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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.20 no.1 Porto jun. 2024  Epub 31-Jul-2024

https://doi.org/10.4000/120d2 

Pesquisas empíricas

O cuidar da mãe como um trabalho invisível: a atividade de mães de crianças com microcefalia sob a lupa da ergologia

El cuidado de la madre como un trabajo invisible: la actividad de las madres de niños con microcefalia bajo la lupa de la ergología

Le soin maternel comme un travail invisible: l'activité des mères d'enfants atteints de microcéphalie sous le regard de l'ergologie

Mothers’ care-providing as invisible work: the activity of mothers of children with microcephaly under the magnifying glass of ergology

Jéssika Sonaly Vasconcelos Barbosa-de-Melo1 
http://orcid.org/0000-0003-1627-6258

Fábio de Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0002-0109-1413

Eduardo Breno Nascimento Bezerra3 
http://orcid.org/0000-0001-6629-9306

1Universidade de São Paulo (USP), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, USP. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, São Paulo, Brasil. jessikasonaly@gmail.com

2Universidade de São Paulo (USP), Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, USP. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, São Paulo, Brasil. fabioliv@usp.br

3Universidade Federal da Paraíba (UFPB), CCHLA - Departamento de Psicologia. Campus I, Castelo Branco I, João Pessoa, Brasil. eduardobreno@hotmail.com


Resumo

Buscamos compreender as atividades de trabalho doméstico e de cuidado desenvolvidas por mulheres mães de crianças com a síndrome congênita de Zyca vírus (ou microcefalia). Ancorados na perspetiva ergológica, realizamos um estudo com a participação de nove mães de vítimas da epidemia de Zyca que nasceram com deficiência. Todas as participantes eram do nordeste brasileiro, com média de 28 anos e, em sua maioria, eram negras e com baixa escolaridade. Os resultados revelam que essas mulheres possuem um conjunto de tarefas a desempenhar que extrapola as atividades corriqueiras da maternidade convencional, o que exige um saber-fazer que vai se constituindo na prática, na interação com profissionais da saúde e com outras mães que vivenciam experiências semelhantes. Os achados endossam o debate sobre o trabalho de cuidar, questionado o mito da sua não qualificação e repondo-o como um fazer complexo, que demanda mobilização e inteligência para a sua realização e gestão cotidiana.

Palavras-chave: trabalho de cuidado; trabalho doméstico; microcefalia; Zyca vírus; ergologia

Resumen

Buscamos comprender el trabajo doméstico y las actividades de cuidados que realizan las madres de niños con síndrome congénito por virus Zyca (o microcefalia). Anclados en la perspectiva ergológica, realizamos un estudio con la participación de nueve madres de víctimas de la epidemia del Zyca que nacieron con discapacidad. Todas las participantes procedían del nordeste de Brasil, tenían una media de 28 años, eran en su mayoría negras y contaban con un bajo nivel educativo. Los resultados muestran que estas mujeres realizan tareas que van más allá de las actividades ordinarias de la maternidad convencional, lo que requiere un saber hacer que se construye en la práctica, en la interacción con los profesionales de la salud y con otras madres con experiencias similares. Los resultados refrendan el debate sobre el trabajo de cuidados, cuestionando el mito de que no es cualificado y reafirmándolo como una tarea compleja que requiere movilización e inteligencia para llevarla a cabo y gestionarla a diario.

Palabras clave: trabajo de cuidados; trabajo doméstico; microcefalia; virus Zyca; ergología

Résumé

Nous avons cherché à comprendre le travail domestique et les activités de soins effectués par les mères d'enfants atteints du syndrome congénital du virus Zyca (ou microcéphalie). À partir d’une perspective ergologique, nous avons mené une étude avec la participation de neuf mères de victimes de l'épidémie de Zyca nées avec des handicaps. Toutes les participantes étaient originaires du nord-est du Brésil, âgées en moyenne de 28 ans, majoritairement noires et de bas niveau de scolarité. Les résultats montrent que ces femmes ont un ensemble de tâches à accomplir qui vont au-delà des activités ordinaires de la maternité ordinaire, exigeant un savoir-faire qui se constitue en fait dans la pratique, dans l'interaction avec les professionnels de santé et avec d'autres mères qui ont des expériences similaires. Les résultats enrichissent le débat sur le travail de soins, en mettant en question le mythe selon lequel il n'est pas qualifié et en le réaffirmant comme une tâche complexe qui nécessite mobilisation et intelligence pour la mener à bien et la gérer au quotidien.

Mots clés: travail de soins; travail domestique; microcéphalie; virus Zyca; ergologie

Abstract

We sought to understand the domestic work and care-providing activities carried out by women who fathered children with congenital Zyca virus syndrome (or microcephaly). Anchored by the ergological perspective, we conducted a study with the participation of nine mothers of children born with disabilities due to the Zyca epidemic. All the participants were from the northeast of Brazil, 28 years old on average; most of them were black and had little schooling. The results show that these women have a set of tasks to perform that go beyond the ordinary activities of conventional motherhood, requiring a know-how that is built up in practice, in interaction with health professionals and with other mothers who have similar experiences. The findings endorse the debate on care work, questioning the myth that it is unqualified and reaffirming it as a complex task that requires engagement and intelligence for carrying it out and managing it on a daily basis.

Keywords: care work; domestic work; microcephaly; Zyca virus; ergology

1. Introdução

O ser humano, como ser social, necessita de cuidados de diferentes maneiras e graus ao longo de toda a vida, pois o cuidar e o ser cuidado estão implicados na vida em sociedade (Tronto, 2018) e fazem parte da própria condição humana. Cuidar não é simplesmente uma disposição ética, é, antes de tudo, um trabalho (Molinier, 2011), uma condição para que a vida humana aconteça. A responsabilidade de ser um operador desse cuidado é historicamente atribuída às mulheres que, devido à divisão sexual do trabalho, assumiram o trabalho de cuidado como parte da própria essência do seu ser (Hirata & Kergoat, 2008).

