As atividades das "Mulheres das águas": questões para uma ergonomia contemporânea
A Maria Ângela da Fonseca, uma das mulheres das águas, in memoriam
Introdução 1
Este artigo retoma e prolonga (Nascimento et al., 2022) 2 um diálogo entre a abordagem documental etnográfica do professor e cineasta brasileiro Roberto Novaes e a ergonomia da atividade.
O propósito essencial é o de enriquecer, assim, a reflexão sobre as potencialidades da análise da atividade em situações de trabalho atravessadas por degradações da natureza e do ambiente.
As atividades referidas aqui são as das mulheres pescadoras nos mangues do nordeste do Brasil, ilustradas no documentário "Mulheres das Águas", realizado em 2016 por Roberto Novaes 3 Provenientes das classes populares, na sua maioria afrodescendentes, estas trabalhadoras realizam uma pesca artesanal ancestral caracterizada por uma mão-de-obra familiar envolvida na captura, transformação, embalagem e comercialização de crustáceos, especialmente caranguejos. O modo de vida, o trabalho e a sobrevivência das suas famílias estão ameaçados pela poluição de grandes indústrias, pela agricultura intensiva e pelo turismo que causam danos ao ecossistema da região onde exercem o seu trabalho. Ora, esta pesca artesanal depende diretamente dos territórios que, preservados, garantem a reprodução e manutenção das espécies. O documentário de Novaes destaca o empenho e a resistência destas mulheres pescadoras na sua busca da salvaguarda e delimitação dos seus territórios de pesca, do alargamento dos seus direitos sociais e da melhoria das suas condições de trabalho e de saúde.
Estabelecer um diálogo entre a abordagem etnográfica deste documentário e a ergonomia da atividade, permite refletir acerca da conceção de uma intervenção quando atribui um lugar central à análise da atividade de trabalho e aos riscos incorridos pelos trabalhadores, sem negligenciar o quanto esta envolve necessariamente as questões de sociedade de natureza ecológica, económica e política, nela envolvidas. O documentário, ao querer "dar voz àqueles e àquelas que não a têm”, considera o conhecimento experiencial sem hierarquia com o conhecimento académico. A abordagem está fundamentalmente orientada no sentido da valorização do campo da intervenção, sem negligenciar, porém, as questões que envolvem perspetivas de ação para além da escala da atividade, e sem deixar de questionar as relações sociais de classe, de gênero e de raça.
Daí que acreditemos que este tipo de documentário interpela a ergonomia da atividade e as disciplinas científicas que lhe são próximas, indo ao encontro de alguns dos seus questionamentos atuais, e enriquecendo-os.
Lembraremos como esta tradição científica já foi, em tempos, renovada por vários movimentos sociais - incluindo os ligados a organizações sindicais (Teiger et al., 2014) e a várias formas de feminismo. Levaram, pois, os investigadores a reconsiderar as suas análises, abordando questões «novas», antes consideradas inconsequentes com as normas da ortodoxia científica (Messing, 2000), e tendo em conta variáveis cujo estatuto era anteriormente da ordem do residual (Schwartz, 2021). A ergonomia da atividade contribuiu, assim, a abalar os modelos dominantes de análise do trabalho e as problemáticas que lhes estavam subjacentes. Não só no respeitante à célebre questão de Alain Wisner “A que homem deve o trabalho ser adaptado?" (Wisner, 1995): para um Homem genérico (Teiger, 2006), ou para populações específicas? Mas, ainda, através do questionamento, em termos metodológicos e de enquadramento epistemológico, decorrendo de abordagens e temas de pesquisa que resultarão não de hipóteses unicamente enunciadas pelos investigadores, mas sim do encontro com os seus protagonistas - exigindo frequentemente outros modos de recolha dos dados.
Ao assistir ao documentário "Mulheres das Águas" não podemos deixar de tentar avançar para um esboço de um balanço de alguns questionamentos que atravessam a comunidade atual da ergonomia e que nos parecem ser suscitados pelo próprio filme.
Este artigo está estruturado em duas partes principais.
A primeira é consagrada ao documentário. Lembramos aí alguns contributos relevantes da história do trabalho nos mangues e de estudos que deixaram referencias essenciais - inclusive a pesquisa mais recente que subjaz ao projeto de Roberto Novaes. Porém, merece ser realçada a especificidade das opções metodológicas e das finalidades assumidas na conceção do documentário, que justificam a organização do seu cenário.
Na segunda parte, o artigo avança para algumas das questões que interpelam a ergonomia contemporânea e emergiram do que pretenderam transmitir as ‘mulheres das águas’: a categoria de análise da interseccionalidade, a noção de nocividade ampliada, a tradição de formação freireana, e a abordagem do território como agido pela atividade de trabalho. Aqui, a intenção não é de tratar cada uma dessas questões com a profundidade necessária, mas antes de propor linhas de reflexão que, na verdade, criam debates no seio da disciplina e que pesquisas posteriores poderão trabalhar com o devido rigor assente em bases empíricas.
O documentário na história dos estudos do trabalho nos mangues
A obra de Roberto Novaes é orientada pela necessidade de ‘dar voz à quem não tem voz’ e fazer o contraponto com alguns discursos dominantes que tendem a desvalorizar essas ‘vozes’. A perspetiva etnográfica é, portanto, característica de muitos de seus filmes, contando com falas e imagens produzidas pelas próprias pessoas envolvidas, como é o caso do documentário ‘Conflito’ (Novaes et al., 2019). A narrativa de ‘Mulheres das Águas’ segue essa perspetiva etnográfica, mostrando o trabalho e as atividades das pescadoras, suas imbricações com a vida familiar e comunitária e seu engajamento social em defesa do trabalho e do ambiente.
