1.Introdução
A complexidade dos desafios socioambientais do século XXI aponta para a necessidade de cooperação ampla na Gestão de Risco de Desastres (GRD) e crises sanitárias, que exigem que conhecimentos acadêmicos e sociotécnicos de gestão, e saberes comunitários se articulem de maneira transdisciplinar e criativa. A criatividade, associada a uma postura ética, viria ao se envolver proactivamente as organizações comunitárias na construção de saberes conjuntos com a gestão e a academia. Esforço este que exige o rompimento de uma lógica hegemônica, em que a associação da academia e da gestão produz formas de intervenção nos territórios, ignorando os saberes das redes locais. Essa produção de conhecimentos assimétricos, unilaterais e impositivos para ser superada necessita da criação de dispositivos cooperativos que busquem igualdade, respeitando a diversidade, é fundamental para que o enfrentamento das emergências climáticas possa ter algum resultado sistêmico na relação global-local.
Os cenários climáticos apontados pelo Painel Intergovernamental para a Mudança de Clima (Intergovernmental Panel on Climate Change, 2021) alertam para o aumento do número de desastres. No Brasil, no período de 2000 a 2019, ocorreram 70 grandes inundações e estima-se que 70 milhões de pessoas foram de alguma forma atingidas e sete milhões diretamente afetadas (OCHA, 2020). Processos de desastres relacionados às enchentes, e a seu reverso, as secas, se combinam e se reforçam, criando uma sequência de sofrimento e abandono contínuo das populações atingidas, intensificando vulnerabilidades anteriores e produzindo novas. Partimos da concepção dos desastres como processos reveladores de vulnerabilização dos territórios, resultantes do modelo de desenvolvimento engendrado que, nos países do sul global, ganham feições especiais pela sua herança colonial. Modelo de desenvolvimento capitalista, neoextrativista, colonial e patriarcalista, produtor e dependente de desigualdades para existir, ancorado numa economia consumo-produção altamente internacionalizada, globalizada, baseado na apropriação desenfreada dos recursos naturais (Santos, 2007).
De acordo com a proposta das epistemologias do sul, entre o norte global e o sul global, emergem linhas abissais de diferenciação que separa zonas civilizadas (zonas do ser, de ser mais) de zonas selvagens (zonas do não-ser, de ser menos): acima estão os humanos reconhecidos como tal, com direitos, humanos/de cidadania/civis/laborais, e acesso à subjetividade, a zona do ser; abaixo estão os não-humanos, os que têm sua humanidade questionada e negada, a zona do não ser. A zona do não ser não é um lugar geográfico específico, mas sim um posicionamento de relações raciais de poder, que ocorre em escala global entre centros e periferias, em variadas escalas e dimensões, até dentro da própria periferia, contra grupos racialmente inferiorizados. Para Boaventura Santos, uma perspectiva contra-hegemônica e decolonial a essa diferenciação desigual, exige uma nova epistemologia, ou constelações de epistemologias, para possibilitar a sua compreensão e superação: uma Ecologia dos Saberes (Santos, 2007).
Pelas tensões provocadas pelas emergências climáticas, o desafio se coloca na operacionalização da proposta das epistemologias do sul, que, para operar, necessita ser singular, local, territorial. Para isso, em nossa experiência, recorremos à uma perspectiva ergológica, levando-a para além dos ambientes de trabalho onde foi gerada.
Com intuito de contribuirmos com esse debate, tendo como combinação forte as propostas das epistemologias do sul e da perspectiva ergológica, descrevemos a experiência de construção de Comunidades Ampliadas de Pesquisa (CAP), movidas pelo Dispositivo Dinâmico a 3 Polos (Schwartz, 2000) em comunidades impactadas pelo desastre de 2011, nas cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro.
A CAP é potencialmente agregadora de outros dispositivos que buscam romper com a lógica de gestão e produção de conhecimento hegemônicas, modelada pelo desenvolvimento capitalista, baseado na herança colonial de vulnerabilidades. A combinação forte aposta na tessitura de um saber aderente, territorial, comunitário de grupos humanos que vivenciaram desastres, conectados à gestão e à academia. Apostamos nas CAPs territoriais como potencial contribuição para a execução virtuosa do ciclo de GRD de prevenção, resposta e recuperação (CEPED, 2014)), fortalecendo uma resiliência singular nos territórios vulnerabilizados ao favorecer uma gestão participativa.
2.Desnaturalizando desastres, expondo vulnerabilidades
Decolonialmente, partimos da discussão acerca do conceito de desastre desenvolvida pela sociologia dos desastres latino-americana (Garcia-Acosta, 2021; Lavell, 2021; Valencio, 2021), que tem problematizado a definição de desastre natural [1] compreendendo o desastre como processo socialmente construído, com dimensões objetivas e subjetivas. E, assim, os alargar para além do espaço-tempo da agudeza dos acontecimentos ao considerar a determinação dos seus nexos sócio históricos.
É a malha de vulnerabilidades territoriais, expressão de desigualdades e iniquidades, que determina não só a possibilidade de desastres, mas também a sua intensidade e gravidade (Valencio, 2010ª), e que expressam muito mais o modelo de desenvolvimento do que os seus chamados eventos detonadores, de origem natural ou tecnológicos, e, portanto, sempre socioambientais. Essa malha é ainda a expressão de como as relações sociais estão organizadas hierarquicamente e por superposição de seus componentes em redes. Podemos dizer que são as relações hierarquizadas em suas desigualdades a última determinação dos desastres. Daí a importância de compreender essas conformações para enfrentamento de desastres, espaço de expressão atual de um conjunto de redes comunitárias, acadêmicas, profissionais, e de movimentos sociais.
Processos de vulnerabilização que pilotam desigualdades territoriais, novas e antigas, que necessitam conceitos atualizados para ecompõ-los como o de racismo ambiental (Bullard, 2004) que permite destacar que a maioria dos desastres socioambientais ocorre em lugares em situação de vulnerabilidade social e em periferias, em que a população predominante é composta por pessoas negras, quilombolas, povos tradicionais e originários. Por isso, como destaca Porto (2011):
(…) é necessário “desnaturalizar” e politizar a condição de vulnerável, o que é feito através do conceito de justiça, assumido não enquanto termo técnico do campo jurídico, mas como noção ampla que coloca em xeque questões éticas, morais, políticas e distributivas relacionadas às operações econômicas, políticas públicas e práticas institucionais que se encontram por detrás de inúmeros problemas ambientais. (p. 34)
Teoricamente, desastres em geral se caracterizam pelo impacto de um evento extremo ou intenso sobre um sistema social, de caráter disruptivo, que causa danos e prejuízos que excedem a capacidade dos afetados em superar as consequências do próprio impacto (Quarantelli, 2015). A sua variação de escala territorial, quantitativamente e qualitativamente, destaca ainda Quarantelli, o eleva da designação de desastre ao de catástrofe. Assim, os desastres são acontecimentos drásticos, que mesclam aspectos sociais - objetivos, subjetivos e simbólicos - da vida de pessoas e dos seus lugares (de moradia, de trabalho, de circulação) e que se estabelecem nas suas singularidades territoriais em função direta ao modo de vida e de desenvolvimento ali estabelecido. São intimamente dependentes do sistema territorializado de objetos e de ações, a ponto de eventos detonadores de desastre serem inclusive a expressão desse sistema. Por essa definição, os desastres não são eventos apenas de origem natural, ou de origem tecnológica, incluem as crises de emergências sanitárias, como a pandemia Covid 19, e, as crises político-humanitárias, com suas migrações populacionais, cada vez mais, massivas.
