fisiologia humana.
De todo modo, é importante ter clareza que, dadas as características da indústria petrolífera, o risco é um elemento intrínseco ao setor, a despeito de seu segmento (exploração & produção, transporte, refino, comercialização e distribuição), embora sob modalidades e graus distintos. (Ferreira e Iguti 2003), por exemplo, ao analisarem o trabalho dos petroleiros em refinarias e terminais marítimos, destacam quatro características principais acerca de sua atividade laboral: a complexidade, o caráter contínuo, a dimensão coletiva e a periculosidade, demarcando que, se há um consenso entre todos os que atuam na indústria do petróleo, é a noção de perigo.
Para (Sevá Filho 2013), também é possível afirmar que o risco é inerente e bastante característico desse setor, com seus sistemas “sociotécnicos complexos” (Perrow, 2011), verdadeiras materializações de tecnologias de alto risco. São riscos intrínsecos e variados, exaustivamente listados por Rundmo (1996), e cada vez mais coletivos, pois os efeitos deletérios da atividade petrolífera podem se ampliar, ocasionando acidentes maiores ou ampliados (Freitas et al., 2001; Llory, 2001). Nesses eventos, dada sua magnitude de danos, é possível atingir, além dos trabalhadores mais diretamente envolvidos no processo, os funcionários administrativos e até mesmo a população habitante das regiões circunvizinhas, como sucedeu com a refinaria Texas City, nos EUA, em 2005: 15 mortos e 180 feridos, prejuízos de US$ 1,5 bilhão, construções danificadas em um perímetro de 1.200 m em torno da refinaria e 43.000 pessoas retidas em suas casas (Le Coze, 2016; Llory & Montmayeul, 2014). Um exemplo brasileiro marcante foi o de Vila Socó (Cubatão/SP), quando, em 1984, um vazamento de gasolina em um oleoduto da Petrobras - que ligava a Refinaria Presidente Bernardes ao Terminal de Alemoa - gerou um incêndio que devastou parte da referida vila, causando 93 mortes, segundo os números oficiais (CETESB, 2022).
No que se refere à atividade em plataformas offshore, às quatro características apontadas por (Ferreira e Iguti 2003), acrescentaríamos mais duas, bastante peculiares: os regimes de confinamento e isolamento (Figueiredo, 2016; Leite, 2009). Confinamento, porque, durante 14 dias seguidos, ao término do turno diário de 12 horas (de dia ou à noite), o local de trabalho passa a ser também o local de moradia. Os trabalhadores ficam, assim, expostos ao risco 24 horas por dia, ao longo de todo o período de permanência nas plataformas (também conhecido como período de embarque). Em caráter mais recente, isto inclui o risco de infeção por doenças como a Covid-19, ainda não inteiramente controlada no Brasil, ao menos até o momento em que finalizamos este texto, e que vem sendo estudada em tese de doutoramento por um dos autores deste artigo (mas que não será objeto de aprofundamento neste espaço). A outra característica acrescentada é o isolamento, porque as plataformas estão situadas em alto-mar, dificultando não só a remoção de pessoas quando há anomalias que demandem um atendimento em terra, mas também o abandono do local por toda a tripulação, na hipótese de ocorrência de acidentes de maior gravidade, como se deu após a explosão no navio-plataforma Cidade de São Mateus, em 2015, também no Brasil, e que resultou em 9 mortos e 26 feridos (Vinnem, 2018).
Portanto, os fatores associados ao confinamento e ao isolamento, próprios do trabalho offshore, terminam funcionando como agravantes do risco presente na atividade daqueles que lidam com o petróleo, elevando a “densidade” desse trabalho, com desdobramentos perigosos no registro da saúde mental (Leite; 2009; Alvarez et al., 2010; Dias et al., 2016). Note-se que, visando contemplar algumas dessas características, foi publicada no Brasil, em dezembro de 2018, uma Norma Regulamentadora (a NR-37) intitulada “Segurança e Saúde em Plataformas de Petróleo”, após longo processo e esforço para convertê-la de anexo II da NR-30 (Segurança e Saúde no Trabalho Aquaviário) em norma específica do trabalho em plataformas.
No que concerne, mais especificamente, à atividade de perfuração, é importante sublinhar a publicação, no ano de 2009, do relatório Accident Statistics for Offshore Units on the United Kingdom Continental Shelf. Ao tratar do contexto britânico em um período de quase 20 anos (1990-2007), esse documento apontou tal atividade como detentora dos piores indicadores de acidentes para o segmento das plataformas flutuantes (móveis). Por sua vez, França et al. (2020) assinalam que, ao longo de sua trajetória até o período atual, os riscos específicos de tais atividades (de perfuração) elevaram bastante seu potencial de acarretar danos às pessoas, ao meio ambiente e à sustentabilidade corporativa. O caso de Sidoarjo, na Indonésia, embora de caráter excepcional, corrobora o alcance das consequências eventualmente destrutivas, de enormes proporções, ocasionadas por atividades de perfuração petrolífera. Esse acidente sobreveio em 2006 e desencadeou um vulcão de lama que, desde então, jorra de maneira ininterrupta (Suprapto et al., 2017).