O documentário 4 de 32 minutos faz parte do projeto ‘educação através de imagens’, coordenado por José Roberto Novaes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (pró-reitoria de extensão). O objetivo é o de trazer conhecimentos científicos sobre vários temas relacionados ao trabalho, à saúde coletiva, às mulheres, ao meio ambiente, dentre outros, de forma mais apropriada à difusão pública.
O filme ‘mulheres das águas’ foi produzido em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz por meio do projeto ‘saúde coletiva e saúde dos trabalhadores no agronegócio’, que era coordenado pelo professor Carlos Minayo, e pela VideoSaúde distribuidora pertencente à fundação, responsável pela produção e difusão de material áudio-visual.
Teve como ponto de partida a pesquisa de Paulo Pena, Vera Martins e Rita Rego (2013), cujo objeto era a compreensão de relações entre trabalho, saúde e políticas públicas para as comunidades da pesca artesanal. Por outro lado, o filme também se inscreve na linhagem de obras anteriores (Novaes et al., 2019).
A obra de Josué de Castro (1908-1973): o ‘homem-caranguejo’ num nicho ecológico
Médico e geógrafo, nascido no nordeste brasileiro, em Recife, Josué de Castro foi reconhecido internacionalmente pelas suas publicações Geografia da fome e Geopolítica da fome5 Para ilustrar a postura que sempre assumiu, costuma ser lembrado que, ainda recém-formado em medicina, foi contratado por uma grande fábrica para examinar trabalhadores com problemas de saúde. E contava: "Comecei (...) a verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. No fim de algum tempo, compreendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: ‘Sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los, porque sou médico, e não diretor daqui. A doença desta gente é fome’. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era social.”
Porém, Josué de Castro é ainda mais célebre pela sua metáfora do ‘homem-caranguejo’, central numa sua obra que prolongou as suas pesquisas anteriores (Castro, 1967). Djalma de Melo Filho sintetiza esta obra realçando os seus “quatro olhares sobre o mangue (…): o mangue como ancestral de Recife; o mangue como fábrica de vida e exemplo de equilíbrio ecológico; o mangue como fonte de conhecimento; e o mangue lugar dos ‘excluídos sociais’” (Melo Filho, 2003, p. 507).
O mangue é aí definido por Josué de Castro como nicho ecológico , onde ocorre intensa atividade biológica:
Um tipo especial de associação vegetal tipicamente anfíbia, que prolifera nos solos frouxos e movediços dos estuários, dos deltas, das lagunas litorâneas - solos de transição entre os tratos de verdadeira terra firme e os ocupados permanentemente pela água - nas regiões equatório-tropicais do mundo.
O mangue abriga e alimenta uma fauna especial, formada principalmente por crustáceos, ostras, mariscos e caranguejos, numa impressionante abundância de seres que pululam entre suas raízes nodosas e suas folhas gordas, triturando materiais orgânicos, perfurando o lodaçal e umidificando o solo local. Muitos desses pequenos animais contribuem também com suas carapaças e seus esqueletos calcários, para a estruturação e consolidação do solo em formação. Desempenha também essa fauna especializada um importante papel no equilíbrio ecológico da região ocupada pelo homem, ao possibilitar recursos de subsistência para uma grande parte das populações anfíbias que povoam aqueles mangues, vivendo nas suas habitações típicas - os mocambos. (Castro, 1948, p. 19 e 23; citado em Melo Filho, 2003, p. 508 e 509)
E é assim, completa Josué de Castro, que vai:
O Recife crescendo com uma grande população marginal que vegeta nos seus mangues em habitações miseráveis do tipo dos mocambos. É que o Recife, a cidade dos rios, das pontes e das antigas residências palacianas, é também a cidade dos mocambos, das choças, dos casebres de barro batido a sopapo com telhados de capim, de palha e de folha-de-flandres. Além dos que emigravam da zona do açúcar, por motivos vários, deve-se acrescentar os que desciam expulsos pelas secas do outro Nordeste, o do sertão semi-árido. (Castro, 1948, p. 73 e 74; citado em Melo Filho, 2003, p. 510 e 511)
Como o sublinhou Melo Filho, 2003), trata-se de uma obra que, incontestável e devidamente, ainda hoje persiste “no imaginário social do recifense”, não só pela precisão da suas descrições do mangue e de quem aí tenta sobreviver, mas talvez sobretudo pelo realço dado à riqueza e aos aspetos positivos do mangue, face aos “sentimentos negativos” cultivados pelos colonizadores, que desde o século XVII, deixaram, e continuam a deixar, marcas: “o mangue é sinónimo de zona de prostituição, é lugar a ser poluído com o lixo urbano, além de constituir espaço potencialmente a ser aterrado sob os olhos da especulação imobiliária” (Melo Filho, 2003, p. 506).
1.2. O Movimento Manguebeat: os caranguejos com cérebro e as manguegirls
Estudar atualmente as atividades de quem vive e trabalha nos mangues indicia então uma vontade de se situar numa já longa história. Uma história durante a qual, obviamente, o ‘objeto’ de estudo evoluiu, mas a abordagem privilegiada também se transformou.
Houve, muito provavelmente, vários estudiosos que, desde a época de Josué de Castro, se consagraram a este campo de investigação. O Movimento Manguebeat, movimento de contra-cultura brasileiro que emergiu em Recife nos inícios dos anos 90, é, em si, revelador dessas evoluções, nomeadamente ao apontar o caos provocado nos mangues pela desfreada especulação imobiliária, mas também ao querer realçar as possibilidades de ação, assim como a legitimidade e a viabilidade dos projetos de intervenção: “Da lama ao caos, do caos à lama. O homem roubado nunca se engana” 6, canta Chico Science, um dos fundadores do Manguebeat. Aliás, voltando à obra de Josué de Castro, os integrantes deste movimento afirmavam que os “Homens-caranguejos se constituem indícios, rumores e prenúncios dos Caranguejos com Cérebro” (Lopes Nogueira, 2009, p. 41), pois “os homens-caranguejos saem do mangue, ganham o asfalto e viram (…) caranguejos com cérebro, com suas antenas, deixam a lama e saem em busca de vibrações” (Melo Filho, 2003, p. 521).