Em função das mudanças climáticas, a possibilidade de termos cada vez mais catástrofes colocou os governantes mundiais definitivamente debruçados sobre o tema. Preocupações que geram o Marco de Sendai-2015-2030 para desastres (United Nations World Conference, 2015) , a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as Conferências das Partes (COP) para a mudança climática.
A realidade violenta dos processos de vulnerabilização (Acselrad, 2013) impostas aos povos do sul global, expressa por conformações sociohistóricas como o racismo ambiental, associadas a uma necropolítica aplicada geradora de comunidades descartáveis (Mbembe, 2011), não podem mais ser ignoradas. Ficam evidenciadas no extrativismo das mineradoras multinacionais e seus rompimentos de barragens, exemplo de Mariana e Brumadinho (Minas Gerais, Brasil) [2], ou no abandono, pela ausência de políticas públicas, das cidades de sistemáticas enchentes e deslizamentos, associados a crises hídricas, com exemplos múltiplos e continuados no Brasil, em que as cidades serranas em 2011 é apenas mais um deles. Só assim, pode-se compreender a expressão verbalizada por muitos atingidos em seus depoimentos, reconhecendo estarem em permanente desastre porque podem ser esquecidos. Valencio mais uma vez é precisa na descrição da operacionalização da lógica do desastre, que aqui buscamos enfrentar, ao evidenciar o caráter sociopolítico de cada desastre e de suas sinergias:
(…) A via para o inferno, que são os desastres recorrentes, é pavimentada e bem-sinalizada. Nela, muitos entram, mas poucos saem. Os sinais mais relevantes desta via são: (a) o patrimonialismo, que gera vícios incorrigíveis no uso personalista da máquina pública por elites políticas e econômicas (…); (b) a persistência das desigualdades sociais (…); (c) a ausência de um marco de cidadania em torno dos direitos de acesso e uso da terra e da água (…); (d) a inexpressiva organização política dos grupos mais seriamente afetados por desastres (…). (Valencio, 2010b, p.5)
3. O desastre serrano
Desde a fundação das cidades serranas no séc. XIX, resultado da chegada de colonos europeus e do interesse da família real de D. Pedro na região, localizadas à distância média de cem quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, vivenciam enchentes, transbordamento de rios, e deslizamentos de encostas de maneira recorrente. No entanto, o que ficou conhecido como a tragédia serrana [3] marca um ponto de inflexão em todo esse histórico ao estar associado à combinação de uma zona de convergência com fluxos climáticos que partem da Amazônia e se encontram com frentes frias polares e aquecimento do mar, possibilitando chuvas torrenciais no frágil bioma da Mata Atlântica.
Na noite de 11 de janeiro de 2011, seguindo pela madrugada do dia 12, durante cinco horas, chuvas fortes (de mais de 140 mm) atingiram uma área de 350 km quadrados na região serrana do norte do estado do Rio de Janeiro (Brasil), impactando as maiores cidades locais Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e arredores. Ocasionou deslizamento de terras em número recorde (mais de mil) e enchentes generalizadas que obrigaram sete municípios a declararem estado de calamidade pública. Pelos dados oficiais da época, 905 óbitos, 36.237 desabrigados ou desalojados, 43 estabelecimentos assistenciais de saúde afetados e mais de 77 escolas das redes municipais e estaduais comprometidas (Portella & Nunes, 2014). Números considerados subestimados.
A catástrofe serrana se transformou em um marco e impactou toda a estrutura para GRD nacional, com consequentes mudanças nas máquinas governamentais, reformulando planejamentos, instituições e promovendo o surgimento inesperado de outras, como a do Centro de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), da Força de Saúde Nacional e, posteriormente, de inúmeros Centros de Pesquisa em Desatres. Além da reformulação de todo o arcabouço legal nacional envolvendo o tema dos riscos e desastres (Portella & Nunes, 2014).
O desastre serrano demandando novas formas de intervenção, apontou para a falta de planejamento e para o despreparo nacional em lidar com esses eventos em todo o ciclo de GRD: prevenção, resposta, reconstrução. A perceção gerada era de um espaço social caótico, onde as intensas transformações sociais deixavam transparecer as negligências e imperícias do poder público: desorganização e consequente demora nos atendimentos às vítimas; ruídos e conflitos gerados entre os setores da gestão; desvios das doações. A falta de mapas de riscos e suscetibilidades (ou da observação dos já existentes, mesmo que construídos precariamente), a falta de fiscalização em áreas de preservação ambiental invadidas e que sofreram deslizamentos, os planos de contingência de gaveta em todos os níveis da gestão e planos diretores municipais defasados evidenciam o despreparo geral do sistema de GRD brasileiro, que justificam o termo vulnerabilidade institucional. A ele se soma a valorização da própria população ainda sem programas consistentes de educação e sem o reconhecimento da importância das organizações comunitárias e de seus saberes da experiência para prevenir, responder e reconstruir seus territórios.
Pelos isolamentos e falta de mobilidade, é sabido, entre as equipes de resgate e salvamento, que nas primeiras 72 horas do desastre, as comunidades atingidas precisam dar conta sozinhas de suas perdas e danos. Quando o pêndulo do evento extremo oscila com mais facilidade entre desastre e catástrofe, a participação das redes comunitárias é crucial em todo o ciclo de GRD.