Frente a esse quadro, que faz lembrar a todo o momento a possibilidade de ocorrência de um incidente ou acidente, por vezes de uma catástrofe, entende-se a presença constante de certa dose de “tensão nervosa”, indício de um sofrimento de ordem psíquica, tal como observa (Dejours 1993) ao fazer menção ao discurso dos trabalhadores da indústria petroquímica francesa. Compreende-se também o papel crucial que operam os sistemas defensivos aí engendrados, sem os quais seria insuportável a permanência em tais ambientes, visto que estes permitem aos trabalhadores mitigar a representação que possuem dos riscos e elaborar informalmente regras que ajudarão a amalgamar sua coesão enquanto coletivo, fator que opera a favor da confiabilidade e segurança do processo (Dejours 2015). Constata-se, assim, mais um elemento nefasto associado à rotatividade verificada entre os terceirizados, para além da exposição maior a acidentes e às formas de precarização (Guida et al., 2020a, (Guida et al., 2020b).
O contexto delineado até aqui se torna ainda mais crítico quando adicionamos, aos fatores de risco mais nítidos, aspectos de cunho organizacional que influenciam decisões e ações em casos específicos (Beltran et al., 2018; Dien et al., 2012; Figueiredo et al., 2018). Esta criticidade pode assumir feições potencialmente mais nocivas em situações nas quais as empresas se valem de formas de gestão pautadas por metas agressivas, com efeitos sensíveis, especialmente, no ramo de perfuração, atividade que, por ser muito custosa, já sofre com pressões de diversas naturezas para que os poços entrem em fase produtiva. Isto porque, em tais circunstâncias, no bojo das medidas a serem implementadas, o que se constata, historicamente, é que as empresas lançam mão de um velho e conhecido artifício, o rebaixamento dos custos do trabalho, não raro, sob um formato que, em maior ou menor medida, resulta em precarização e intensificação do trabalho realizado no poço, e que pode se traduzir em adoecimento e acidentes graves, inclusive de grande magnitude (Figueiredo, 2016; Le Coze, 2016; Llory & Montmayeul, 2014), como veremos ao longo deste texto.
2. Referencial teórico-metodológico
O presente texto consiste em mais uma de nossas produções no âmbito do projeto de pesquisa “Trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera”, com ênfase no setor offshore e coordenado por dois de seus autores. O referencial teórico-metodológico que o norteia, desde seu início (em fins de 2002), tem privilegiado os materiais da ergonomia da atividade (Daniellou, 2004; Falzon; 2016; Teiger & Lacomblez, 2013) e da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2012, (Dejours, 2015). Cabe salientar ainda nossa busca por uma dinâmica de condução sinérgica da relação entre os saberes das ciências (com estatuto científico) e aqueles ligados à experiência dos trabalhadores (de cunho prático), pertinentes à análise de situações de trabalho, em consonância com as proposições da perspectiva ergológica (Brito & Athayde, 2020; Schwartz & Durrive, 2021). Esta postura, que rege a condução de nossa pesquisa, está presente na realização das entrevistas dialógicas, principal método mobilizado no esforço de análise que conduziu ao texto. Ao longo da trajetória do referido Projeto, esse enfoque vem colocando-nos diante do desafio de estabelecer maior aproximação com a atividade, de modo a apreender sua dinâmica no interior das mais distintas situações de trabalho, porém cientes de que tal apreensão ocorre de modo sempre parcial, lacunar.
Considerando-se ainda as especificidades e características do contexto investigado, pode-se recorrer a contribuições oriundas de outros referenciais, tal como, a título de exemplificação, em determinadas questões relacionadas ao ciclo vigília-sono e ao trabalho em turnos/noturno abordadas no Item 4.
Tendo em vista a centralidade da área de perfuração de poços no setor petrolífero, em dado momento, detivemo-nos à análise do material empírico mais diretamente voltado para tal situação, sobretudo as entrevistas com dez profissionais (cinco homens e cinco mulheres) dessa área. Procuramos tratar este material com um olhar pertinente e atento à dialogia, onde a Clínica da Atividade também mostrou-se uma ferramenta valiosa (Clot, 2010; Faïta, 2005). Isso porque a atividade dialógica, tal como é apreendida por essa abordagem, visa oferecer recursos para viabilizar a discussão e a análise dos componentes subentendidos da atividade. Ou seja, para além daquilo que se encontra no registro do que foi realizado, e que teria permanecido em uma espécie de instância latente, de modo a desnaturalizar o visível/observável que tende a figurar como o único caminho possível (Alvarez et al., 2015).
Dentre os entrevistados, um era funcionário da Petrobras e os demais, vinculados às - ou com passagem nas - três maiores empresas multinacionais do ramo de perfuração (seis da Schlumberger, um da Halliburton e dois da Baker Hughes). A interação com esses trabalhadores deu-se ao longo do Projeto citado anteriormente por intermédio de contatos estabelecidos nas esferas sindical e acadêmica. Com os profissionais da Schlumberger, tais interlocuções ocorrerram em 2004, 2008 (em duas ocasiões), 2013, 2016 e 2022; com o da Halliburton, em 2006, 2016 e 2020; com os dois da Baker, em 2015; e, com o da Petrobras, em 2020.