Um dos principais méritos deste movimento foi de ter transformado a questão do trabalho nos mangues num fenómeno cultural que, na verdade, teve uma ressonância nacional e internacional significativa.
Mas outro mérito deste movimento é de ter revelado que os ‘homens’ de Josué de Castro são, na verdade, também mulheres: “Sobre esse negro solo, os mangueboys e manguegirls cantam, dançam, colorem e recriam a cidade (…) pois além dos lamentos e rugidos, há vigor, sobressaltos e fertilidade provenientes da lama (…) (Lopes Nogueira, 2009, p. 39 e 40).
Como não se lembrar aqui do artigo “Les femmes aussi ont un cerveau !” (As mulheres também têm cérebro!) de Catherine Teiger, 2006)? E o que narra, nessas páginas, acerca da tendência, até há pouco dominante, nas publicações que se situam na área da ergonomia, do uso do masculino para caracterizar a ‘população’ objeto dos estudos, inclusive nos casos em que os trabalhadores envolvidos eram essencialmente mulheres.
1.3. O estudo de Paulo Pena, Vera Martins e Rita Rego: analisar as políticas de saúde do trabalhador face à um trabalho artesanal predominantemente feminino
O estudo dirigido por Paulo Pena situa explicitamente as atividades de colheita de mariscos na pesca artesanal como “um trabalho predominantemente feminino” no âmbito de “uma divisão sexual do trabalho marcante”, mas também no âmbito de “um processo de trabalho pré-capitalista, que atravessou (…) modos de produção agrícola, escravista, feudal e que persiste até a presente data” (Pena et al., 2013, p.59 e 61).
Nesta pesquisa, após contextualização das limitações do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil e a afirmação, documentada, da necessidade de revisão de alguns aspetos das políticas de saúde do trabalhador, a equipa avançou, no Nordeste, na região da Bahia, com um extenso trabalho empírico “de natureza qualitativa social e antropológica ou etnográfica”, realizado de 2005 a 2010, em cinco comunidades de famílias de pescadores artesanais e marisqueiras. Trata-se então de um estudo de caso que os autores designam de “qualitativo” onde tiveram um lugar de destaque uma análise ergonômica considerando a atividade real, “aquela que se mostra pelas ações”, e certos referenciais da higiene do trabalho - recorrendo a entrevistas (de 30 mulheres e cinco homens), observações das relações sociais e “particularmente das condições de trabalho, riscos, doenças e acidentes mais frequentes nas atividades” (Pena et al., 2013, p.59 e 62).
Os resultados apontam para o que permitiu evidenciar a análise ergonómica:
A ocorrência de movimentos repetitivos em excesso, uso de força, posturas inadequadas, pausas insuficientes, contingenciamentos psíquicos e sociais (não pela coerção hierárquica, mas pelas condições sociais) em diversas etapas de procura, coleta, armazenamento, transporte e limpeza dos mariscos no arenoso da praia e no manguezal. Quanto aos movimentos repetitivos, trata-se de condições descritas em situações de riscos similares aos encontrados para as enfermidades da coluna e do tipo LER/DORT. (Pena et al., 2013, p.62)
Todavia, a postura científica assumida pela equipa não deixou de a encaminhar para um enquadramento mais largo que iremos reencontrar no documentário de Novaes:
Saberes e práticas revelam valores sobre a natureza e a pesca inscritos em tradições de um modo de pensar e fazer o trabalho artesanal, mais ainda, um modo gerencial milenar centrado na autonomia, na hierarquia familiar e na adoção de disciplinas fundadas em valores éticos e tradições. (Pena et al., 2013, p.61)
2. O documentário e a perspetiva de Roberto Novaes
Um documentário é um tipo de produção audiovisual que visa a retratar um acontecimento ou dada realidade social. Pode, então, ser estudado para se compreender o sentido acordado pelos atores sociais envolvidos, imersos na sua vida cotidiana, e na busca de sobrevivência e, eventualmente, transformação dos determinantes sociais, políticos e econômicos que os condicionam (Mendes et al., 2017).
A organização, produção e edição de um documentário pressupõem um quadro conceitual que serve de referencial para sua realização. E o filme de Roberto Novaes tem como base, efetivamente, o estudo de Paulo Pena e colaboradoras e a mesma preocupação: ir além da análise dos riscos e dos problemas de saúde, pôr em evidência a necessidade de revisão das políticas de saúde do trabalhador e, ao enfatizar o engajamento das comunidades em defesa da preservação do meio ambiente e da busca de justiça social, ampliar o olhar sobre os determinantes da atividade e dos problemas de saúde.
É igualmente na continuidade deste estudo que Roberto Novaes optou em colocar em primeiro plano a atividade de trabalho e a postura política das ‘mulheres das águas’. Homens podem ser observados evidentemente no filme: no mercado livre onde são comercializados os mariscos, em uma instalação industrial, e alguns pescadores (entre eles, um que conduz um barco das pescadoras). Mas não constituem, neste filme, o essencial do projeto.
As imagens capturam então algumas dimensões das atividades das trabalhadoras no seu contexto de trabalho (mangues, mar, casa e comunidade, transporte e espaços públicos), cuja compreensão de suas características, determinantes e impactos se deve às entrevistas realizadas com 10 trabalhadoras de 6 comunidades, sendo 4 na Bahia e 2 em Pernambuco. As falas destas trabalhadoras, valorizadas no documentário, revelam uma maturidade de análise excecional, em parte fruto da participação em ações de formação organizadas localmente. Evidenciam, não apenas o que carateriza o seu trabalho e as condições da sua vulnerabilidade, mas ainda o que significa o seu enfrentamento às ameaças colocadas pelo ‘modelo de desenvolvimento’ ao ecossistema do mangue - e por isso ao seu futuro, bem como das suas famílias e das suas comunidades.