Pascale (Molinier, 2011) define o trabalho de cuidado como uma atividade que assiste as necessidades de uma pessoa, caracterizando uma relação de dependência. Trabalhar com o cuidado é agir, é um fazer com o objetivo de manter ou preservar a vida dos outros, colaborando no provimento de suas necessidades essenciais como comer, estar limpo, descansar, dormir, sentir-se seguro.

Danielle (Kergoat, 2009) argumenta que o trabalho de cuidar feito por mulheres é historicamente invisível, por ser confundido com características supostamente inatas à essência feminina e não como fruto de aquisições na vida social. Para a autora, embora o cuidar como parte do trabalho das mulheres venha paulatinamente ganhando notoriedade social através da denúncia constante dos movimentos de mulheres, essa notoriedade ainda é embrionária, pois a maior parte desse trabalho, sobretudo o doméstico, ainda permanece não sendo considerado um trabalho de verdade.

Esse trabalho permanece invisível, sobretudo quando está sendo realizado para a parentela, sem a tutela das relações trabalhistas, ou seja, sem ser uma relação empregatícia. Embora invisível, Silvia (Federici, 2017) observa que o trabalho doméstico desempenha um importante papel na organização do mercado capitalista, já que representa um pilar fundamental da produção, permitindo a reprodução da força de trabalho. Isso significa que o trabalho doméstico produz os meios necessários para que a classe trabalhadora exista e exerça suas funções. É justamente a invisibilidade que torna a produção capitalista possível, pois libera o gênero masculino para a produção visível de valor.

Outra faceta da invisibilidade é descrita por Pascale (Molinier, 2011), que explica que o trabalho de cuidado é particularmente diferente de outros, pois a sua invisibilidade é a condição do seu sucesso. Ou seja, quando se trata de aliviar o sofrimento, isso requer antecipar demandas, esforçando-se para que a necessidade não seja nem sequer percebida por aquele que é objeto de cuidado. Trata-se de um saber-fazer discreto, segundo a autora, que não atrai a atenção de quem dele se beneficia, pois sua invisibilidade é justamente a característica de sua boa aplicação como trabalho bem-feito.

Com o olhar direcionado para uma análise microssocial, Yves (Schwartz, 2011) conceitua a invisibilidade do trabalho e afirma que todo tipo de trabalho, inclusive o trabalho não remunerado, é composto por uma parte invisível e uma parte irredutivelmente enigmática. Isso quer dizer que o trabalho em si, qualquer que seja ele, é de difícil elucidação, pois haverá sempre uma parte invisível à espera de ser conhecida e outra de difícil compreensão.

Nesse sentido, é possível compreender que o trabalho de cuidar requer lidar com um duplo desafio: a invisibilidade de um trabalho historicamente atribuído à natureza, essência e afetividade feminina (Molinier, 2011) e também a invisibilidade que é própria de toda atividade de trabalho humana, na perspectiva da ergologia, na qual todo trabalho contém uma parte invisível e outra de difícil acesso (Schwartz, 2011).

À vista dessas reflexões e entendendo o trabalho como “produção do viver em sociedade” (Kergoat, 2016, p. 18), refletimos neste artigo sobre como as mulheres cuidadoras de filhos com microcefalia lidam com essa dimensão enigmática da atividade de cuidado no momento de sua materialização.

1.1. Ergologia

A perspectiva ergológica, referida acima, apresenta-se como uma ferramenta útil para compreender a atividade humana de cuidar dos outros. Através dessa lente, compreende-se a atividade de trabalho como um espaço de confrontação com a realidade por meio do debate de normas e valores, confrontação na qual a pessoa que trabalha faz uso de recursos próprios para gerenciar as dificuldades e dar conta das demandas que a vida apresenta, em uma verdadeira dramática da atividade (Durrive & Schwartz, 2021).

Para a perspectiva ergológica, conhecer o trabalho é conhecer a atividade, uma vez que trabalhar, seja ao estilo mercantil ou não, é uma forma de fazer específica de algo mais geral: a ação humana em um mundo concreto. Na ergologia, a atividade é uma dimensão geral e antropológica que emana do interior do trabalho humano (Viegas, 2013). A atividade é uma dimensão universal da vida (Schwartz, 2016) que mobiliza todas as capacidades humanas, na criação de um meio possível de existência humana e social. Ou seja, a atividade de “trabalho é capaz de transformar o meio em um meio humano” (Figaro, 2008, p. 119).

A atividade não se reduz à ação ou a um simples ato que tem uma finalidade, início e fim temporal. A atividade abrange o movimento dos atos mais efêmeros aos mais complexos, mas também abrange a continuidade, a permanência, a transformação, a relação e o pensamento (Figaro, 2008). Schwartz (2011) afirma que a atividade é como a arte e está escondida no interior da alma humana. Por isso, a ergologia a entende como o impulso de vida e saúde, que reúne o que geralmente entendemos como opostos: “corpo/espírito, individual/coletivo, fazer/valores, privado/profissional, imposto/desejado” (Durrive & Schwartz, 2021, p. 337).

Embora não tenha o status social das ocupações formais ou remuneradas e não esteja cercada por um aparato institucional e jurídico, a atividade no cuidar não remunerado é requerida em toda a sua complexidade, pois “a atividade se dá por convidada em toda ação humana” (Schwartz, 2015, p. 347).