Levando em conta, porém, o teor do conteúdo resultante e o espaço de que dispomos para a elaboração deste texto, privilegiamos relatos de quatro dessas entrevistas, realizadas com um engenheiro (E1, em 2022), uma engenheira (E2, em 2016), uma técnica (T1, em 2008) e um outro engenheiro (E3, em 2004) ligados à empresa Schlumberger. O primeiro apenas com experiência em tarefas onshore e os demais com experiências tanto onshore como offshore. Os pesquisadores serão representados pela letra P.
3. O “novo” mundo do petróleo e as “velhas” tendências precarizantes do mundo do trabalho: uma breve contextualização
Para alguns analistas, dado o alcance das mudanças em curso nos primeiros meses posteriores a março de 2020, era possível afirmar que também o “mundo do petróleo” não seria mais o mesmo após a pandemia de Covid-19. Embora esse debate dê margem a muita controvérsia e não tenhamos a pretensão de polemizar com os especialistas no assunto, é indubitável que, em face do teor e da magnitude da crise que assolou o planeta, o setor petrolífero não teria como atravessá-la sem sobressaltos. Alguns acontecimentos tiveram imensa repercussão, como é o caso do barril de petróleo West Texas Intermediate (WTI - que serve de referência para os preços nos EUA) sendo vendido a preços negativos, em abril de 2020. Um movimento diametralmente oposto ao verificado neste começo de 2022, com a eclosão do conflito bélico na Ucrânia, e a simultânea disparada nos preços do barril, atingindo patamares próximos à conjuntura subsequente ao início da crise global de 2008.
Percebe-se, entretanto, que a crise do setor que se propagou e se aprofundou pelo mundo sob a conjuntura pandêmica possui contornos diferenciados, se voltamos nosso olhar para o panorama brasileiro. Ela irrompe sem termos totalmente superado as consequências da grave instabilidade político-econômica que se instaurou no país em meados da década passada, tendo em seu epicentro a Petrobras e diversas empresas com atuação expressiva no setor petrolífero brasileiro, duramente atingido pela queda no preço das commodities no mercado internacional e pelo avanço da operação Lava Jato. Iniciada em 2014, é considerada a maior operação de combate à corrupção (com ações, no mínimo, bastante controversas, ou até mesmo escusas), envolvendo políticos e corporações públicas e privadas do país.
O caráter das consequências daí advindas parece reproduzir algumas das “velhas” tendências precarizantes do mundo do trabalho. Antes mesmo da reviravolta provocada pela Covid-19 - tema de extrema gravidade -, já estavam em andamento mudanças como a redução de efetivo operacional de forma pouco criteriosa em algumas unidades da Petrobras, o que tende a acarretar sobrecarga e intensificação do trabalho. E se, anteriormente, esta empresa já terceirizava determinadas atividades que, em nosso entendimento, poderiam ser consideradas atividades-fim, como a perfuração de poços, com a aprovação da Lei 13.429/2017 (Lei das Terceirizações) este problema deixou de existir. Por meio da nova regulamentação, abriu-se espaço para uma espécie de “terceirização sem limites”, sujeitando os trabalhadores a “mais precarização e riscos de morte” (Druck, 2016). Vejamos, por exemplo, o caso de uma grande empresa brasileira de petróleo e gás estudada por Guida et al. 2020a, Guida et al. 2020b). Se tomarmos como base a taxa de mortalidade de acidentes de trabalho, por ano e vínculo empregatício (trabalhadores terceirizados ou próprios), no período compreendido entre 2004 e 2016, pode-se constatar como o quadro é claramente desfavorável para os terceirizados (ver Figura 1).
A propósito, cabe frisar que, não obstante a terceirização esteja disseminada há décadas no Sistema Petrobras, ela não se configura como uma inovação organizacional que emerge no bojo da reestruturação produtiva no Brasil. Em verdade, ela deve ser encarada como um fenômeno antigo na indústria do petróleo. No decorrer do século XX, engendrou-se em torno das grandes companhias de petróleo (as grandes operadoras) uma rede de subcontratação de equipamentos, produtos e serviços oferecidos por terceiros, firmas especializadas (as parapetroleiras) que se constituíram para difundir as inovações de seus fundadores, conforme assinala (Dutra 2019). No rol dos grupos transnacionais de maior projeção, ele destaca três no ramo de perfuração: Halliburton, Baker Hughes e Schlumberger. Os dois primeiros são de origem estadunidense e o terceiro, de origem francesa. Dentre estas empresas, a última ocupa a liderança como maior fornecedora mundial de produtos e serviços do mercado na área de exploração e produção. Correu o risco de ter sua primazia superada, dado que, em 2014, a Halliburton planejava fundir-se com a Baker, numa transação envolvendo US$ 35 bilhões, para se ter uma ideia dos valores “estratosféricos” que circulam neste setor. Uma vez que a operação não foi concretizada, gerou-se uma multa bilionária (de US$ 3,5 bilhões!) para a Halliburton. A condição de líder permanece, assim, a cargo da Schlumberger.
Acrescente-se, na esteira da síntese de (Colombini 2020), que é vital ter em mira que o conjunto das petroleiras nos diversos países produtores, sejam as empresas estatais ou aquelas formadas por consórcios financeiros, necessitam contratar as fornecedoras de máquinas e equipamentos tecnológicos específicos, tanto para serviços de prospecção quanto de extração. Dessa forma, ainda que as grandes petroleiras (operadoras) pertençam ao Estado produtor, as gigantes parapetroleiras são detentoras de contratos bilionários e com imenso poder de controle e influência sobre a cadeia produtiva. Por outro lado, isso não significa uma diminuição da relevância geopolítica das grandes operadoras, mas tão somente a necessidade de compreendê-la em articulação com as parapetroleiras.