4. CAP: Princípios e dispositivos
Nosso grupo de pesquisa acompanha a reconstrução dessas cidades desde 2014 e o recente desastre de Petrópolis em 2022. Diante dessa complexidade, por uma gestão crítica do desastre, em uma perspectiva situada, recorremos à ergologia. Devedora do Modelo Operário Italiano (MOI) (Oddone et al, 2020), que amplifica uma das primeiras experiências da combinação de conhecimentos sociotécnicos e comunitários, sob o nome de Comunidade Científica Ampliada, ergologicamente retrabalhada como Dispositivo Dinâmico a 3 Polos (DD3P) (Schwartz, 2000; (Schwartz & Durrive, 2021), busca na circulação de saberes disciplinares e da experiência, regulada pelo polo ético-epistemológico, atingir um novo saber compartilhado. Ambiente de produção de novos saberes simétricos e transformadores, que associamos aos diversos pensamentos decoloniais para produzirmos uma combinação forte com o que Boaventura Santos chama de Ecologia dos Saberes (Santos, 2007).
Conjunto de epistemologias e seus dispositivos, que simétricos em seus estudos e manifestações, almeja maior aderência de quem os produz e utiliza. Uma ecologia dos saberes operada pelo DD3P, no foco da prevenção a desastres a partir do fortalecimento da organização comunitária, fundamental para se atingir novos modos de saber-fazer e, consequentemente, novos modos de vida. O encontro entre os saberes disciplinares, - que em geral promovem desaderência - e a ela deve sua existência -, e os saberes da experiência, resultado do viver diário nos territórios, necessitam mais do que nunca do polo ético-epistemológico plenamente ativo que respeite e busque a simetria dos saberes, tornando-os visíveis e mantendo-os vivos. Nas palavras de Schwartz, a pergunta orientadora: “(…) como articular saberes tendencialmente genéricos, produzidos segundo argumentos conceituais externos aos projetos e no horizonte globalizado, aos saberes irredutivelmente inerentes à dimensão histórico-local?” (Schwartz, 2009), p. 265).
Recorremos aos conceitos de aderência e desaderência dos conhecimentos (Schwartz, 2009), para avaliar a economia de produção-consumo de um determinado território, na sua interação com os mercados mais ou menos globalizados. Produzir desastres e crises sanitárias, é assim uma das medidas desse desenvolvimento. Promover o bem-estar e a saúde da população de um determinado território, outra. Mas, nas inúmeras vezes, que acompanhamos situações de desastres, entramos na discussão do desenvolvimento territorializado pela porta dos fundos da economia de produção-consumo, pelos desastres e pelas crises, por entre as ruínas e sofrimentos provocados pelas decisões de desenvolvimento que agudizam os processos de vulnerabilização dos territórios. Frutos de uma lógica forjada nos chãos das fábricas fordistas e extrapolada para cada área de organização da sociedade dita ocidental: escolas, serviços, hospitais, instituições de pesquisa, empresas de engenharia e infraestrutura, todas respondem a uma dupla delegação: a direção da produção-consumo nas mãos dos coletivos donos do capital e a operação dessa mesma produção, que exige toda uma sociedade em seu entorno, nas mãos dos coletivos de gerentes e mestres de produção, controladores dos métodos e técnicas. Poder-saber, gestão-conhecimento é a dupla delegação (Callon et al., 2001) espelhados na dominação dos escritórios de métodos e técnicas por sobre o chão da fábrica. O seu distanciamento com relação aos trabalhadores e cidadãos gera uma organização em torno da produção-consumo mais aderente ou desaderente com relação ao território em que se estabelece. Todos os sofrimentos, mazelas e perigos críticos de nosso atual desenvolvimento surgem daí, em que os efeitos evidentes das emergências climáticas são seus horizontes mais gerais. Quanto mais desaderente é a dupla delegação da produção social, maior, sofisticada e complexa é a rede de vulnerabilidades territoriais.
Princípio metodológico das CAPs serranas: Evitar o olhar distanciado da gestão para com os saberes gerados nos territórios. Um tipo de olhar que mesmo quando absorve esses saberes, os disseca da vida comunitária que os produziu.
As CAPs aqui descritas, iniciadas no âmbito do projeto De Nosso Território Sabemos Nós a partir de 2019, agrega um conjunto de dispositivos para incidir sobre o grau de aderência e desaderência no território, promovendo o encontro de saberes entre redes sociotécnicas, redes de gestão e redes comunitárias, em contraponto às desaderências das ações duplamente delegadas: iniciativas estatais que visavam a requalificação urbana e territorial nessas localidades, demolindo residências e reconstruindo habitações em outros bairros distantes, no modelo de conjuntos habitacionais, esfacelando o sentimento de pertencimento ao lugar, promovendo a sua desterritorialização.
O primeiro desafio da CAP é ser capaz de responder à questão: Qual é o nosso território? Ao respondê-la temos definido não só o território, mas também a comunidade pertinente, pois a primeira concepção de comunidade está ligada aos contornos do chão que habita. Na maioria das vezes, territórios são limitados pelos critérios de recortes de bairros definidos pela administração pública, que traça - no mapa oficial - os seus limites compreendendo-o como a menor porção da unidade administrativa. No entanto, os limites desenhados pelo poder público não coincidem com o território “vivido” (Santos, 2011) pela população, isto é, não esgotam a experiência comunitária de suas redes, suas solidariedades, tensões e conflitos. O território vivido são espaços em permanente construção, desconstrução e reconstrução, onde se revelam suas forças e fraquezas, vulnerabilidades e potencialidades, de onde emergem seus poderes, culturas e dimensões simbólicas e subjetivas. Associar território e subjetividades significa defini-lo como território existencial, em que, formações provisórias, em continuidade e descontinuidade, de múltiplos componentes sociotécnicos, culturais, econômicos, midiáticos, tecnológicos, digitais e biopsicológicos, desenham uma existência. (Garcia et al., 2016).
Comparativamente vejamos o exemplo do MOI e seus mapas de risco em ambiente fabril determinado. A resposta à pergunta “qual é o nosso território” é relativamente simples e imediata, composta do chão da fábrica, das hierarquias das redes de trabalhadores, do ambiente de trabalho e de sua organização, das prescrições da produção. No entanto, nos ambientes abertos, porque expressos em redes, dos territórios comunitários, essa complexidade se impõe imediatamente, a ponto de podermos dizer que existe um processo contínuo de definição dos limites de um território que nunca termina. Daí que, faz parte da estratégia da CAP e seus dispositivos, estabilizar as redes comunitárias em potencial crescimento, para diminuir seu esfarelamento contínuo e evitar o desaparecimento possível.
Assim, a partir dos encontros e desencontros entre sujeitos, eventos e relações, o exercício permanente de identificação e apropriação do território favorece a construção de uma determinada e singular memória social, abandonada pela história oficial (Nora, 1993). Em um processo de desastre, pela preservação (ou não) de sua memória coletiva, o território vivido e existencial pode ser resiliente e se “reconstruir melhor” ou simplesmente se desterritorializar e desaparecer.