Isto é, há um meio que não esperou a mulher se tornar mãe e cuidadora para produzir normas de existência, ou seja, padrões do agir no mundo guiados por valores que permitam realizar a tarefa de cuidar em um meio material e social específico. A mulher está enredada pela realidade concreta e em uma trama de normas, leis e regras tácitas a zelar do que deve ou não ser feito na criação e no cuidado dos filhos e da casa, mesmo que esses não estejam subscritos em algum manual técnico de “como ser mãe”, como também há valores subjacentes aos atos mais efêmeros e cotidianos nesse trabalho. “A mãe de família gerindo o retorno dos filhos da escola; ou a babá gerindo uma comunidade de crianças pequenas” (Schwartz, 2015, p. 347) não têm como escapar de recorrer às normas, escolher entre valores contraditórios, pensar e repensar cada ato, cada escolha, agir e produzir saberes, sejam novos ou velhos, reelaborá-los e compartilhá-los. Tudo isso para dar conta da realidade concreta e subjetiva da criança e das infidelidades do meio, para usar a expressão de George Canguilhem (2001).

Conforme Canguilhem (2009), todo ser vivente está imerso em um meio passível de acidentes. Tudo pode acontecer no aqui e agora, de modo que esses acontecimentos, que são inéditos e imprevisíveis, podem causar um desvirtuamento no decurso habitual com o qual é necessário lidar. O autor denomina esses acidentes possíveis de “infidelidades do meio”. Para ele, o “meio” refere-se a tudo aquilo que faz parte do cosmos/mundo, seja natural, seja social. Todos esses “meios” em que vive o ser humano não são estáticos nem previsíveis. O meio, na verdade, é feito de acontecimentos e experiências inéditas que fazem da vida a história. Ao mesmo tempo, qualquer organismo vivo, ao se destacar daquilo que é inorgânico, tenta impor suas “normas”, isto é, seus padrões de funcionamento ao meio.

Seguindo essa linha de raciocínio, Schwartz (2016) nos faz refletir sobre a dramática da atividade de cuidar das mães ao nos apresentar as várias facetas do trabalho: o trabalho rígido e formal, industrial e mercantilizado, mas também o voluntário, o informal e o doméstico, permitindo concluir que “conhecer o trabalho” é reconhecer as dramáticas que o envolvem.

Pensar a atividade materna de cuidar como uma atividade humana de trabalho é, nesse sentido, essencialmente, pensar que há uma parte antecipável, mas não completamente, pois a realidade não é totalmente antecipável e reserva surpresas: as infidelidades do meio. Ou seja, há uma parcela desse trabalho que se permite conhecer e compartilhar, que é anterior ao aqui e agora, como as normas e formas que existem mesmo sem uma formalidade rígida de transmissão de conhecimento ou relação empregatícia (como refletido anteriormente). Mas, ao mesmo tempo, essa antecipação, por vezes, é contraditória ou insuficiente, devido à impossibilidade de antecipar tudo, então há um vazio. Esse vazio só é preenchido no agora, na atividade sendo realizada por suas protagonistas.

Retomando o exemplo de (Schwartz, 2015) sobre a mãe que gerencia o retorno dos filhos da escola, podemos inferir que ela possui uma série de tarefas de que precisa dar conta no confronto com o real, algumas delas já estão circunscritas em um arcabouço normativo de como proceder, por exemplo: dar banho, dar comida; outras sobrevêm das adversidades, das dificuldades, das infidelidades que precisam ser geridas de algum modo para que o cuidado daquelas crianças seja realizado satisfatoriamente, tanto para ela mesma como para a sociedade que a observa, o que é, para o autor, uma dramática, um constante debate de normas e valores.

1.2. Cuidar

Durante cerca de um ano e meio, de novembro de 2015 até maio de 2017, o Brasil vivenciou um surto de Zyca sem precedentes. Esta infecção, considerada uma doença benigna até então, foi a causa de um aumento acentuado no número de fetos e neonatos com um desenvolvimento cerebral incompleto em mulheres que a contraíram durante a gestação (Lowe et al., 2018). Sabe-se atualmente que a infecção causada pelo vírus Zyca é responsável por danos embrionários fetais e neonatais, cuja principal característica é a microcefalia (Duarte et al., 2017; Mlakar et al., 2016).

As mulheres cujos filhos foram vítimas do surto de Zyca no Brasil, e que foram colaboradoras na pesquisa de (Barbosa-de-Melo, 2023), foram impactadas com uma transformação radical de suas vidas, vivenciando a intensificação do trabalho de cuidado não remunerado e a sua distribuição desigual entre os gêneros (Clímaco, 2020). Essa intensificação ocorreu de modo permanente, pois atingiu suas vidas e a saúde de seus filhos desde a gestação, nascimento até o desenvolvimento futuro da criança, transformando por completo o destino da família.

Estudos sobre a microcefalia decorrente do surto de Zyca demonstraram que as principais vítimas no Brasil já estavam entre as camadas mais vulneráveis da população, sendo suas mães mulheres jovens, negras e pardas, pobres, com baixa escolaridade e que vivem em regiões periféricas com alta densidade populacional ou em áreas remotas do sertão nordestino (Vilharba et al., 2023). Foi uma epidemia localizada geográfica, política e socialmente (Clímaco, 2020).

A descoberta dessa nova condição rara de saúde promoveu uma corrida acadêmica para compreendê-la. Estudos diversos foram empreendidos: o nexo causal Zyca-microcefalia (Marcelino et al., 2023); os desafios da maternidade nessas condições (Silva et al., 2020); o impacto familiar ou as mudanças na dinâmica familiar (Vale et al., 2020); as configurações da rede de saúde pública (Pedrosa et al., 2020); a saúde mental das mães (Bulhões et al., 2020). A abundância de pesquisas na área e a constante cobertura midiática, sobretudo no período mais crítico entre 2015 e 2017, dotaram a sociedade civil e acadêmica de informações sobre o tema. Dessa maneira, as mulheres que são mães de crianças com microcefalia em decorrência do vírus Zyca não foram ignoradas pela exposição social midiática - pelo menos em um primeiro momento -, elas foram representadas nas pesquisas acadêmicas e são alcançadas pelas políticas públicas. Apesar disso, chama-nos a atenção que elas sejam caracterizadas, necessariamente, como mães desempregadas, pobres, vítimas, abnegadas, dependentes, mas não como trabalhadoras que desenvolvem cotidianamente uma atividade concreta de trabalho.