Note-se ainda que os atrasos no ritmo de andamento dos serviços que, porventura, ocorram na etapa de perfuração implicam em paralisação do aporte de pessoas e maquinário mobilizado pelas outras empresas em torno do poço, aludindo à questão da pressão temporal típica em atividades dessa natureza. Pressão esta que também é fruto de cifras elevadas, já que, dependendo das características da operação, o custo diário de uma sonda de perfuração pode atingir a faixa de US$ 1 milhão.
Esta breve caracterização do contexto de nosso objeto de análise estaria incompleta se também não levássemos em conta a importância do número expressivo de acidentes no segmento de exploração & produção (E&P), no qual se insere a atividade de perfuração. Na esfera do grupo corporativo ao qual vincula-se a empresa brasileira de petróleo e gás já mencionada, o E&P concentrava, entre 2001 e 2016, mais da metade dos acidentes fatais, conforme sinalizado na Figura 2.
4. Precarização e intensificação do trabalho na perfuração de poços: em meio a uma miríade de fatores de risco
No conteúdo a seguir, calcado nos materiais produzidos ao longo do já referenciado Projeto, o amplo espectro de agentes potencialmente nocivos presentes nas situações retratadas tornará evidente que não se trata de hipérbole a expressão “miríade de fatores de risco”, empregada no subtítulo deste item. Dentre aqueles referentes à área de perfuração de poços, podemos citar alguns dos principais relatados pelos profissionais escutados: levantamento de peso, radiações, acidentes ligados às pressões geofísicas, explosões, blowouts (perda de controle operacional de um poço e/ou da plataforma), pressões hierárquicas, turnos longos, trabalho noturno. Eles fazem com que os indivíduos tenham que lidar com seus limites fisiológicos e mentais, em ambiente de forte exigência. Além da exposição a esta multiplicidade de fatores de risco, os trabalhadores também estão expostos a péssimas condições de trabalho (instalações sanitárias e alimentação precárias, ausência de locais para descanso, exposição às intempéries meteorológicas, isolamento).
Cabe sublinhar que, nas operações em campo, a equipe de perfuração estará submetida, com frequência, ao isolamento (caso da atividade onshore), e, adicionalmente, ao regime de embarque/confinamento (em situação offshore). Nesse último caso, em função da pandemia, teve-se um arranjo muito peculiar, pois se, em condições “normais”, após o desembarque, havia a possibilidade de desfrutar do convívio social sem restrições, as circunstâncias do momento pandêmico mostraram-se inteiramente distintas. A vivência do confinamento (sobretudo, antes do advento das vacinas), ainda que de modo diferenciado, era estendida ao período dedicado ao descanso, abrindo espaço, em certa medida, para uma espécie de “reverberação” do sofrimento psíquico vivenciado no local de trabalho, em que a sociabilidade para além deste está interditada ou limita-se ao registro virtual.
A miríade de fatores de risco presentes no ramo de perfuração pode se manifestar sob diferentes configurações. Neste espaço, privilegiamos (i) as jornadas de trabalho prolongadas e (ii) alguns dos elementos ligados ao ambiente e aos instrumentos de trabalho, entremeados pelos demais fatores de cunho organizacional. Tal subdivisão, vale salientar, não deve obscurecer a combinação sinérgica aí presente, que pode ter efeitos imprevisíveis, principalmente em jornadas longas.
No que tange à jornada de trabalho, essa atividade em campo, seja em terra ou no mar, transcorre de modo contínuo, ao longo de 24 h, implicando na adoção dos chamados turnos ininterruptos de revezamento (TIR), que, na indústria petrolífera, geralmente têm duração de 12 horas. E, mesmo que o profissional esteja alocado no escritório, se a função dele estiver vinculada a operações em campo, ele estará em stand by para algum imprevisto. Como assinala a engenheira da Schlumberger entrevistada:
E2: Este imprevisto pode acontecer, literalmente, em qualquer momento: feriado, de madrugada, festa de fim de ano... A operação de petróleo não é uma atividade normal, uma rotina de carga horária de 40 h semanais. Não é. É 24 h por dia, 7 dias por semana.
O esquema de trabalho prescrito para as equipes que atuam offshore compreende 14 dias embarcados, em que duas equipes se revezam em turnos de 12 horas, 7 dias no turno da manhã (7 h às 19 h) e os 7 restantes no turno da noite (19 h às 7 h). São fartamente documentados os riscos à saúde e segurança decorrentes do trabalho noturno, devido à adaptação do organismo ao sono noturno e vigília de dia (Alvarez et al., 2010). A fadiga resulta da falta de sincronia (o cérebro prepara o organismo para dormir, mas o trabalho demanda concentração total) e da privação acumulada de sono durante uma sequência de noites de trabalho (Ross, 2009). Como observam (Cohen et al. 2010), a perda crônica de sono reduz o desempenho, com possíveis consequências à saúde e segurança, já que a capacidade de sustentar a atenção é um recurso finito que diminui progressivamente ao longo das horas de vigília, o que leva a erros evitáveis, acidentes e lesões, especialmente em ambientes de alto risco (Rajaratnam et al., 2013).