Pode-se dividir o documentário em cinco partes:
Na primeira, apresenta-se a relação das trabalhadoras com seu meio-ambiente, o mangue, e o respeito ao seu papel como berçário de inúmeras espécies e fonte de sustento e da vida das comunidades.
Na segunda, o processo de trabalho é apresentado e descrito nas suas etapas de captura, beneficiamento e comercialização (transporte até os mercados).
Na terceira, as imagens traduzem as consequências do desenvolvimento econômico e industrial que, ao impactar fortemente o meio ambiente, atingem diretamente a pesca artesanal e quem dela vive.
Na quarta, os agravos decorrentes do trabalho nas pescadoras - doenças, dores, fadiga - são descritos, o que favorece a passagem para tratar da pesquisa sobre política pública de saúde das trabalhadoras, inserida na quinta parte, na qual o papel do Estado e de suas instituições é abordado.
Na quinta e última parte, o filme mostra a atividade política, o engajamento das trabalhadoras no enfrentamento ao modelo de desenvolvimento que coloca em risco o meio ambiente em que vivem e do qual retiram seu sustento de forma relativamente harmoniosa.
Deste modo, são trazidas ao público dimensões da atividade de trabalho das pescadoras - determinantes econômicos, estratégias colocadas em prática, uso do corpo e gestos, cognição (conhecimento das marés, dos manguezais e do comportamento dos peixes e crustáceos), relações, interações e formas de expressão social (como a música que cantam), uso e criação 7 de instrumentos de trabalho - que lhe conferem o seu caráter ‘ergonômico’.
Porém, a abordagem vai além da descrição e proposição de políticas reparatórias de saúde, não só pela opção em tratar o trabalho e sua relação com o ambiente, mas ainda pelo lugar de destaque atribuído à participação das trabalhadoras - que permitiu acessar a sua postura política. Assim, ao privilegiar imagens e falas que exprimem o prazer do sentimento de liberdade durante a atividade do trabalho ou a força do protagonismo das pescadoras, o documentário se orienta numa clara perspetiva de intervenção. Ou seja, torna visível o empenho face aos efeitos concretos e evidentes da poluição, e a procura ativa de alternativas face a um modelo de desenvolvimento que, em nome da racionalidade econômica, polui, destrói o “nicho ecológico”, o meio ambiente, afasta as comunidades tradicionais, e atinge toda a sociedade.
Mais do que um manifesto em favor das pescadoras artesanais (como afirma Conceição, 2019), ‘Mulheres das Águas’ aborda a realidade das atividades das pescadoras artesanais. Entendemos, por isso, que este documentário adquiriu um estatuto de documento científico que, em termos metodológicos, convocou as potencialidades da ergonomia da atividade: pela postura de escuta adotada, atenta ao que as pescadoras pretendem relatar, com precisão, dos vários aspetos das suas atividades e das suas consequências - para, a partir daí, justificar a sua vontade de um ‘poder de agir’, não aceitando formas de determinismo e fatalismo diante do peso inexorável do modelo de desenvolvimento que lhes é imposto.
Este documentário estabelece, deste modo, um diálogo com a ergonomia contemporânea. Mas ele levanta igualmente questões que tensionam a disciplina, tais como o uso do conceito de ‘interseccionalidade’ nos estudos do gênero em ergonomia, e ainda a sua relação com ‘a questão do território’ e do desenvolvimento sustentável.
3.1. Uma arquitetura de desigualdades
O documentário mostra a divisão do trabalho em função do gênero nas comunidades de pesca, sendo o trabalho das mulheres e dos homens organizado de forma complementar: os homens vão pescar no mar, enquanto as mulheres pescam no meio dos mangues. Todavia, trata-se de uma distinção de papéis que não deixa de criar espaço para as mulheres:
(Eliete Paraguaçu, 11’08'').“É a mulher quem coordena, é a mulher quem administra. No mundo da pesca, por exemplo, e eu acredito que é em todo o Brasil, são as mulheres marisqueiras que coordenam suas casas. No contexto da questão quilombola, no contexto da pesca, são as mulheres que tomam as rédeas da situação. São elas que estão mais nos embates dos conflitos. São elas que estão mais vulneráveis também, ... mas também estão empoderadas no discurso que tem e na forma de administrar o modo de vida de suas famílias”
Esta satisfação em termos de autonomia e empoderamento, inclusive no que diz respeito à sua relação com os homens, manifesta o desejo de poder viver sem ter que se submeter à uma relação formal de subordinação:
(Eliete Paraguaçu, 7'55'')."Eu adoro dizer isso: eu não tenho patrão. É a maré que determina meu trabalho. É a maré que me diz a hora que eu vou e a hora que eu volto"
Contudo, são os intermediários que decidem dos preços pagos para o fruto da sua pesca, aumentando, quando são baixos, a duração das suas jornadas seu trabalho:
(Daiana Ferreira, 8’07”), ora"A gente não tem o nosso patrão pra nos impedir de ir pra maré, mas a gente tem o atravessador que diz assim: o preço do seu pescado é esse”
(Mariselha, 10'16'') 8."se tiver muita habilidade, pode apanhar 3 quilos por dia. Para obter um quilo de filé, é necessário 160 a 200 aratus"
Este ‘empoderamento’ está de facto na encruzilhada de um dia a dia que está longe de as poupar. Nas suas múltiplas atividades geradoras de rendimentos (captura de marisco, transformação e comercialização), os esforços físicos são de todos os instantes: remam durante até uma hora para chegar à zona de pesca, andam na água e lama até aos joelhos ou a meio das coxas, por vezes até ao pescoço, para levantar as redes, algumas delas mergulham os braços na lama até aos ombros para apanharem aratus, carregam baldes pesados cheios de mariscos e ferramentas, descascam à mão quilos de caranguejos com gestos meticulosos e repetitivos, etc.