Cuidar de uma criança com deficiência, assim como qualquer outro trabalho, requer a observância de normas, regras e valores que são geridos por meio de escolhas sempre presentes na atividade concreta, mas nem sempre perceptíveis facilmente, mesmo por quem realiza a atividade. Ao nos convidar a olhar o microssocial da atividade, a ergologia nos ajuda a identificar o particular, o íntimo, o que geralmente não se pode ou não se consegue ter como objeto de conhecimento e apreciação de tudo que não está implicado no ato em si. E que, ao mesmo tempo, torna o trabalho possível de acontecer (Trinquet, 2022).

Este artigo busca descrever a atividade de mães cuidadoras de filhos pequenos com microcefalia e compreendê-la a partir da ergologia com vistas a problematizar a sua invisibilidade e esvanecimento de sua significação social como trabalho.

2. Procedimentos metodológicos

O princípio metodológico norteador da pesquisa, que é objeto de aprofundamento analítico neste artigo, foi seu caráter essencialmente qualitativo, tendo como participantes nove mulheres que são mães de crianças com microcefalia e trabalham de maneira integral no cuidado dos filhos, todas provenientes do nordeste brasileiro, dos estados mais afetados pela epidemia de Zyca.

São mulheres em sua maioria negras, com baixa escolaridade (a maioria com ensino fundamental incompleto), com idades que variaram entre 20 e 36 anos, à época da pesquisa, e dependentes financeiramente do Benefício de Prestação Continuada (BPC). O BCP compreende um benefício assistencial no valor de um salário-mínimo concedido pelo governo federal brasileiro à pessoa portadora de deficiência, independentemente da idade, e ao idoso que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família (Decreto-Lei nº 12.435, 2011).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino em que foi realizada. O contato com as participantes foi estabelecido através de uma associação de mães de crianças com microcefalia, na pessoa da presidente, que fez a ponte de diálogo entre a pesquisadora e as mães associadas.

O encontro com cada mãe seguiu um roteiro prévio que serviu como apoio no decurso da conversa. Tais encontros ocorreram de modo remoto e diversificado: por meio de aplicativos de videochamada, conversa por texto e de ligação telefônica. Este procedimento foi escolhido por causa da pandemia de covid-19, visto que, na época, estava em vigência o afastamento social como medida de proteção social à saúde. Os áudios dos encontros foram gravados na íntegra, mediante autorização verbal das participantes, e, posteriormente, transcritos. De modo semelhante, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi apresentado verbalmente pela pesquisadora às participantes, que consentiram verbalmente. Os nomes a seguir são fictícios.

A metodologia de análise apoia-se principalmente no uso das lentes teóricas da ergologia (Schwartz, 2015). Com base em suas ferramentas teóricas e na atividade dialógica desenvolvida com as mães participantes, na qual o trabalho de cuidar foi posto como objeto de reflexão, foi possível construir temas de análise considerando a interação dialógica (Alvarez et al., 2015). Assim, percorremos um vaivém entre o diálogo com as mães, os objetivos do presente estudo e a démarche ergológica, de modo a construir uma reflexão pautada na perspectiva mencionada, que permitiu definir três eixos de análises que fluíram teoricamente e ao longo dos diálogos.

3. Resultados e discussões

3.1. O corpo-si em ação: a atenção como atividade primordial

De acordo com Pierre Trinquet (2022), falar sobre a atividade de trabalho não é fácil, em geral, fala-se mais sobre o trabalho prescrito, aquilo que é visível, como normas, regras e condições físicas, do que sobre a atividade concreta e real. Esta permanece imprecisa, pois se trata da intimidade das pessoas, está submersa no interior de um diálogo consigo mesmo, na mente, no corpo e nas interações.

As mães cuidadoras apresentaram certa dificuldade de expressar seu fazer diário. Ao ser questionada sobre sua rotina, Raissa trouxe-nos pistas da atividade de cuidar:

Jéssika: E sobre o seu dia, Raissa, como é ele? O que você costuma fazer na sua semana, por exemplo?

Raissa: Meu dia a dia é tipo... dedicado a N. mesmo. Nos deveres de casa [risos]... dar atenção, faço fisio. Até fisio eu estou fazendo em casa agora por conta da pandemia. Mas assim, no dia a dia é dentro de casa mesmo.

Jéssika: É, o que você precisa fazer para tomar conta dele todo dia? Raissa: Que eu faço com ele? Jéssika: Sim.

Raissa: Dar banho, dar comida, que eu brinco com ele, converso o dia todo, a minha companhia é ele. Então assim, tudo que eu faço eu falo pra ele: “N., vamos tomar um banho?”. Vou e banho. Então tudo, tudo. É... pego no braço né, porque às vezes ele está um pouco abusadinho de só ficar sentado na cadeira, então sento com ele na cadeira de balanço e fico se balançando com ele. É a atenção dedicada a ele mesmo, né. É o dia todo ele, o dia todo.

Raissa se utiliza de duas expressões significativas: “dar atenção” e “atenção dedicada a”. Essas expressões podem não sublinhar uma atividade concreta específica, mas é um componente fundamental para que o trabalho de cuidar aconteça. A atenção dedicada a uma pessoa está relacionada a uma capacidade de conexão com outro ser. Nesse sentido, Raissa se mantém atenta aos estímulos que seu filho lhe fornece e, além disso, busca interpretá-los constantemente.