Combinando dispositivos que, em alguns prevaleceria o método qualitativo e que em outros prevaleceria o método quantitativo, a mediatização busca a superação dessa visão dicotômica, favorecendo a comunicação entre as redes sociotécnicas e as redes comunitárias, respeitando as suas condições e necessidades, mas favorecendo um movimento quali-quanti (e vice-versa), sem rígidas fronteiras. É o que Schwartz, 2009) considera produzir saberes entre aderência e desaderência.
O que queremos dizer? As CAPs nesses territórios foram mediatizadas por dispositivos que ora favorecem a compreensão dos problemas comunitários a partir da perspectiva dos conhecimentos sociotécnicos (disciplinares), ora a partir da perspectiva dos saberes comunitários (da experiência), que confluem para o ambiente de diálogo da CAP (sendo esta o dispositivo âncora de todos os outros dispositivos).
Resumidamente a metodologia de encontros entre comunidades, gestão e pesquisadores, durante o período de 2019 a 2022, seguiu a seguinte construção de dispositivos, que serão mais bem descritos na sequência:
Cartografia social e Censo Comunitário Vivo: para reconhecimento do território pela comunidade e seu pertencimento.
Projeto Memória Comunitária: para resgate da memória de constituição do território vivido e das lembranças do desastre de 2011 e fortalecimento dos laços e afetos comunitários.
Mapas de Índices de Vulnerabilidades Socioambientais das cidades: para estabelecimento de uma linguagem entre a gestão e os territórios, conformando potencialidades e vulnerabilidades comparativamente a toda a cidade.
Aplicativo de comunicação da CAP: para expressão da organização do conjunto de dispositivos desenvolvidos, permitindo a comunicação permanente entre moradores, e entre moradores e gestão.
5. Configuração das CAPs
A comunidade do Caleme, uma das mais atingidas em 2011, está localizada entre o Parque Nacional da Serra dos Órgãos e o Parque Natural Municipal Montanhas de Teresópolis, ocupando 0,874 km². Estima-se cerca de cinco mil moradores. Suas casas estão distribuídas entre as encostas e às margens do Rio Imbuí. A comunidade do Córrego D’Antas, em Nova Friburgo, também muito atingida e com população estimada atualmente em cinco mil habitantes, possui território demarcado pela gestão municipal de aproximadamente 19 km². Seus habitantes estão distribuídos no início e às margens da rodovia RJ-130 (68 km de extensão que liga Nova Friburgo a Teresópolis), e ao longo do rio Córrego D’Antas.
Na primeira reunião para construção de um grupo de trabalho e formação da CAP, expressão territorializada do DD3P, realizamos nas comunidades do Caleme e Córrego Dantas, reuniões com as Associações de Moradores e outras lideranças da comunidade, que apoiaram a execução do projeto e abrigaram a proposta cedendo espaço para que ocorressem os encontros. A construção da CAP em cada território se deu de maneira diferente, respeitando as singularidades locais, com a realização de quatro encontros-oficinas para desenvolvimento das cartografias sociais, sempre aos sábados, uma vez por mês (de agosto a novembro de 2019).
A associação de Córrego D’Antas tem sede própria, enquanto a do Caleme utiliza o espaço anexo da principal igreja católica do bairro para realização dos encontros. Com antecipação, os encontros eram divulgados na comunidade, através de cartazes e contatos diretos com lideranças para multiplicação da informação. Participação em média de vinte a trinta pessoas entre moradores, profissionais ligados as Secretarias Municipais da saúde, defesa civil, desenvolvimento social e ambiente, além do grupo de pesquisadores.
O projeto, apresentado pelos pesquisadores e consensuado com os moradores, técnicos e gestores mais próximos, se estruturou inicialmente a partir de três ações: produção da cartografia social, dos índices de vulnerabilidade socioambiental, que convergem para um aplicativo de comunicação comunitária. No decorrer da realização dessas primeiras ações, acrescentaram-se mais duas: o censo comunitário vivo e o projeto memória. Algumas delas se desenvolveram mais do que outras em função das dinâmicas territoriais e, também, pela pandemia, que dificultou as idas ao campo a partir de março de 2020, retornando em meados de 2022 com ações presenciais. Essas ações têm não só apoiado as comunidades em demandas específicas, mas também favorecendo um novo olhar da gestão para com esses territórios, onde o saber local tenha seu valor reconhecido como produtor de saberes, reforçando o bem comum. Paralelamente às ações nos territórios, são realizadas reuniões com os prefeitos das cidades e grupos de secretários municipais mais diretamente envolvidos com a gestão territorial: saúde, educação, defesa civil, ciência e tecnologia, desenvolvimento social, ambiente, além de outras secretarias que ajudaram no levantamento de dados municipais mais atualizados e não disponíveis em plataformas públicas, como a dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essas reuniões com gestores e técnicos foram importantes para alimentar o trabalho de elaboração dos índices de vulnerabilidades, em processo, e também apoiar algumas etapas do desenvolvimento do aplicativo de comunicação.
Podemos então apontar que temos nas CAPs dessas comunidades um dispositivo de dispositivos que busca estabilizar as redes comunitárias e que o desenvolvimento das CAPs se deu inicialmente a partir das oficinas de cartografias sociais.
Cartografando Lugares, Situações e Trajetórias
As oficinas sempre se iniciavam com uma dinâmica em roda e, no final do encontro, voltava-se à roda para um fechamento. No primeiro encontro, nas duas localidades, criamos nossa árvore dos desejos. Colocamos um grande galho de árvore no centro da roda fincado em um vaso, cada participante escrevia em uma fita de cetim de várias cores, um desejo para a comunidade e após pronunciar seu desejo amarrava-o num dos ramos. A árvore nos acompanhou em todos os encontros se transformando num verdadeiro talismã do grupo.
Meu desejo para o bairro é prosperidade, só que minha visão de prosperidade não é só financeira, sendo um conjunto de questões que fazem a pessoa se sentir bem e plena, a prosperidade que desejo para o bairro é que as pessoas aprendam a cuidar do ambiente, ter união, amizade e que a convivência seja saudável, que tenhamos postos de saúde, campo de futebol, mas tudo isso faz parte, o principal é ter a consciência de cuidar do nosso bairro e das pessoas (Encontro 31/08/2019, Caleme, moradora)
Depois de todo mundo colocar as fitinhas com as palavras eu fiquei pensando, tem uma palavra que dá força a todas essas outras que colocamos ali, a realização, que essas palavras e sentimentos se realizem (Encontro de 28/09/2019, Caleme, moradora).