Quanto ao seu trabalho doméstico e familiar, dizem
(Maria José, 23’29”) e“É difícil num trabalho desse você chegar em casa e dizer: ‘eu não estou sentido dor em canto nenhum, eu estou bem’. É difícil, porque sente!"
(Ednalva Reis, 9'30''). Mas nunca esquecem o mangue, até nos momentos que partilham com os filhos. Eliete Paraguaçu explica"a vida é sempre corrida"
; e completa"A minha mãe sempre me levou pra pescar, no final é assim que esta cultura é transmitida. E assim também os meus filhos vão para o mangue”
.: "Há uma flor no mangue que chamamos 'cachimbo'. É uma pequena flor que quando cai ao chão, fica de pé. Quando os meus filhos vão ao mangue, eu digo-lhes: 'Não esmaguem a flor de cachimbo, porque ela permanecerá de pé e assim o mangue vai se regenerar’. Desta forma, desenvolverão o respeito pelo mangue’
São cenários de vida que conduzem Elionice Sacramento (8'20'') a concluir:
. E esta consciência da sua invisibilidade social não deixa de ser reforçada pelo fato do sistema de indemnização por acidentes de trabalho, e até mesmo o sistema de aposentadoria, não reconhecer os seus direitos."as mulheres passaram sempre mais tempo a fazer atividades do que os homens. Mas ao mesmo tempo, sempre permanecemos invisíveis porque somos vistas como ajudantes”
Em suma, se, logo à partida, o filme assume que a atividade profissional das mulheres pescadoras faz parte de uma arquitetura de desigualdades, além disso acaba por convidar a considerar a atividade de trabalho no entrelaçamento, e não na adição, das dimensões produtiva e de reprodução, nomeadamente da comunidade através do trabalho doméstico e familiar. A abordagem proposta, pela análise desenvolvida coletivamente pelas pescadoras, põe assim em questão as disjunções geralmente feitas em ergonomia e sociologia do trabalho no que diz respeito ao trabalho produtivo e reprodutivo.
3.2. A ergonomia e a interseccionalidade
A análise diferenciada por gênero da atividade de trabalho ganhou um lugar na ergonomia e, mais amplamente, na saúde ocupacional, graças ao trabalho de equipes interdisciplinares pioneiras, muitas vezes minoritárias em suas instituições, frequentemente impulsionadas por organizações de trabalhadores e trabalhadoras (Messing, 2000; Teiger, 2006; Casse & De Troyer, 2020). As análises do trabalho das mulheres em ergonomia têm se concentrado especialmente nas características que diferenciam as atividades das mulheres e as dos homens e que resultam da divisão do trabalho por gênero, dos modos distintos de definir normas prescritivas e de assegurar as tarefas, das diferenças biológicas, mas também da interação de todos esses processos. Esses estudos demonstraram os efeitos da organização sexuada do trabalho produtivo sobre a saúde das mulheres e dos homens, bem como a falta de reconhecimento, compensação e prevenção dos danos à saúde de que são sujeitas as mulheres. A intervenção ergonómica sensível às questões de gênero pretende, então, criar condições suscetíveis de sustentar uma transformação da atividade que seja proveitosa tanto para as mulheres como para os homens.
Mas o documentário de Roberto Novaes nos incentiva a insistir na necessidade de um alargamento da questão do gênero na ergonomia.
Acreditamos, na verdade, que a ergonomia, tal como outras disciplinas (Kergoat, 1978; Hirata, 2014), podia considerar com mais atenção a natureza entrelaçada das relações sociais de poder a fim de não negligenciar o que produzem, na atividade de trabalho, de mulheres e também de homens (Nascimento et al., 2019).
As abordagens recentes em ergonomia, retomando o conceito de interseccionalidade, desenvolvido nas ciências humanas e sociais, sublinham que as relações de gênero expressas no contexto do trabalho não podem ser abordadas independentemente de outras relações sociais que estruturam as atividades produtivas e reprodutivas (Laberge et al., 2022).
Contudo, esta noção de interseccionalidade assumiu conotações diferentes, por vezes divergentes, desde que foi proposta por Kimberlé Crenshaw em 1989 na esteira do feminismo negro para captar as experiências específicas de discriminação criadas pela intersecção de relações de subordinação ligadas ao gênero e à raça. Animados debates emergiram, entretanto, particularmente no que diz respeito à conceitualização das categorias definidas e das relações sociais que as sustentam (ver, por exemplo, Escoda et al., 2016).
Na sequência desta controversa, convém esclarecer que, para nós, o conceito de interseccionalidade não postula a existência de identidades fixas, pois iriam descurar a historicidade das categorias sociais e a complexidade da dinâmica das relações sociais em que as pessoas e as suas experiências estão inseridas e evoluem (Scrinzi, 2008). Assim, sem cair na armadilha de uma essencialização, partir do prisma interseccional fornece "uma leitura analítica sobre a interação estrutural das opressões nos seus efeitos políticos e jurídicos" (Akotirene, 2019, p. 63).
E ‘Mulheres das águas’ contribui à demonstração do interesse desta perspetiva analítica. Aliás, podemos dizer que o documentário é seguramente “interseccional”, colocando questões às disjunções habitualmente feitas em ergonomia em relação ao trabalho produtivo e reprodutivo, mas também entre a esfera profissional e a esfera privada ou doméstica. As entrevistas e as imagens mostram que a situação das "mulheres das águas" é marcada por um tecido de relações sociais que, na sua essência, são relações de poder - ligadas ao gênero (divisão sexual do trabalho, baixo reconhecimento do trabalho das mulheres e dos efeitos da sua penosidade), mas também à classe social e à cultura. As mulheres pescadores dos mangues pertencem à periferia das grandes cidades (Ilha da Maré, Bahia) e vilas rurais (Goiânia, Pernambuco) que sofrem marginalização e dominação na sociedade contemporânea, tanto do ponto de vista de sua cultura (alguns afrodescendentes pertencentes às comunidades quilombolas) quanto de suas condições materiais (Conceição, 2019). Além disso, o documentário mostra a ausência total de poder sobre as opções socio-econômicas que levam, visível e concretamente, à degradação do seu meio ambiente.