A partir dessa capacidade, que não é apenas cognitiva, é possível atingir um estado mental no qual há uma disposição para uma pessoa agir de maneira não indiferente com outra pessoa, dando-lhe importância. Remete também a uma preocupação constante quanto ao bem-estar da pessoa, observando-a e suprindo suas necessidades, além das demonstrações de afeição que podem estar presentes na maternidade.

A atenção, portanto, faz parte da atividade do cuidar. Mas ela não está tão claramente presente como uma tarefa prescrita e observável. A atividade atencional realizada pela cuidadora está presente em toda a atividade de cuidado, prevendo e atendendo às necessidades da pessoa cuidada. Nesse sentido, compreendemos a atenção como um pilar importante para que o trabalho de cuidar aconteça e, ao mesmo tempo, como aquilo que justamente promove sua invisibilidade social, uma vez que o cuidar só é percebido quando a necessidade se torna evidente (Molinier, 2011).

Na língua portuguesa, a atenção está presente no próprio sentido da palavra cuidar. Por meio dos tradicionais dicionários (Priberam, 2023 ) e (Michaelis, 2023 ), podemos identificar que “prestar a atenção” é uma faceta do cuidar, estando presente no uso que fazemos desse verbo, além dos sentidos de pensar, de se interessar, agir com prudência, trabalhar, tratar, dentre outros. Na língua inglesa, a compreensão sobre o care também abarca a noção da atenção. Conforme Joan (Tronto, 2018), o care é uma atividade humana que se efetiva por meio dos caminhos da disposição mental e da ação. A disposição está justamente relacionada ao estado do pensar no outro, uma carga mental e afetiva destinada ao objeto de cuidado, enquanto a ação é o conjunto das atividades cotidianas. Por meio dessa reflexão, compreendemos que a disposição mental para cuidar se efetiva pela atividade atencional, ou seja, é como um pré-requisito para a ação. Só assim é possível à cuidadora identificar o momento certo para agir e suprir as necessidades daquele que é cuidado. Este saber (das necessidades fisio-emocionais da criança) somado aos sinais que traduzem um bem-estar ou um mal-estar são necessários para tomar decisões e fazer escolhas de como e quando proceder.

A atividade atencional de nada serviria se não fosse acompanhada do saber investido. Um saber que é sobre as necessidades da criança. Por isso, ao mesmo tempo que a atenção demanda um saber, ela também o promove. A esse respeito o trecho da conversa com Iara é esclarecedor:

Jéssika: E para você cuidar disso, como é? Você precisa fazer algo especial? Iara: Não. Eu fico prestando atenção. Porque o tempo muda, começa a chover, aí ele começa a piorar com o nariz, fica com o nariz entupido, fica com secreção. Aí eu começo a lavar o nariz dele com soro ou senão eu vou para o antialérgico, e se eu ver que ele não está melhorando, eu vou para o otorrino, para ele passar outro remédio mais forte. Jéssika: Entendi. E você falou que cuidava de crianças, tipo creche. Você percebe se tem uma forma de cuidar diferente daquelas crianças e dele? Iara: O que é novo de diferente é que L., como ele é especial, ele não fica normalmente como as outras crianças, ele não fala como as outras crianças, não tem aquela noção que criança tem. Jéssika: E o que muda na forma de você cuidar? Iara: O que é diferente é porque pra tomar banho é com eu, pra dar comida é comigo, eu coloco ele sentado, mas tenho que ficar ali olhando ele pra ele não cair, por isso eu acho muito diferente das outras crianças. Porque as outras crianças, você coloca ali sentada e ela fica, você coloca uma bolacha na mão delas e elas comem só. Com L. é tudo diferente, tem que eu ficar com ele.

Quando questionada sobre sua atividade e se faz algo diferente por causa da doença do filho, ela primeiro responde que “não”, ou seja, ela entende que nada faz de diferente, contudo, a descrição que se segue é de um volume considerável de atividade, principalmente, interior (mas voltada para o exterior, na forma de atenção e presença). “Prestar atenção”, “ver”, “olhar” e “ficar com” são expressões usadas por Iara que descrevem seu estado de alerta e vigilância para com o filho, fazendo a convocação dos seus sentidos, a sensopercepção que vem da audição, visão, tato, entre outros sentidos necessários para executar o seu trabalho. Além disso, essa atenção não se dirige apenas para a criança, é necessário um olhar atento ao ambiente. Todas essas percepções diárias do que pode ou não acontecer chamam a atenção da mãe para a criança, para o seu bem-estar. O que acontece em seu entorno emite um sinal de que algo deve ser feito para promover o bem-estar da pessoa cuidada.

Outra faceta da atividade atencional se expressa pelo estado de alerta.

Ana: É, ser mãe já não é fácil, a maternidade em si já não é fácil, e quando a gente tem uma criança especial, que ela depende da gente, aí é mais complicado ainda, requer ainda mais atenção, muito mais cuidado, requer muito da mãe. É muito puxado, porque você tem que tá ligado a todo momento, você tem que estar em sinal de alerta o tempo todo. Jéssika: Sinal de alerta pra o quê?

Ana: Se ele tosse, você já fica com medo dele broncoaspirar. Se está com alguma coisinha, você já tem que ficar ali observando o tempo todo, se tá... É bem complicado. Assim, essa semana eu estou bem pra baixo, cansada, sinto muita dor de cabeça. Se eu pudesse eu estava só deitada quieta no meu canto, mas infelizmente não dá.

Estar alerta aos sinais que o corpo da criança emite é uma atividade atencional primordial para as mães cuidadoras. Esse estado de alerta vem acompanhado de saberes particulares a respeito do que é um quadro de bem-estar geral e o que não é, portanto, um estado de “normalidade” ou estabilidade. Por exemplo, diferenciar uma respiração congestionada de uma regular é necessário para poder agir corretamente. Pois, para saber se há um problema, é preciso ter conhecimento da normalidade daquela pessoa que é cuidada, somada às suas particularidades. Ou seja, é por um saber íntimo que se entende o que é o estado basal de bem-estar do ser cuidado.