A segunda dinâmica se consistiu na elaboração de um mural com papel pardo para representação da comunidade através da escolha de palavras, frases e imagens disponíveis no centro da roda ou que também poderiam ser criadas, desenhadas na hora.
Empatia e valor comum, eu acho que as vezes a barreira de dificuldade da empatia é exatamente porque a gente entende que nosso valor é maior e mais forte que o valor do outro. A gente ignora que existe valor que não é o meu e nem do outro, mas que é um valor comum. (Encontro de 21/09/2019, Córrego D’Antas; moradora).
Eu vou escolher política, porque eu acho que a partir do momento que a gente entende o nosso papel na sociedade, a gente pode modificar. Eu vou colocar o olho porque acho que a gente precisa abrir nossos olhos e ter um outro olhar sobre a nossa realidade, e eu acho que política se liga muito às outras palavras, a todas as palavras que estão aqui. Então eu vou botar uma setinha porque, sobretudo, nesse momento que a gente vive, a gente vê o outro querendo se sobrepor ao outro, limitando o olhar, limitando o acesso, acesso à educação, acesso a serviços de saúde de qualidade, a serviços públicos de modo geral. Então eu acho que ela se entrelaça com tudo: solidariedade, empoderamento, você se unir, acho que tá tudo interligado. (Encontro de 21/09/2019, Córrego Dantas; morador).
A terceira dinâmica foi da teia da vida que abriu a terceira oficina cartográfica nas comunidades. Cada participante se apresentou e escolheu uma representação/elemento para ser o guardião. Com a teia de barbante formada entre eles, trouxeram sentimentos vivenciados com as chuvas de 2011. Percebeu-se o quanto estão conectados, a importância do cuidado e de como somos positivamente dependentes uns dos outros. Para a construção da teia, os participantes em roda e de pé escolhiam um membro para jogar o rolo de barbante e assim sucessivamente. O anterior segurava um pedaço deste, para que, ao final a teia estivesse formada Antes de jogar o rolo cada integrante falava um elemento da natureza ou da sociedade para ser guardião: animais, água, natureza, sol, cachoeira, pessoas, rua, árvores, famílias etc. Depois a teia é desfeita cada participante devolvendo o rolo e repetindo o guardião do companheiro/a. Ao final fizemos uma reflexão sobre a ecompõe ia da rede que se formou com a teia, perceber como estamos entrelaçados e nos apoiando. Se a rede estiver forte, ela não se abala, ou rapidamente se ecompõe.
O interessante é que aqui estamos vendo a rede porque tem um fio, mas ela normalmente existe nas nossas vidas e em todos os locais que estamos temos uma rede, sendo essa rede que aqui está visível, mas normalmente é invisível que possibilita a nossa vida, para que a gente continue sobrevivendo, criando, nosso esforço aqui é um pouco isso, termos a ideia de que estamos em rede, e que muitas vezes precisamos expressar as redes para que as pessoas entendam que elas estão interligadas. O nosso trabalho aqui com a cartografia é um pouco isso, vamos ver qual é a nossa rede e que cada tensão que estamos vivendo provoca no conjunto da teia (Encontro de 19/10/2019, Caleme, Facilitadora da dinâmica).
O dispositivo da cartografia social se apresenta como um processo de conhecimento e uma forma de poder, em que por meio do mapeamento social, busca-se dar voz e visibilidade às comunidades. Produzir e registrar informações e percepções sobre o território que se vive e convive, com a possibilidade de apreender, analisar e incidir sobre a realidade. Os objetos cartográficos “vêm sendo utilizados como leituras (sociais) do território que são confrontadas às leituras oficiais e/ou de atores hegemônicos, mas também como instrumentos de (fortalecimento de) identidade social e de articulações políticas” segundo Santos (2011, p.3-4). Pelo fortalecimento da mobilização dos grupos, a cartografia se constitui num instrumento de luta pela garantia de direitos, a partir do reconhecimento coletivo de sua história, marcos territoriais e preservação de memória.
Não há uma única metodologia para a cartografia social, mas sim uma flexibilização de técnicas geográficas, sociológicas e antropológicas que irão intercalando-se, variando de acordo com as especificidades territoriais dos grupos, da cultura, da faixa etária, das demandas políticas. Importante ressaltar que as metodologias utilizadas durante os trabalhos de cartografia social devem conter métodos participativos de transferência de tecnologia e do conhecimento científico como alerta Acselrad (2013).
Portanto, as oficinas foram o espaço que buscou dar expressão à visão dos moradores e seus territórios. Com a duração média de quatro horas, a maior parte do tempo era utilizado para a discussão das vulnerabilidades e potencialidades da comunidade. A partir dos mapas prontos e modificados a cada oficina, eram incorporados os resultados dos trabalhos compartilhados na anterior. Nos mapas foram identificados localidades, rios, nascentes, casas abandonadas, descarte de lixo, igrejas, necessidades de saúde, saneamento, mobilidade, segurança, dentre outros. Os encontros foram gravados e fotografados.
1ª Oficina: Apresentação do Mapa “Cru” do bairro em formato A0 gerado a partir de imagens do Google Earth. Reconhecimento territorial a partir da vista “de cima” e demarcações das principais vulnerabilidades das comunidades. Foram levados três mapas para que o conjunto de participantes se distribuíssem e se debruçassem sobre os mapas e compartilhassem seus saberes sobre o território. Após a sistematização dos registros realizados pelos moradores durante a oficina, em diálogo com alguns técnicos municipais presentes, os pesquisadores avaliavam as novas marcações e consolidavam essas informações na confecção de novos mapas para o encontro seguinte.