O prisma interseccional se materializa então nas palavras dessas mulheres enquanto analisam suas experiências neste contexto de opressões interligadas, que não podem ser simplesmente somadas, pois são indissociáveis (capitalismo, patriarcado, racismo, etc.). E, desta consciência de um "lugar de fala" (Ribeiro, 2017), emerge não apenas um conhecimento experiencial, mas também formas de organização coletiva para superar os efeitos nocivos em seus ambientes de vida e de trabalho.
4.1. Uma ‘nocividade ampliada’
Uma das protagonistas de Roberto Novaes nos mostra que, na pesca do caranguejo, ela, como as colegas, está constantemente se inclinando para frente, com uma flexão significativa do tronco - sendo necessário mudar regularmente a postura, e por exemplo apoiar-se num joelho para atenuar as dores nas costas. Também mostra como os caranguejos recolhidos no jereré são despejados em um balde que segura sobre sua cabeça. Os seus ombros estão, de facto, sob grande tensão neste movimento de carga e ela diz que
(24'27''). São exemplos da penosidade cotidiana desta atividade."há dias em que não consigo nem levantar meu braço"
No entanto, a degradação do meio ambiente torna o trabalho dessas mulheres ainda mais difícil e mesmo perigoso. O exemplo apresentado aos 17’38’’ nos revela que elas acabam por pescar em águas poluídas por pesticidas e sujas por excrementos - expondo-se a cocobacilli conhecido por causar queimaduras e prurido, mas também doenças graves nos órgãos reprodutivos e até mesmo septicemia. Uma das mulheres conta que os médicos prescrevem pomadas que aliviam os sintomas - mas só por quinze dias, sendo que a exposição constante invalida a cura.
Vimos que a questão da poluição não é nova nos mangues do nordeste brasileiro. Já Josué de Castro referia o ‘lixo urbano’, e o Movimento Mangue os efeitos de uma especulação imobiliária desfreada. Com as ‘Mulheres das águas’, constatamos que o processo da poluição não abrandou e se complexificou - comprometendo seriamente todo o ecossistema do mangue.
É fonte de grande preocupação das pescadoras. Vimos aliás já, mais acima neste artigo, que suas relações com os filhos andam de mãos dadas com seu papel de guardiães da biodiversidade do território. Uma responsabilidade que, na realidade, é transmitida de geração em geração, numa cultura de oralidade que as torna verdadeiras sentinelas do meio ambiente, capazes de identificar e alertar sobre as origens e os efeitos da degradação do ecossistema. O exemplo apresentado no filme (15’06’’) o ilustra bem, com a descrição dos efeitos das práticas industriais no cultivo da cana-de-açúcar (pelas práticas de queima e a fumaça gerada que afetam as populações); ou pela terra cultivada que ganha terreno no mangue; ou pelo escoamento, em caso de chuva, de pesticidas até ao rio - que leva a uma elevada mortalidade de peixes (com uma identificação muito clara dos efeitos de Roundup).
A necessidade de afirmar uma conceção da nocividade do trabalho que não se restrinja a uma decomposição em fatores de risco já era patente na pesquisa dirigida por Paulo Pena, tornando-se essa necessidade ainda mais óbvia com o filme de Roberto Novaes. E o conceito de ‘nocividade ampliada’, que devemos ao trabalho de Ivar Oddone e seus colegas (Oddone et al., 2020; Larentis et al., 2020), assume aqui todo o seu significado e alcance de intervenção: um conceito “no qual os fatores econômicos e sociais não são mais externos e adicionais, mas fazem parte integrante da nocividade real do trabalho, na medida em que atuam como verdadeiros multiplicadores da nocividade em decorrência à exposição” ( Re & Lacomblez, 2020, p. 19).
4.2. Uma escola na tradição freireana
Podemos lembrar que esta conceção da nocividade do trabalho surgiu, no contexto da Itália dos anos 60 e 70, a partir da observação da riqueza da experiência acumulada pelos trabalhadores nesta matéria, bem como do seu desejo em discuti-la com o objetivo de conseguir uma mudança real e de longo prazo nas suas condições de trabalho. Estes "esperti grezzi", ricos de uma experiência localizada, ideográfica, histórica e sistêmica, fruto do resultado da ação, são, na realidade, sujeitos portadores de saberes imprescindíveis para a análise. Nesta perspetiva, estes conhecimentos - que não estão prontos para ser pura e simplesmente coletados para uma eventual definição de soluções a serem implementadas - terão de ser integrados numa análise das atividades de trabalho, construída no âmbito de um diálogo estreito e constante entre o que permite a abordagem científica e o contributo dos trabalhadores envolvidos. É o cerne da tradição da “formação dos atores na e pela análise do trabalho para e pela ação” (Teiger & Lacomblez, 2013), tradição para a qual a equipa italiana teve uma importância decisiva, mas que foi também ao encontro de muitas ações implementadas no Brasil na continuidade da obra de Paulo Freire (Suprani, 2022).