A atenção como uma atividade interior e ao mesmo tempo do corpo nos remete ao corpo-si. (Schwartz, 2019) convida-nos a refletir que o corpo, assim como a mente, faz a atividade interior acontecer. Não pensamos no corpo como oposto à mente, em um dualismo puro, mas numa imbricação. O corpo não fala, mas faz, age para que se possa viver, pois há nele saberes escondidos, provisórios ou definitivos, tornando possível o trabalho acontecer.

O saber presente por meio do gesto na atividade não é imediatamente visível (Nouroudine, 2011), o saber do corpo é algo que se sente. Quando uma mãe sente pela sua pele - pele com pele - que algo está errado, que a criança está mais fria ou mais quente que o habitual, é necessário tomar uma atitude ou averiguar, é algo que se sente e é difícil de explicar. Quando a criança convulsiona, a mãe precisa identificar, cronometrar, chamar a criança, abraçá-la, seu corpo age sob pressão e realiza sobreposições de tarefas, convocando todos os seus sentidos, inteligência, memória, atenção, percepção, tomada de decisão, mobilizando-se por completo, envolvendo o seu corpo-si, pois a vida está por um fio e em suas mãos.

Por isso, compreendemos que a atenção investida na pessoa cuidada é o corpo-si em ação. Quando Ana (no diálogo anterior) nos fala sobre seu estado de alerta para a criança não broncoaspirar durante a administração do alimento, ela nos fala sobre uma percepção singular, nos revela o seu corpo-si em sinergia com os estímulos sensoriais emitidos pela criança. A capacidade de ouvir os grunhidos, de perceber que a alimentação entrou pela via correta mesmo sem ver, expõe o uso de si em toda a sua singularidade, como também toda a sua grandeza.

3.2. A atividade de cuidar complexificada pela condição rara de saúde da criança

Podemos supor que a atividade de cuidar de bebês ou crianças pequenas sempre existiu. Ainda que com grandes variações e diferenças socioculturais, conseguimos observar um fio condutor que sempre esteve presente para a manutenção da vida, como parte da condição humana, pois cuidar dessas pessoas em formação envolve necessariamente: alimentação, higiene, descanso e socialização. Marta faz uma descrição das suas tarefas:

Jéssika: E em casa como é a rotina dela? E a sua também. Marta: Em casa a rotina é: dar comida, dar banho, botar para brincar um pouquinho, chega na hora de dormir, descansa. Arrumo a casa, lavo roupa, tudo de casa. E ele assim, me ajuda também, o marido, me ajuda com o outro. Pronto, eu saí e ele ficou. Aí ele já foi deixar o outro na escola, aí fica em casa e faz alguma coisa, às vezes faz o almoço, às vezes tem preguiça e não faz, espera eu chegar. Às vezes eu já deixo pronto também. Aí pronto, aí o dia a dia é cansativo mesmo, quando chega de noite eu estou só o pó.

Alimentar os filhos é básico na maternidade, mas, para as mães entrevistadas, o alimentar o filho vem acompanhando de maior complexidade no fazer. Essa tarefa precisa ser feita de uma maneira específica, com técnicas que vão além do repertório das pessoas em geral. Isso porque, a maioria das crianças com microcefalia apresentam disfagia, uma dificuldade para engolir alimentos sólidos, líquidos e até a própria saliva (Duarte et al., 2019). Os problemas de deglutição levam à necessidade de alimentação por meio de uma sonda de gastrostomia (GTT), cuja administração requer um conhecimento específico, que não é próprio da maternidade típica, mas desenvolvido e aperfeiçoado na maternidade de mães que convivem com a deficiência. Marta compartilhou que administra a alimentação da filha por meio de um equipo e que a preparação do alimento tem que ser sempre feita no mesmo dia:

“Tem que ser tudo do mesmo dia... eu só dou feijão a ela se eu fizer naquele dia, se eu não fizer, eu cozinho batatinha, cenoura, chuchu, beterraba, jerimum e um peito de frango dentro, aí, depois de cozido, eu bato aquela quantidade no liquidificador, que ela come de 120 a 150 ml. Aí diluo com a água e guardo o restinho para a janta”.

Com a administração da GTT para alimentação, a limpeza da sonda também é uma tarefa importante e singular dessa maternidade. Marta explica:

“Eu mesmo tiro, lavo e boto de volta, só que não é necessário sempre não, só tira quando tá muito suja, é que a gente tira da barriga. Eu aprendi tudo isso viu. Tudo isso o médico disse que era para a gente aprender, para fazer em casa para não levar para o hospital, não ficar indo para o hospital, porque hospital é outro risco de bactéria”.

A limpeza da sonda é uma atividade de cuidar emprestada da prática da enfermagem. É um saber em saúde muito especializado e próprio de uma categoria profissional que encontra aderência no trabalho de cuidar de crianças com uma condição rara de saúde. Ao explicar sobre a limpeza da sonda, Marta nos fala sobre o banho da sua criança, uma tarefa que assume uma intensidade maior quando a criança cresce.

Jéssika: E para dar o banho dela? Marta: Eu morno água e coloco dentro da banheira, aí eu sento em uma cadeirinha. Ela tem a banhita dela, só que como eu estou em uma casa que eu me mudei agora, não tem chuveiro quente. Tem, mas é do sistema solar, não sei se você soube das casas que entregou, tem sistema solar, aí eu não dou banho com essa água quente, uma vez que eu dei ela adoeceu, eu não sei se é psicológico meu ou se tinha que adoecer de todo jeito. Aí eu amorno água e ela toma banho na banheirazinha normal de bebê, porque eu não consegui me adaptar ao chuveiro, aí sento na cadeira e dou banho. Jéssika: A banheira não é pequenininha para ela? Marta: É pequena, ela senta e fica deitadinha, e aí eu estou lá sentada também no banco para poder dar banho, aí pego ela no braço, chego, coloco na cama, “né, gorda?” (pergunta para a criança), aí boto a toalha, pego nos braços e levanto ela, aí coloca ela na cama, faço a limpeza da gastro, porque tem isso aqui ó (mostra a sonda) aí coloca uma gazezinha. Troca isso aqui (aponta para a sonda).