Se turnos de 12 horas por 7 noites implicam em alto risco, cabe destacar que a Schlumberger costuma prever o envio de apenas uma equipe para campo, normalmente formada por um engenheiro, um operador chefe e dois operadores assistentes (composição básica). Portanto, sob tal injunção, não há como viabilizar o revezamento, de modo que seus trabalhadores se veem obrigados a realizar jornadas que ultrapassam o patamar de 12 h. E, não raro, exercem jornadas que podem atingir 24, 48, 72 h ou até mais, em um sinal explícito de precarização das condições de trabalho.
É crucial frisar ainda que esse tipo de conformação (apenas uma equipe em campo) pode ser agravado pela ausência de dias de descanso (em terra ou no mar), mesmo após o tradicional período de 14 dias ininterruptos, que serve de referência ao trabalho embarcado. Tal situação nos remete à “aventura” descrita por LeVine (2007) acerca da exploração de poços em Sunkar, no Cazaquistão, onde “a vida dos petroleiros era medida em segmentos de 28 dias”. As equipes atuavam em campo sem revezamento e, em tese, deveriam atuar 28 dias, 24 horas por dia, sem previsão de descanso. Há também situações que beiram o inverosímil, como a descrita a seguir pelo engenheiro E3:
E3: Trabalha 24 horas por dia, a qualquer hora do dia, 7 dias por semana e tem um regime de descanso que, sendo internacional, eram 4 dias de férias por mês e 4 dias de descanso por mês, mas não necessariamente no mesmo mês [que vão se acumulando ao longo do tempo]. Eu cheguei a ficar 4 meses trabalhando direto, sem descansar nenhum dia, trabalhando direto.
Como fazer, então, para dar conta dessa brutal extrapolação dos limites da referência da jornada (de 12 h) associada à ausência de previsão concreta dos dias de descanso (de não trabalho)? Além do período de treinamento, realizado em locais isolados, quando os trabalhadores passam por avaliações diárias e são solicitados a desenvolver projetos que requerem gradativamente um número de horas cada vez maior e ininterrupto, para municiar seus funcionários da forma que julga mais apropriada ao enfrentamento de tais condições, há cursos em que são ministrados ensinamentos diversos. Um exemplo diz respeito ao desempenho dos indivíduos após cochilos de durações variadas e sobre a alteração do nível de alerta, segundo a hora do dia e o número de noites sem dormir, como se observa nos Gráficos 3 e nos 4, extraídos do relatório Schlumberger: managing a 24-hour lifestyle (PTAC, 2001)). Apesar da limitação quanto a informações precisas sobre como e por que foram gerados, amplitude da amostra e período de coleta dos dados, os gráficos sugerem uma tentativa, por parte da empresa, de garantir uma dedicação 24/7 de seus funcionários (24 horas por dia/7 dias por semana). Na fala da engenheira E2:
E2: Às vezes, realmente, você está muito cansado, mas você precisa continuar. Nós tínhamos curso para isso, tinha preparação para isso... Eu acho mais importante para o campo, porque, no campo, quando começa a dar problema, você não tem como parar. Você tem que trabalhar, mas você ainda tem que estar com a cabeça forte. Então, é um treinamento mais de, se você estiver muito cansado, você tira “snaps”, assim, 10 minutos. Você descansa, mas só para você parar por um tempo. Depois você acorda. Tirar curtos descansos para você conseguir levar aquilo ali por um tempo mais prolongado. Não que aquilo vá ser o seu tempo de descanso. Você vai continuar cansado... Porque chega uma hora, não sei se vocês já passaram muitos dias acordados, mas chega uma hora que você fica mais lento, tem que esperar mais para pensar porque a cabeça não aguenta. Então, esses intervalos curtos de sono são para tentar dar uma solução de curto prazo para um problema que você tenha. Mas não é uma substituição do seu sono. Você tem que dormir direito. Mas, às vezes, é para você não parar uma sonda, ou, às vezes, alguma coisa muito séria aconteceu que pode pôr em risco outras pessoas...
Por vezes, a alternativa para lidar com as vicissitudes da fadiga extrema lança mão de recursos menos ortodoxos, mas não menos questionáveis e, igualmente, com possíveis consequências deletérias à saúde. De acordo com a percepção do engenheiro E1, descrita a seguir, se, em determinadas circunstâncias, o estratagema efetua-se de forma velada, isto não significa que seja inteiramente desconhecido pela empresa, em uma espécie de compromisso tácito (“bem bolado”) entre esta e o funcionário. Tal injunção, se não exime a empresa de sua responsabilidade por algum tipo de dano maior, não foi capaz de produzir, até aqui, uma mudança de sua postura em virtude dos possíveis efeitos negativos verificados:
E1: Eu acho que esse “bem bolado” acaba ficando caro demais quando as pessoas esquecem disso, de uma ciência que se tem por trás do sono. Acreditam em “biohacker”, como: “Se eu tomar café e eu dormir 40 minutos, é o tempo necessário para o meu organismo descansar e a cafeína começar a surtir efeito. Então, é o ponto de inflexão, se eu dormir um pouco mais que isso, eu vou entrar num sono profundo, e aí a combinação cafeína/sono profundo não dá certo, mas 40 minutos é o intervalo ideal para eu não entrar no sono profundo, então eu consigo descansar e a cafeína começar a surtir efeito”. Esse era um tipo de conversa que, por vezes, acontecia...