Ora, no documentário, Daiana Ferreira nos revela como foi crucial a sua participação num programa de formação da Escola das Águas (Salvador, Bahia), nitidamente concebida na linhagem da tradição freireana, que foi fundada em 2011, com a finalidade de avançar na formação política e social das mulheres pescadoras. Daiana Ferreira refere que aí lhe foi ensinado a se expressar melhor e a conhecer seus direitos:
(Daiana Ferreira, 32'24''). Eleonice Sacramento acrescenta:"Precisamos conhecer a lei e o que ela nos garante. A escola nos ensinou isso"
(28'40''). Esta escola foi, na verdade, desde 2011, o resultado do projeto de uma pescadora quilombola e ativista do Movimento de Pescadores e Pescadoras artesanais (MPP), Maria de Paraguaçu, quase analfabeta mas com ampla "leitura do mundo", que imaginou uma escola de acordo com o modo de vida da comunidade (nomeadamente tendo em conta o horário da maré) e respondendo à necessidade de equipar as novas gerações com conhecimentos acadêmicos, embora sem distanciá-las das raízes de sua comunidade e das suas lutas (Santos et al., 2019)."Temos que levar em conta a história e nossas formas de vida nos processos de educação e treinamento"
Logo, percebemos melhor a qualidade das análises emitidas pelas protagonistas de Roberto Novaes, com uma capacidade em articular as descrições das suas difíceis atividades e o prazer e orgulho que sentem em realizá-las, numa estreita relação com este território do mangue que é delas, lhes permite viver e sustentar suas famílias e sua comunidade.
4.3. O desenvolvimento do território: a ação dos seus atores e seus direitos
Mas suas análises vão ainda mais longe quando enfatizam até que ponto a evolução desta atividade está profundamente marcada, contaminada, pelas escolhas econômicas e opções sociotécnicas adotadas na região até o momento. A saúde delas sofre com a poluição insidiosa, suas atividades são constantemente desafiadas pelo estabelecimento de sítios industriais, agroindustriais ou turísticos. Sem esquecer como esta poluição interfere na produção pesqueira e na sua comercialização (
- Eliete Paraguaçu, 13'29). É a precariedade da profissão que sublinham deste modo, apesar de representar uma contribuição essencial para a vida econômica e social do nordeste brasileiro.“Não estamos lutando apenas por nossa qualidade de vida, mas também por aqueles que comem nosso pescado"
Chegam assim a levantar a questão do desenvolvimento sustentável da sua região a partir de uma descrição detalhada do que sua vida é e está se tornando dentro do seu território. Um território que, deste modo, colocaram, como disse Bruno Latour, já não ao avesso (“à l’envers”) com uso de indicadores globais e abstratos, mas sim no lugar certo (“à l’endroit”): "Assim que você descreve um território no lugar certo, você entende em sua carne (que) a Economia (...) é feita para ocultar os choques, as tensões, as controvérsias que sua descrição, ao contrário, já não tenta mais evitar” (Latour, 2021, p. 97, tradução livre).
Entendemos então o futuro de qualquer território como resultado da ação dos seus atores e do impacto da sua luta. Impõe-se, então, na sua abordagem, uma análise que demonstre concretamente como o território é agido, apropriado, transformado e revalorizado, nomeadamente pela atividade de trabalho (Cunha, 2022).
E é, de facto, o que evidenciaram as mulheres do documentário, ao revelarem consciência de que o que acontece com elas desafia seu futuro e o dos outros. Neste sentido, como vimos, realçam a necessária ação na esfera ambiental: seja nas infraestruturas em termos de saneamento básico, seja nos processos em que as vilas de pescadores se encontram lesadas face às grandes empresas das indústrias petrolíferas, químicas, portuárias ou agrícolas.
Mas elas vão ainda mais longe, enfatizando a fragilidade de sua condição de artesãs, sem garantia de acesso ao que o sistema de Previdência Social permite, particularmente em termos de reconhecimento de doenças ocupacionais, acidentes no trabalho e direito a pensões. Na sequência do estudo de Paulo Pena e seus colegas, medidas específicas para os pescadores com estatuto de artesões, foram implementadas. Contudo, na prática, os serviços responsáveis nem sempre levam em conta essas normas e consta que o desfecho de muitos dos pedidos das pescadoras é negativo:
(Eliete Paraguaçu, 26'40)."Parece que há pessoas treinadas para negar a nosso povo seus direitos"
Ora, o desenvolvimento também passa pelo reconhecimento mais amplo e real dos seus direitos básicos.
5. Discussão e conclusão
Poderíamos concluir este artigo com a canção que escutamos no documentário:
Vem companheiros/as, chega de indecisão, venha engrossar fileira, desfraldar a bandeira da libertação. Vem companheiros/as, esse é o nosso momento! Venha de todos os lados e de braços dados entrar no movimento Vamos juntos engrandecer nosso jeito de viver No território pesqueiro para viver e trabalhar De norte a sul ô que coisa linda ver a classe organizada, juntando homens e mulheres, seguindo a marcha em caminhada.
A canção levanta, é verdade, uma questão primordial e essencial para a ergonomia: a da intervenção - compartilhando o princípio da centralidade do trabalho e da atividade no processo analítico subjacente à intervenção, sempre concebida a partir do lugar certo (“à l’endroit”). Há igualmente nas duas abordagens uma forma comum de construção social com os atores envolvidos e um respeito pela agentividade dos trabalhadores, por suas palavras e pela riqueza dos seus saberes experienciais, onde a perspetiva participativa tem a ressonância de uma comunidade científica ampliada (Oddone et al., 2020).
Nesta base, enraíza-se o mesmo interesse pela variabilidade, seja das condições para a realização da atividade, seja nas estratégias desenvolvidas que permitem ser eficiente ou no plano dos saberes de prudência para preservar a saúde. Uma postura que tem consequências metodológicas, exigindo a diversidade dos níveis de leitura da atividade, uma análise multiescala e ainda uma perspetiva histórico-cultural que carateriza hoje muitas pesquisas ergonómicas e sustenta uma história no presente (Cole, 1996), tão explícita no documentário.