Um banho de banheira é realizado em bebês que são pequenos e leves. Com o passar do tempo, a criança cresce e ganha autonomia, podendo receber esse cuidado de pé e logo aprender sozinha a realizá-lo. Por volta dos cinco anos, idade com que a filha de Marta estava na época da entrevista, as crianças assumem uma autonomia importante e conseguem, em sua maioria, realizar sozinhas esse autocuidado.

Diante das variabilidades impostas pela deficiência e pelas condições financeiras, foi necessário que as mães entrevistadas realizassem a gestão do banho. Ou seja, gerir as variabilidades da melhor forma possível para se produzir melhores condições humanas e econômicas (Trinquet, 2022). A banhita é um equipamento essencial para que o banho de uma criança com deficiência seja realizado da maneira mais confortável também para as cuidadoras, que podem executar o trabalho sem segurar o peso da criança no colo ou, por exemplo, ficar agachada em uma posição inadequada diante de uma banheira ou bacia. Entretanto, esse equipamento é de alto custo, de modo que as mães deste estudo que o possuem adquiriram-no por meio de doações.

As limitações no desenvolvimento da autonomia de uma criança com deficiência severa acarretam para as cuidadoras a perpetuação da tarefa de dar banho. Com o passar do tempo, essa demanda se intensifica devido ao tamanho e ao peso da criança. Para dar conta, as mães lançam mão de estratégias diversas. Marta prefere a banheira, outras utilizam a banhita e outras ainda preferem dar banho com o filho no colo. Já Iara encontrou outra maneira de dar banho: “Para dar banho nele, eu dou em uma bacia... é uma bacia bem grande, de 100 litros, mandei fazer uma mesa e coloco a bacia em cima da mesa, aí dou banho nele assim”. Através de sua inventividade, Iara desenvolveu seu próprio jeito, utilizando equipamentos feitos para outras finalidades a fim de aliviar o peso da criança e melhorar a sua própria posição.

Por existirem situações como essas é que a ergologia compreende que, para tornar o trabalho possível e vivível, é necessário gerir as variabilidades, pois nada acontece da mesma forma de um dia para outro ou de uma situação para outra. Sempre há o meio com suas infidelidades, fracassos e erros que fazem parte da história de cada pessoa na medida em que o mundo é permeado de ineditismo (Borges, 2004). Assim, gerir esse meio é fazer uso de todos os recursos que estão disponíveis, recursos que são materiais e imateriais, de si mesmo e dos outros com destreza e inteligência.

Planejar, organizar e fazer escolhas envolvem uma atividade de antecipação constante, um esforço físico e cognitivo deliberado é realizado para alcançar um resultado concreto. A esse respeito, na fala de Aline sobre seus itinerários terapêuticos, ela versou a respeito da necessidade de antecipar e planejar seu trabalho diário.

Jéssika: Você tem que acordar cedo para ficar pronta? Aline: Isso. Eu tenho que dar banho em C., tenho que ajeitar as comidinhas dele, tudinho. Eu vou tomar banho, vou me arrumar, arrumar a bolsa dele, aí quando o carro chegar já está tudo pronto. E às vezes eu dava uma preguicinha de cozinhar à noite, aí no outro dia quando eu chegava o pai dele já estava trabalhando, quando chegava comprava uma quentinha e nós almoçava. Jéssika: Mas será que era preguiça ou era cansaço porque você saía bem cedo? Aline: É bem cansativo, porque, assim, quando ele vem acordar, ele acorda umas oito horas, oito e meia, quase nove horas, e quando era dia de atendimento ele acordava muito cedo e ficava muito abusado.

Ao levar a criança ao atendimento médico, além da tentativa de antecipar as variabilidades na arrumação da bolsa, também é necessário planejar a sequência de atividades e sua ordenação para que se torne viável passar horas em um ambiente não domiciliar. Aline esclarece que precisa antecipar a organização da casa e da cozinha, de modo que consiga suprir as suas necessidades fisiológicas e as da sua família. A atividade mental de gerir o meio, antecipar possibilidades, organizar e controlar as variáveis é anterior à execução concreta da tarefa, uma atividade interior, invisível, mas fundamental para dar conta das demandas do dia.

O trabalho de cuidar não envolve exclusivamente as atividades mais diretas de contato com a criança, como explicitado anteriormente, mas abrange também as atividades domésticas, como organização da casa, comida e roupas, que são atividades indiretas de cuidado, e cuidado de outros, mas essenciais para o sustento da vida. Essas atividades também demandam gerir o meio com suas possibilidades e variabilidades. Como nos explica Iara:

Iara: Agora como está nessa pandemia, eu não estou saindo com ele, estou saindo com ele só uma vez por semana, que ele vai para o cavalo amanhã, que lá continua. E o dia que eu não saio com ele, que eu estou em casa, a rotina é: eu me levanto, escovo meus dentes e vou tomar café, aí a rotina é: vou fazer o almoço, arrumar a casa, vou lavar roupa, ajeitar o comer de L., esperar L. acordar e ficar mais com ele do que fazendo as coisas em casa. Jéssika: E antes da pandemia, como você conseguia sair todo dia e ainda fazer as coisas em casa? Iara: Antes da pandemia que eu saía todo santo dia, eu fazia as coisas separado. À noite eu lavava roupa e limpava a casa, e a comida eu fazia, tipo, pra hoje e pra amanhã. Porque antes da pandemia nós tinha a casa de apoio, que era a casa de microcefalia. Era uma casa de apoio pra nós. Aí como L. tinha atendimento pela manhã e pela tarde, aí eu saia pela manhã e ia para um atendimento e depois ia para essa casa de apoio para ela tomar um banho, almoçar e descansar um pouquinho e a tarde a gente ia voltar para um novo atendimento.