2ª Oficina: Nas duas comunidades, realizou-se atualização cartográfica através de imagens de drone (técnica do ortomosaico), para superar a falta de conformidade do Google Maps que proporcionou uma visão fidedigna dos territórios. Com as imagens do drone, as comunidades ficaram mais empolgadas com os novos mapas e aprofundaram as informações que estavam em levantamento desde o primeiro encontro. Foram realizados o reconhecimento de equipamentos e serviços sociais, incrementada a identificação dos principais problemas através da adesivagem sobre o mapa com uma numeração e posterior descrição escrita de legenda pelos moradores. A lista foi crescendo, pois aumentava-se o conhecimento sobre o território e suas necessidades. Discutimos a questão do descarte de lixo acrescentando e corrigindo pontos demarcados no mapa, fomos localizando cuidadosamente onde tínhamos problemas a esse respeito. Localizamos as nascentes do vale e como alguns moradores a utilizam, vimos os locais com poluição de lixo e esgoto que contaminam essas nascentes. Alguns moradores inclusive filmaram e trouxeram as imagens sobre essa poluição. Nesses dias também reconhecemos as áreas de risco de deslizamento, as ruas que sofreram com desmoronamento que impediam a passagem do ônibus, no caso do Caleme, deixando uma parte da comunidade sem cobertura e mobilidade. Localizamos onde há necessidade de obras de contenção, verificamos a ausência de áreas de lazer no bairro e identificamos possíveis locais para isso acontecer. Vimos também problemas relativos às áreas que estão sendo invadidas e viraram estacionamentos, discutimos pontos de apoio e mapeamos todas as manifestações religiosas e igrejas no território. No caso do Córrego D’Antas uma importante preocupação foi com a segurança na rodovia e risco de atropelamento na travessia em frente a creche. Neste momento corrigíamos o que havíamos inserido anteriormente e estava errado, mapeamos as áreas de difícil acesso, novamente checamos as nascentes, demarcarmos às ruas sem iluminação pública. Foi o início de discussão de propostas de novas rotas de fuga em caso de emergência, demarcação dos pontos de ônibus e a necessidade de que o ponto final do trajeto ônibus se localizasse na parte mais alta e limítrofe do bairro pois, realmente, uma parte da comunidade ficava descoberta. Ressaltamos no mapa o rio em azul para que ficasse mais evidente. No caso do Caleme, o rio Imbui é um importante para região e foi proposto que o trecho do rio que os cerca não deveria se chamar Imbuí e sim Caleme, porque, “o Imbui é outro bairro”. Um participante apontou que “o mapa parece um corpo humano, e os rios parecem as veias do nosso corpo”. Assim validamos e corrigindo as legendas anteriores.
3ª Oficina: Com a digitalização e apresentação das proposições comunitárias da oficina anterior em ambiente de Sistemas de Informações Geográficas (SIG). Os bairros ganharam um mapa comunitário com as características exatas de como ele é. Nessa nova rodada de discussões, nos debruçarmos sobre os mapas, avaliando e aprofundando as informações anteriores. Neste momento as questões de saúde ganharam destaque, junto com os problemas de esgoto e saneamento. Discutimos também os pontos de apoio, vimos a localização das sirenes e discutimos as áreas de proteção, identificou-se áreas de proteção invadidas. No Caleme, indicou-se onde consideram o início o bairro, no Mercado Sol, que antes dele é outro bairro. Em todo o processo de compartilhamento nas oficinas das duas comunidades foi gratificante presenciar a troca entre as gerações, pessoas idosas e jovens participando intensamente, extremamente envolvidas e rompendo qualquer barreira de idade. Foi uma constatação o magnetismo proporcionado pelos mapas, as pessoas ficam fascinadas e entretidas na tarefa com muita dedicação e parceria.
Com relação ao lixo tem a questão do comunitário, porque pego meu lixo e coloco lá fora, pronto limpei minha casa… falta consciência comunitária de que eu preciso cuidar do meu quintal, da minha rua, do meu bairro, sendo uma questão de educação que leva a essa vivência comunitária, que é muito importante e que já tivemos, mas precisamos resgatar e cuidar do espaço em que estamos. É uma questão que precisamos trabalhar e começa lá na base, na educação, na creche, na escola, olhar para o bairro com carinho, eu acho que a gente já teve e tem que resgatar. (Encontro de 26/10/2019, Córrego Dantas; morador)
4ª Oficina de validação com toda CAP reunida. Apresentação do Mapa Final de cada bairro. Reflexão dos moradores sobre os elementos cartografados; participação de gestores municipais e grupo de pesquisadores.
Essa questão da interdição que conversamos na última reunião, conversei com o Robson que agora é o secretário, ele falou que é para fazer o procedimento, ir lá pedir a vistoria que eles vão ao local verificar como está hoje, pois a interdição é de 2011, então tem a necessidade de fazer uma nova vistoria e a luz geralmente não pede o relatório de atualização da área, mas a água pede, se for fazer religação de água tem que pedir vistoria na Defesa Civil (Encontro de 30/11/2019, Córrego D’Antas, morador).
Eu não vim na última reunião, estou vendo os mapas aqui e nem sei se foi levantado, mas que pode ser importante identificar onde passa nossa rede elétrica, nós temos a rede de Companhia Nova Friburgo que alimenta alguns bairros, mas temos a passagem de outras três. Isso eu não vi relatado em nenhum lugar, essa informação pode ser útil, pois em uma catástrofe não sabemos nem aonde devemos reclamar. Eu sei que em 2011 tivemos um problema com a companhia pois todo o material foi destruído, nem relógio tinha para repor onde quebrou, pode ser uma possibilidade para se pensar. (Encontro de 30/11/2019, Córrego D’Antas, técnica Defesa Civil).
Nas oficinas, na comunidade do Caleme (cf. Figura 1), demarcou-se as seguintes questões fundamentais: mobilidade urbana; descarte de lixo; áreas do rio mais poluídas; ruas com esgoto a céu aberto; demarcação de pontos de apoio e localização das sirenes; e demarcação de áreas de proteção ambiental e de riscos de deslizamentos e inundações. Nessa comunidade os moradores apresentaram as necessidades do bairro: farmácia, horta comunitária, mais supermercados, calçamento de ruas e cobertura dos pontos do ônibus, iluminação pública e posto de saúde.
Em Córrego D’Antas, as demarcações se voltaram para as necessidades das instituições de educação; de saúde; as fábricas no bairro; depósitos irregulares de lixo e aterro sanitário da cidade saturado que fica no bairro, ocorrendo o despejo de chorume no rio. Os moradores salientaram a inexistência de coleta de lixo na parte mais alta do bairro, que leva estimula a queima do lixo; também destacaram a falta de áreas de lazer e cultura.
Neste encontro com o mapa consolidado, teceu-se outros elos na rede de encontros e valorização de experiências e saberes com novos atores. A cartografia social contribuiu para emergir a autoconsciência do grupo, a construção e o desenvolvimento de identidades próprias.
O território é o mesmo, mas existem várias camadas de história, esse lugar onde era o chão, era criação de porco... é o mesmo território, mas… (Encontro de 30/11/2019, Córrego Dantas, morador).