P: Você diz na empresa? Isso era conhecido por parte dos profissionais?
E1: Isso, de uma “biohacker” pura. Eles falavam de “biohacker” e foi como eu descobri do que é que se tratava.
P: “Biohacker”, que vc diz, é…?
E1: É a combinação da biologia com o hacker, literalmente, exato, engraçado [risos de ambos]... É remédio para concentração, então, igual o universitário toma, às vezes, para fazer uma prova de vestibular. Porque você já está disperso, talvez já esteja numa jornada um pouco prolongada, então você toma uma coisa para conseguir ficar concentrado no que está passando ali em tela, para você não se desligar. Mas, em algum momento, aquilo ali vai deixar de fazer efeito, ou, pior, vai fazer um efeito que você só vai sentir já muito tempo depois. E, para a empresa, eu acho que o risco fica ainda maior, porque o funcionário, ele pode estar mal inten..., mal intencionado, não, mas mal motivado pelo fator financeiro. Mas a empresa, ela sabe disso. E, dos acidentes todos que já aconteceram e todas as coisas que já se passaram, ela podia, então, intervir, mas, de novo, risco-retorno, ela entende que aquele risco ainda está compensando para o retorno que ela está tendo.
Ainda considerando a ampliação do turno de 12 horas, cabe frisar que o desempenho psicomotor de indivíduos em vigília por 17 horas ou mais é similar a pessoas com alto nível de álcool no sangue (Dawson & Reid, 1997). Em suma, o comprometimento do estado de alerta e a fadiga decorrem de processos fisiológicos e, por isso, a longo prazo, não há substituto para o sono, além do próprio sono. A possibilidade de cochilar por 10 a 12 minutos durante turno noturno, sempre que se mostrar necessário (e quando possível), pode ajudar, mas somente por curto período de tempo (Fossum et al. 2013). Assim, a iniciativa da empresa de buscar pequenos cochilos, como solução para um problema desta magnitude, indica uma visão distorcida na qual o ser humano tem que se adaptar ao trabalho, contrariando a concepção ergonômica de adaptação do trabalho às características e limites humanos.
Em adição, nas operações aqui retratadas, os trabalhadores expõem-se a uma multiplicidade de outros fatores de risco. O relato abaixo, do engenheiro E3, sintetiza os fatores mais críticos relacionados ao ambiente e aos instrumentos de trabalho, alguns, inclusive, passíveis de desencadear acidentes graves ou fatais, explicitando todo o grau de periculosidade e insalubridade da situação. Posteriormente, são mencionados alguns fatores de caráter organizacional:
E3: Eu trabalhava, para ter uma ideia, eu trabalhava sem dormir, assim... Vários dias, às vezes, em condições de higiene péssimas, porque não tinha lugar para tomar banho, o banheiro era sujo... Condição alimentar ruim. Eu trabalhava com poço, onde tinha poço com pressão, quer dizer, podia acontecer vazamento de pressão. Eu trabalhava com material explosivo, para você ter uma ideia, a gente não armazenava na nossa base, a gente armazenava na base do Exército. A gente tinha que ir no Exército para retirar e ir no Exército para devolver. Trabalhava com fonte radioativa de... Tinha que andar com...
P: Medidor?
E3: Medidor de radiação, a cada três meses tinha que fazer... Uma vez por mês, eu mandava o medidor para ser avaliado. Eu, uma vez por ano, tinha que fazer análise clínica. Eram condições muito perigosas. Carregando peso, levantamento de peso. A gente era ensinado, a gente foi treinado para levantar peso. Uma vez por ano, a gente tinha que fazer um curso de levantamento de peso, de pegar e tirar uma pedra do chão, como tirar uma pedra do chão... Mas várias pessoas no meu setor tinham que sair do campo porque ficavam com dor na coluna... Então, eram coisas muito adversas.
Como o engenheiro E3 ressalta, há os riscos associados às pressões dos poços, que podem provocar o fenômeno conhecido como blowout. Este ocorre sob a forma de erupções que chegam a ocasionar acidentes de grande magnitude, caso se manifestem com maior intensidade. Basta lembrar os acidentes com a plataforma de Enchova, aqui no Brasil (em 1984), com 37 óbitos, e com a Deepwater Horizon, nos EUA (em 2010), o caso de maior repercussão no setor petrolífero, nos últimos 20 anos, cujas consequências mostraram-se catastróficas: 11 mortos, 17 feridos graves, perda total da unidade e maior desastre ambiental na região do Golfo do México. Por isso mesmo, a companhia BP, dada a lógica segundo a qual operava naquela conjuntura e nos anos que precederam o desastre - com destaque para suas formas de gestão - pode ser considerada um “caso paradigmático” (Le Coze, 2016) na indústria do petróleo.