Mas, se há semelhanças entre a abordagem adotada neste documentário e a tradição da ergonomia contemporânea, também há, como vimos, desafios que nos são colocados pela visão de ‘Mulheres das águas’. Acabamos então com algumas questões que resultaram do diálogo que referimos no início deste artigo:
A prescrição no trabalho informal
Uma das razões de ser da ergonomia é de nunca menosprezar a “batalha do trabalho real” (Duraffourg, 2004, p.19, tradução livre) para explicar a complexidade da atividade que sempre se constrói além da tarefa.
Ora, a distinção entre trabalho prescrito e trabalho real não é operacional no tipo de atividade das ‘Mulheres das águas’, em grande parte informal. De facto, como já o sublinhou Nouroudine (2010), esta diferenciação pressupõe a identificação da prescrição e é difícil realizá-la nos processos de produção de normas próprios ao "trabalho informal". A palavra passa então a constituir o veículo essencial da norma, o que expõe mais facilmente aos erros de julgamento e interpretação a respeito dos processos de renormalização no trabalho nestas atividades. Yves Schwarts acrescenta: “mais genericamente, isto diz respeito a toda a dialética ergológica entre normas e renormalizações; como realmente explicar a complexidade das normas quando as dimensões da vida social (econômica, social, religiosa, artística religiosos, artísticos...) se misturam, como acontece com frequência em países onde o trabalho não mercantil e o chamado trabalho informal são importantes” (Schwartz, 2021, p.119, tradução livre).
A visão alargada de saúde
No filme de Roberto Novaes vemos uma visão inovadora da articulação das diferentes formas de saúde. De fato, as intervenções das ‘Mulheres das águas’ mostram muito claramente que sua saúde física e psicológica está intimamente ligada à saúde de seu ambiente e do mangue. Por outro lado, os vários ataques ao meio ambiente na forma de poluição urbana, agrícola ou industrial têm um impacto muito claro sobre sua própria saúde física e mental. Por meio desses depoimentos, Roberto Novaes se inscreve plenamente em uma articulação dos diferentes mundos que produzem ou deterioram a saúde das mulheres, nomeando tanto as exterioridades dos diferentes mundos (urbano, agrícola, industrial) quanto seus efeitos em termos de ameaças ou degradação da saúde. Nessa perspetiva, estamos claramente projetados no atual modelo de saúde pública "One Heath", que segundo a Organização internacional do trabalho (OIT) é “uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde das pessoas, dos animais e dos ecossistemas” 9. Portanto, podemos destacar a capacidade de Roberto Novaes de antecipar tanto os movimentos sociais quanto o desenvolvimento de modelos de saúde pública
O que tende a ser invisível no projeto de intervenção da ergonomia
No contexto do filme, não se trata, como o é em ergonomia, de elaborar um diagnóstico que irá acompanhar o projeto da intervenção. Aqui, a finalidade é de organizar, através da filmagem e da sua edição, a apresentação de uma diversidade de níveis de leitura de uma realidade social. A questão da transformação não é colocada como tal, embora sejam claras as apostas sobre as potencialidades da escola de educação popular (Escola das Águas) para lutar contra as desigualdades e as formas de dominação.
Os processos de recolha de dados passam, em consequência, a ser balizados com preocupações específicas. Logo há registros que merecem maior expansão num ou noutro. Por exemplo tudo o que nos é mostrado no filme sobre a beleza da atividade ou o prazer de a assumir completam na obra de Roberto Novaes as informações sobre os riscos - enquanto a ergonomia se abstém de as referir por serem supérfluas.
Reflexões atuais podem, contudo, chamar a nossa atenção sobre o fato de que o orgulho do "belo trabalho" é uma reivindicação do trabalhador e até mesmo uma necessidade psicossocial para aguentar em empregos particularmente árduos (Loriol, 2021).
A interseccionalidade sem essencialização
O documentário instiga a ergonomia a não negligenciar a noção de interseccionalidade, ou seja, questionar a suposta homogeneidade das experiências das mulheres e admitir que as relações de gênero expressas nas atividades de trabalho não podem ser tratadas independentemente de outras relações sociais, tais como a categoria social, a raça ou a cultura. No entanto, no seguimento da reflexão de (Bilge, 2009), acreditamos que a interseccionalidade pode ser vista como "um meta-princípio que precisa ser ajustado e complementado de acordo com os campos de estudo e os objetivos da pesquisa, e aceitar assim as suas implementações plurais" (Bilge, 2009, p. 85, tradução livre). A integração dessas dimensões na ergonomia pode, efetivamente, representar desafios específicos para a intervenção, quando a identificação de discriminações relacionadas ao gênero ou a categorias raciais apresenta o risco de “aprisionar” as pessoas envolvidas em categorias fixas (Messing et al., 2022) ou incentivar as interpretações individualizantes em contextos onde predomina a vontade de responsabilizar quem assegura o trabalho para explicar os desfuncionamentos do processo de produção (Lacomblez, 2020). A fim de enfrentar este desafio, parece essencial manter o foco na atividade, convocando a abordagem da interseccionalidade para demonstrar que a atividade de trabalho é construída sobre diversas experiências e identidades complexas. Como conhecimento situado, a análise ergonômica encontra, então, princípios comuns com a produção de conhecimento sob um prisma interseccional: análise de implicações singulares de acordo com cada situação, evitando forjar categorias pré-estabelecidas porque nenhuma formação social única pode determinar a complexa arquitetura das desigualdades (Nascimento et al., 2019).
O território como objeto de intervenção e lugar do desenvolvimento da atividade de trabalho
Enfim, o documentário lembra à ergonomia o potencial da análise da atividade quando esta acaba por se encontrar face à complexidade dos desafios de um desenvolvimento sustentável. E aqui Roberto Novaes nos demonstra ainda quanto convém ultrapassar o perímetro da situação de trabalho, ancorando as atividades em análise no que caracteriza o território onde se inserem, alargando deste modo o campo da sua intervenção.