Além do propósito de fazer emergir as vulnerabilidades territorializadas, evidenciar as potencialidades do território, foi um processo que colocou os participantes diante de uma nova temporalidade, revendo e se confrontando com os fios que teceram suas histórias de vida, tristezas e alegrias. Esta vivência nos impulsionou ao desdobramento dos mapas para as cartografias das trajetórias dos moradores mais antigos, que denominamos projeto memória, no intuito de resgatar a história dessas comunidades como mais uma peça desse ordenamento do território vivo. Memórias vivas contribuem para uma melhor organização social, essa é nossa aposta no enfrentamento das vulnerabilidades socioambientais. Produzir relatos sobre memórias considerando a cronologia e o território, nos âmbitos do social, do geográfico e do simbólico, na perspectiva da construção de lugares de memória tendo como um marco importante o desastre de 2011. Em sua celebre discussão sobre história e memória, em 1993, Pierre Nora, historiador francês, chama atenção para a aceleração da história. A desvalorização do passado é decretada diante da percepção dessa aceleração, e impossibilita a memória de ser absorvida pela história produzida pelos profissionais da história, organizados em vários grupos de historiadores que lutam entre si para produzir várias versões de história, e produzir a História oficial. Nessa disputa dos vários historiadores, a memória autêntica perde espaço. A História oficial desconfia da espontaneidade da memória.
Para registro das histórias de vida estamos realizando entrevistas individuais e coletivas. As coletivas funcionam como oficinas de memória. Convidamos os moradores para uma tarde com bolo e café para contarem suas histórias. Criamos um ambiente acolhedor inspirado na Tenda do Conto (Félix-Silva et al., 2014), onde dispomos duas cadeiras com almofadas, em volta de uma mesa com objetos familiares como porta retrato com foto do grupo, flores, velas e xícara. De um lado senta o morador ou moradora e do outro um dos pesquisadores que apenas estimula a narrativa com a pergunta: me conte como você chegou aqui? Quem já estava aqui? Como era o bairro neste momento? E assim a narrativa se desenvolve de maneira fluida sob a assistência do grupo que está ao redor em semi-círculo. Ao final as pessoas fazem considerações interagindo com o narrador/a. Já realizamos três encontros neste formato, em 2022, que se mostraram muito dinâmicos e potentes. As histórias compartilhadas uniram os afetos, emocionando a todos e reverberando novas memórias. Ao final pretendemos realizar o registro dessas histórias em livro, com fotos e relatos.
Resta às comunidades construir os “lugares de memória”, entendidos como surgidos “do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são mais naturais” (Nora, 1993, p.13). Isto é, ninguém vai contar, por exemplo, o desastre de 2011 como as comunidades que o vivenciaram gostariam que fosse contado. Se não o fizerem todos os detalhes dessa vivência comunitária e dos cidadãos serão simplesmente apagados pela história.
Para que uma lembrança seja reconhecida e reconstruída, as pessoas precisam buscar marcas de proximidade que as permitam continuar fazendo parte de um mesmo grupo, dividindo as mesmas recordações. Trata-se da capacidade humana de guardar, pela lembrança e contra a perda total, reminiscências do tempo passado. Se isso não acontece, segundo Halbwachs (2013), pode-se dizer que uma memória coletiva desaparece. Portanto, a memória é dinâmica e depende de quem e do grupo de pessoas que a faz. A memória coletiva e inclusiva para existir precisa ser de alguma forma mapeada e expressa.
Mapeando Vulnerabilidades e Potencialidades
Articular um novo olhar da gestão vem através da produção de índices de vulnerabilidades socioambientais e o principal objetivo é que a gestão municipal seja capaz de responder unificadamente à questão: O que sabemos sobre o território em foco na sua relação com a cidade? Destaques são dados a áreas importantes para as comunidades: saúde, ambiente, defesa civil, desenvolvimento social e educação.
Para a construção dos índices de vulnerabilidades socioambientais adequamos a metodologia desenvolvida para Portugal pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC) e Instituto de Geografia e Ordenamento Territorial da Universidade de Lisboa (IGOT/UL). A produção de índices de vulnerabilidade social se faz a partir de indicadores socioeconômicos e demográficos disponíveis, levando-se em conta a criticidade local (vulnerabilidades) em contraposição à capacidade de suporte resiliente (potencialidades). Um grupo composto por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz e investigadores do Laboratório Lamce/Universidade Federal do Rio de Janeiro está dedicado a esse trabalho. Espera-se com isso, tornar o território mais visível para a gestão, a partir de seus próprios dados unificados, que necessariamente devem se associar à visão da própria comunidade. O meio de divulgação utilizado para isso se atualizará no aplicativo e no site das comunidades com ambientes dedicados a esse fim.
Outro dispositivo emergiu nesse processo de conhecer melhor as comunidades: um desafio impõe-se na necessidade de manter a dinâmica da cartografia social produzida no primeiro momento da pesquisa com a comunidade. O objetivo deste dispositivo, chamado de Censo Comunitário Vivo (CCV), é que a comunidade possa continuar a responder à questão iniciada pelas oficinas cartográficas: O que nós sabemos de nosso território? E que, a partir das cartografias e mapas de vulnerabilidade, possam avançar nas questões: o que podemos saber mais? Quem e como se habita os domicílios e as ruas de nosso território? Quais são suas características e desejos? Promovendo também o reconhecimento mais fino do território vivido e possibilitando o diálogo com os indicadores de vulnerabilidades.
Neste ponto, foi desenvolvido um questionário aplicado no território, que se iniciou em 2020 apenas on-line, em função das restrições da pandemia, e que estamos no processo de aplicação presencialmente por equipe de jovens moradores junto a comunidade e seus resultados serão disponibilizados na CAP. As primeiras sistematizações dos resultados do CCV foram apresentadas às comunidades com resultados interessantes desse debate. Mais uma vez a conexão com o aplicativo e o site comunitário é fundamental com relação à sua comunicação. Aplicações presenciais do CVV estão sendo realizadas desde o final de 2020 com visitas realizadas por pesquisadores e moradores.
Comunicando Redes: para uma linguagem comum
Os dispositivos de comunicação são fundamentais para que a CAP que integra gestão, pesquisadores e os cidadãos e suas organizações, se mantenha dinâmica e viva. Nesse sentido um movimento final ainda se faz necessário que é aproximar definitivamente gestão e cidadãos através de um dispositivo integrador que favoreça a comunicação de suas partes. Utilizando-se das facilidades disponibilizadas pelo mundo digital foi desenvolvida uma plataforma que integra um site informativo da comunidade associado a um aplicativo de comunicação para os moradores. O site pretende duplicar e validar os problemas e as potencialidades no aplicativo e que também emergem em grupos de redes sociais como Whatsapp em um ambiente de comunicação permanente da comunidade para si e para outros.
Nesta fase de teste, o desafio é que a CAP seja capaz de construir no aplicativo uma linguagem em comum com esses protagonistas, em um conhecimento novo que promova um desenvolvimento mútuo e formativo desses protagonistas e dos próprios pesquisadores e da ciência, reconhecendo o outro e seu saber como legítimos.