Nosso interlocutor aponta, na sequência do texto, um blowout que presenciou como sendo um dos eventos mais marcantes em todo seu percurso na perfuração. No desenrolar de um determinado trabalho, o poço ganhou a pressão da coluna e começou a cuspir lodo (mistura de líquidos com material sólido), num prenúncio de perda de controle da operação. E isto jamais pode acontecer com uma ferramenta no interior do poço, pois há o risco de perdê-la. Em tais circunstâncias, uma alternativa é fechar o poço, tentando controlá-lo em seguida. No entanto, dadas as condições operacionais e a pressão dos superiores para o término do serviço, o gerente relutou em encaminhar o fechamento, protelando perigosamente o curso da operação:
E3: E, como tinha muita pressão [da direção], sei lá, interna, que tinha que terminar aquele trabalho logo, o cara [o gerente] falou: “Não, vai dar para fazer”. Aí, quando começou a cuspir, primeiro ele avisou: “Olha, está ‘vindo’ o poço, o poço está ‘vindo’, tira a ferramenta”. A gente começou a tirar a ferramenta, muito rápido, quase o máximo...
P: Por quê?
E3: Porque, aí, de repente, o poço começa a cuspir lodo. É lodo para tudo quanto é lado e misturado com gás, né. Porque essa pressão é gás. Todo mundo que estava aqui em cima, tem uma escada aqui, todo mundo saiu correndo, mais parecia um formigueiro, correndo... Não era muita gente, então deveriam ser uns 8 ou 10. E o lodo cuspindo. Todo mundo correndo desesperado... Porque isso aqui, vamos supor, se alguém acende um isqueiro ou tem aqui um fósforo, alguém está fumando por aqui... queima tudo.
Além da pressão (geofísica) do poço, ele também faz menção à pressão hierárquica, que se origina na direção e chega até a média gerência em campo. Esta tensão organizacional tende a aumentar em contextos de crise, acentuando aquilo que, comumente, já se configura como um problema crítico em certas intervenções. De acordo com a engenheira E2, nesse cenário adverso, é importante levarmos em conta o acirramento da concorrência entre as empresas, cujo planejamento é comprometido por assumirem posturas “bem agressivas na crise, muito agressivas mesmo...”. Segundo ela, “as empresas estão muito competitivas. Se nós mandamos seis pessoas e a Baker manda quatro... [o cliente alega] ‘Opa, por que eu estou pagando mais?... Então, vou mudar para a Baker, por que eu estou pagando mais gente, mais caro?’”.
Para compensar esta possível redução do efetivo, pode-se lançar mão do artifício de intensificação do trabalho, contando-se com a adesão daqueles que passaram pelo crivo do rígido processo seletivo a que são submetidos na fase de contratação, em que tal alternativa é assumida como parte integrante do trabalho na empresa.
Não há, todavia, como esquecer as condições em que este trabalho transcorre. Nessa linha, a técnica entrevistada (T1) enfatiza os riscos enfrentados na perfuração, realçando o manuseio de explosivos e o contato com material radioativo, fatores aos quais ela se encontraria mais exposta:
T1: O [risco] que eu mais corria era explosivo e radiação. Porque eram das minhas ferramentas, não era nem do poço. Porque o poço está controlado, mas eu tenho que trabalhar com esses dois riscos. Sinceramente, os engenheiros trabalham mais com radiação por conta das ferramentas de perfilagem [operações para registro das características geológicas e dos fluidos no interior dos poços], que requerem mais radiação. Eu trabalho mais com explosivo. Se acontecesse um acidente com explosivo, não sobrava ninguém... Por que aqui [com os explosivos], são fatores que dependem de mim... Então, isso daqui me dava muito mais segurança, porque estava nas minhas mãos, estava no meu procedimento. Falhou isso, falhou uma conexão que estava aqui, meu equipamento está desligado, falhou aqui, chegou alguém com celular, tudo bem, não vai detonar, não obrigatoriamente vai detonar...
Ela nos chama a atenção para a importância da elevação da margem de tolerância do sistema, pois, caso determinadas falhas venham a ocorrer, “não obrigatoriamente vai detonar”. Deve-se atentar aqui para a ressalva do “não obrigatoriamente”, uma vez que, em se tratando deste tipo de sistema, com tamanha complexidade, uma fração de incerteza se apresenta como um elemento estrutural (Perrow, 2011). Trata-se de algo bem ilustrado no trecho a seguir, pela possível necessidade de retirar o canhão do poço após alguma falha na detonação. Aqui o medo parece ser incontornável, colocando parcialmente em xeque os sistemas defensivos (Dejours, 2012), como se a sobrecarga psíquica gerada na situação, de altíssimo risco, desbordasse a capacidade defensiva:
T1: Esse risco aqui eu não tinha medo. Se eu tivesse, não continuava por cinco anos. O que me dava um pouco de medo, com relação ao explosivo, é quando eu coloco esse canhão aqui, dentro desse poço, submeto ele a uma temperatura que, muitas vezes, eu nem sei qual é, a uma pressão, e cargas explosivas podem detonar por pressão, podem detonar por temperatura. E aí eu botava esse canhão aqui, mandava corrente, e esse “bichinho” não detonava. Aí que está o perigo! Se a tensão era dobrada aqui, para retirar esse canhão era triplamente dobrada, era redobrada, entendeu? Porque você tira um canhão que está pronto para detonar, que está armado, que já recebeu a ignição...
Essa conformação nos leva a retomar um depoimento anterior (do engenheiro E3), ao descrever a profusão de fatores de risco presentes na atividade de perfuração. Na sequência do referido relato, ele salienta:
E3: Então, eram coisas muito adversas. Então, às vezes, você também começa a botar na balança até que ponto vale a pena o prazer do trabalho e tudo isso, porque uma hora vai ter... Vai ter, não, mas existe uma possibilidade grande de você ter um acidente e ter alguma coisa dessas. Por mais que exista muita coisa de segurança, mas...