Uma dificuldade para além das vulnerabilidades mapeadas é a própria disponibilidade de redes de wi-fi a baixo custo ou gratuitas para os moradores e também a qualidades de seus aparelhos móveis e computadores. A democracia digital ainda não é uma realidade no Brasil. Soluções parciais estão em estudo com disponibilidade de equipamentos para a comunidade em suas sedes ou locais designados, mas o oferecimento de redes de wi-fi públicas deve ser uma meta. Enquanto, o aplicativo não se impõe, as comunidades vêm utilizando as redes sociais mais conhecidas para se comunicar e tornar visíveis as suas reivindicações. Especialmente o aplicativo whatsapp, por sua popularidade entre os moradores e sua fácil utilização, mesmo com suas limitações, tornou-se uma alternativa para as comunidades se comunicarem entre si e manterem a coesão da CAP, promovendo uma agenda de necessidades, eventos e de divulgação de serviços oferecidos pelos próprios moradores e também pela gestão municipal. A comunicação solidária e de cuidado entre os moradores, de problemas e riscos na comunidade, também é um bom resultado dessa mídia.
Como dito anteriormente, a CAP se configura como o dispositivo âncora que abriga todos as ações, espelhada digitalmente no aplicativo, no site comunitário e nas redes sociais. A CAP, real e digital, busca ao dar visibilidade aos interesses das comunidades, criar e apoiar iniciativas que possibilitem a maior autonomia das comunidades. Os resultados já são evidentes tanto para o Caleme como para Córrego D’Antas. No Caleme, a secretaria municipal de saúde disponibilizou um ônibus para atendimento móvel que atende a comunidade diariamente, a espera da compra de terreno ou construção que possa abrigar o Posto de Saúde; a defesa civil dedicou-se a melhor mapear os riscos do bairro e já promoveram simulados de evacuação, rediscutindo rotas de fuga e abrigo; a secretaria de ambiente está dedicada na criação de um programa de formação em preservação ambiental, aumentando também a fiscalização das áreas protegidas e o ônibus refez linhas e horários de passagem no bairro mais adequados aos interesses dos moradores. No entanto, a comunicação não faz também emergir solidariedade e boa vontade, os conflitos de interesses intracomunitários é uma realidade e a boa arbitragem, através do diálogo das partes ainda é um aprendizado em curso e que exige uma grande atenção dos integrantes das CAP. No caso de Córrego D’Antas, um canal mais permanente com a prefeitura foi aberto, facilitando a diminuição da tensão entre a comunidade e a gestão em função da mobilização da comunidade em resistência às decisões da gestão municipal com relação ao território. Assim, temos apoiado as lutas da comunidade para a construção de nova creche e reformas da escola secundária do bairro; para oficializar o posto de saúde como uma extensão do reconhecida do sistema de saúde da cidade e com localização na própria associação de moradores; e pela manutenção pública da discussão sobre o aterro sanitário localizado no bairro. A associação de moradores de Córrego D’Antas é mais estruturada do ponto de vista organizacional por causa do histórico de lutas que a comunidade enfrentou e que a fez mais resistente e orgânica diferente da experiência do Caleme. Em cidades pequenas e médias brasileiras, caso das cidades serranas, existe uma proximidade com quem dirige a gestão municipal e seus órgãos, o que não acontece com as grandes cidades e metrópolis. Essa característica faz com que o ambiente da gestão esteja em conflito com seus opositores de maneira mais presente. As organizações comunitárias bem estruturadas fazem assim a diferença. E as redes das relações de poder e seus conflitos ficam mais evidentes. No entanto, essas redes também se manifestam nas grandes cidades de maneira multivariada e complexa.
A atenção às redes e suas conformações é assim fundamental para a construção de ambientes mais aderentes ao território. Rede-movimento, rede sociais, redes profissionais, redes institucionais, redes pessoais, redes de coletivos, redes territoriais. As redes são híbridas em suas potencialidades e hoje, têm a sua expressão assegurada nas redes digitais com todas as possibilidades que seus encontros oferecem ao contribuírem para: compensar a falta de formação tradicional de seus integrantes; superar a falta de equipamentos e recursos; reduzir a dispersão dos esforços e a falta de estímulo. As redes via web cumprem, agora, muitas funções que antes fazíamos pessoalmente e a partir de longa cooperação e permitem ousar o enfrentamento de problemáticas de maior complexidade, unindo vontades distantes, conhecimentos invisíveis, e capacidades desconhecidas. E é por isso que estão nelas depositadas nossas esperanças de criação de novas formas de mobilização social e novos regimes de produção de saberes cada vez mais democráticos e solidários (Agunin et al., 2010).
6. Considerações Finais
Nos países do Sul, a desaderência imposta por pensamentos universalistas se aproxima do que, no pensamento decolonial, é denominada de colonialidade do poder com sua herança escravagista e patriarcal, expressas por violências de classe, de raça e de gênero. A urgência de sobrevivência dessas populações vulnerabilizadas, exige, localmente, novas epistemes capazes de favorecer experiências de r-existência (existir e resistir) como novas alternativas de se organizar e viver. E, aqui, estamos completamente alinhados na busca de justiças: ambiental, social, cognitiva, interseccional.
A partir de nossa combinação forte apresentamos um conjunto de dispositivos capazes de diminuir a desaderência em prol de maior aderência territorial, privilegiando o saber local para buscar prevenir ou superar essas adversidades advindas do modelo de gestão dominante. Nesse sentido, o sofrimento social na singularidade territorial de um evento extremo, confere às comunidades que o vivenciam a legitimidade de afirmar privilegiadamente suas necessidades. No entanto, esse sofrimento e a sabedoria resultante de sua vivência tendem a ser invisibilizados pelas redes de gestão e sociotécnicas, que se combinam nessa dominação e desqualificam as redes comunitárias. Por isso, defendemos, de maneira intransigente e radical, o seu protagonismo em todo o ciclo de GRD, seja prevenção, resposta ou reconstrução. Populações em permanentes desastres, se o poder público não focar nos grupos vulnerabilizados, continuando com a ênfase somente nos fatores de ameaça, cada vez maiores serão os danos e prejuízos.
Em suma, acreditamos que a CAP dinamizada por esses outros dispositivos, a partir de uma postura ético-epistemológica, pode ser uma estratégia para construirmos coletivamente resiliência comunitária às mudanças climáticas. Nessas situações adversas o mais importante é o respeito, a singularidade e a valorização do conhecimento do território para a produção de novos regimes de saber-fazer. Lembramos do conceito de vida enquanto “atividade normativa” de Canguilhem (2001), que afirma que o ser humano é definido por sua capacidade de instituir novas normas de vida, a partir dos constrangimentos e possibilidades que lhe são impostos pelo meio. Isto é, o que pode parecer anormal pode indicar novos modos de andar a vida.