Se, em última instância, o objetivo da alta gerência é obter a adesão subjetiva (Dejours, 2015) desses trabalhadores ao modelo imposto, malgrado toda sorte de adversidades, cuja superação quase “estoica” mostra-se como uma espécie de atalho (alienante?) para a vivência do prazer, a desmedida do potencial nocivo presente em determinadas situações pode atuar em direção contrária. Evoca-se o questionamento de “até que ponto vale a pena o prazer no trabalho” ou do custo intangível (de “tudo isso”) que tal busca representaria para a saúde física e mental (em caso extremo, sofrer “um acidente”), por conseguinte, contrapondo-se à busca da adesão almejada.
5. Considerações finais: Da inversão da perspectiva ergonômica ao trabalho como emancipação
A análise das situações apresentadas nos permite constatar que as formas como se expressam a precarização e a intensificação do trabalho na atividade de perfuração de poços tendem a potencializar a exposição dos trabalhadores aos múltiplos fatores de risco ali presentes. No que se refere à opção gerencial feita pela empresa Schlumberger, de ministrar em seus cursos de formação um conteúdo ligado às “técnicas de administração do sono” ou ao “gerenciamento do cansaço”, o que se verifica é a sujeição de seus trabalhadores a condições em que situações-limite são naturalizadas. A empresa estaria priorizando a adaptação dos humanos a um tipo de organização do trabalho que preconiza um estado de vigília 24/7, na medida em que envia para campo apenas uma equipe, inviabilizando o revezamento. Trata-se de algo inteiramente incompatível com preceitos elementares da ergonomia e da fisiologia humana, já que adotaria práticas potencialmente nocivas à saúde e segurança dos trabalhadores.
Além disso, o argumento de que a posição robusta de liderança desta empresa no mercado justificaria a continuidade de tal estratégia também não se sustentaria se refletíssemos acerca das consequências não somente pelo prisma do “aumento extraordinário da produtividade e da riqueza” (Dejours, 2012, p. 43). Dejours observa que se, até certo ponto, esta elevação é fruto da adoção de tais princípios, de outro lado, estes também abrem espaço à “erosão do lugar acordado à subjetividade e à vida no trabalho”, com todas as suas graves consequências na esfera das patologias mentais.
Não obstante esse custo seja substancial para a saúde física e mental, a viabilização de tais formas de gestão depende fortemente do engajamento subjetivo dos trabalhadores, enquanto um elemento de sustentação fundamental, quiçá indispensável, para que tal lógica tenha êxito. Nesses termos, somos remetidos ao debate encetado anteriormente, e não desenvolvido, acerca das circunstâncias que propiciam esta dinâmica de adesão subjetiva, ainda que em condições-limite, extremamente adversas (Figueiredo & Alvarez, 2011). Um tema para reflexões futuras.
O quadro vigente em anos recentes era propenso a se agravar em função da presença de um fator de risco adicional e absolutamente inédito: o risco de contágio pelo novo coronavírus. Pois, uma vez que o trabalho dos petroleiros é tido como de caráter essencial e as unidades produtivas não podem paralisar suas atividades, aquilo que já se constituía como um contexto assaz adverso agudizou-se em meio à conjuntura pandêmica. A gravidade se elevou no caso das plataformas, em face do confinamento e do isolamento já mencionados.
Este conjunto de problemas mereceu especial atenção de nossa parte à medida que atravessamos uma crise sem precedentes em nosso país, em cerca de cem anos, com reflexos em três frentes - sanitária, econômica e política. Mesmo após o fim da pandemia, ou o seu controle mais eficaz, como observamos no contexto atual, aqueles que conseguirem escapar do desemprego e da informalidade se defrontarão com um cenário externo conturbado e com uma conjuntura interna desfavorável, na qual a (contra)reforma trabalhista - com todos os seus retrocessos - tenderá a respaldar a perda de direitos e a favorecer o avanço da terceirização e de suas diversas modalidades precarizantes.
Uma reversão desse panorama no plano interno encontraria enorme dificuldade em prosperar a partir de iniciativas oriundas do governo Jair Bolsonaro, cuja tendência seria dar continuidade a suas políticas regressivas, aí inclusas aquelas voltadas ao mundo do trabalho. Todavia, no momento em que escrevemos estas últimas linhas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi considerado, oficialmente, o vencedor das “eleições do fim do mundo”, na expressão utilizada por (Arantes 2022). Espera-se uma inflexão auspiciosa para a retomada de um leque de políticas públicas e sociais em que a atenção à saúde do trabalhador seja assumida como política de governo. Resta ainda a disputa a ser travada em um possível “terceiro turno” - sob a ameaça de condutas fora dos marcos constitucionais, de duração e contornos incertos - para sabermos se o agora presidente e a ampla coalizão político-partidária que se formou em torno de sua candidatura estarão à altura do desafio histórico que se apresenta. Os desdobramentos daí resultantes serão decisivos não só para aqueles que atuam no setor petrolífero, mas para o conjunto dos trabalhadores de nosso país, lembrando que, para parte expressiva destes, o sonho do trabalho como emancipação ainda se mostra longínquo.