Iara nos apresenta a gestão de si mesma, seus recursos e tempo. Ela precisa organizar e planejar suas saídas, sua alimentação e os cuidados domésticos com o lar, ou seja, precisa antecipar as necessidades do dia presente, mas também dos dias subsequentes. Por exemplo, a comida a ser feita vai ser qual? Quanto dias vai durar? Quando precisa fazer novamente? A roupa vai ser lavada quando? Quando vai faltar roupa? A casa vai ser varrida em qual horário? Questões que norteiam o dia, planejando o dia presente e o futuro.

Além disso, outro aspecto fundamental da atividade de cuidar dessas crianças e que não se trata apenas de simples execução se refere à administração dos medicamentos. A maioria das crianças com microcefalia tomam algum tipo de medicamento controlado. A administração do medicamento é responsabilidade do cuidador, que precisa gerir o tempo, espaços e recursos para efetivar essa atividade, principalmente quando se trata de uma criança que toma vários medicamentos ao dia. Fazer gestão dessa administração requer atenção e gerência das variabilidades por parte do cuidador. Marta nos conta que, quando a medicação, coincidentemente, se encontra no mesmo horário de outra atividade, ela precisa buscar estratégias para lidar com a situação:

Jéssika: Vai um carro da prefeitura te pegar?

Marta: Vai pegar.

Jéssika: E você não se arruma não?

Marta: Aí está aquele rebuliço todinho, já tem ajeitado o menino, aí ela já está tudo prontinho já tem tomado o banho dela, quando é sete e vinte eu estou tomando o meu, eu vou tomar o meu e V. fica lá deitadinha. Tem dia que ela toma banho dormindo porque não acorda, a água é morninha aí ela relaxa, aí eu deixo ela lá na cama deitada e vou “simbora” tomar meu banho, aí me ajeito todinha e oito horas o carro chega e a gente já tá toda pronta. Ela já tem comido, às vezes, é para dá o remédio às oito, mas eu adianto porque não pode dar aqui por conta da sonda porque se não vaza na hora da fisioterapia. Quando é oito horas que o carro chega eu digo “espera um segundo” que eu estou terminando de dar a medicação dela. Aí ele fica esperando, para poder a gente sair.

Marta escolhe, mediante seus próprios recursos cognitivos, o que é melhor ou não naquele momento. Dar a medicação meia hora antes do horário correto visando a solução de futuros problemas que podem decorrer da fisioterapia ou, então, como ela revelou em outro momento, visando evitar dar o remédio no movimento do carro, pois não seria viável. Então ela escolhe antecipar o horário, renormatizando uma conduta anterior. Assim como em outras situações, as mães fazem escolhas entre normas e normas, entre valores e valores, em um debate constante para ofertar aquilo que lhe é possível diante das exigências que o meio lhe impõe.

Na fala de Marta, revela-se sua criatividade normativa. Conforme Schwartz, uma vez que as normas jamais são conformadas às variabilidades das situações cotidianas, é necessário usar a criatividade para dar a si mesmo normas que sejam mais ajustadas à situação, renormatizando as normas (Mencacci & Schwartz, 2015). Além disso, não é possível deixar de marcar tal engenhosidade, o que nos faz lembrar a combinação do pensamento Métis com a inteligência do Kairós que, conforme Mencacci, se refere à competência combinada entre ações habilidosas que destacam a astúcia e capacidade de aproveitar o momento presente, respectivamente (Mencacci & Schwartz, 2015). Ou seja, Marta aproveita o momento presente e com destreza faz escolhas pertinentes com vistas para um agir mais justo.

3.3. Normas do cuidar com aprendizagem pela experiência

Nenhum trabalho de verdade se conduz sem uma orientação prévia de como realizá-lo. As normas são preciosas para o agir humano, sendo toda atividade, em parte, guiada por elas (Borges, 2004). A ergologia nos convida a olhar de forma singular a atividade humana, como aquela guiada por um debate de normas: as que são anteriores à situação presente e à pessoa que realiza a atividade e aquelas produzidas no momento presente da ação pelas próprias pessoas por sua inventividade, engenhosidade e, até mesmo, transgressividade (Trinquet, 2022).

Dorna e Muniz (2018), ao refletirem sobre o trabalho da maternidade de mulheres de classe média com ensino superior, afirmam que há no cuidar um vasto patrimônio conceitual e científico antecedente à atividade das mães. Essas normas antecedentes podem ser encontradas nas ciências médicas e estão cristalizadas nos tratados de obstetrícia, pediatria e psicologia, bem como nos manuais da Organização Mundial da Saúde e até nas legislações de proteção à infância. Elas constituem um conhecimento formalizado que recebe um status de superioridade aos conhecimentos tradicionais e cotidianos, sob o selo da ciência hegemônica.

Além desses patrimônios, as normas antecedentes são também preenchidas por um outro vasto patrimônio, aquele dos saberes culturais, menos formalizados, que também fazem parte das normas antecedentes da mãe dedicada ao cuidar. Tradições familiares, dicas de coletivos de mães e expectativas sociais permeadas por valores também estão presentes na atividade de cuidado materno (Dorna & Muniz, 2018).

No caso das mães de crianças com deficiência, a orientação da medicina como um guia normativo da atividade de cuidar é ainda mais evidente. As normas antecedentes da maternidade típica somam-se às especificidades das atividades de cuidado para com pessoas em situação de saúde frágil, e estas se ancoram nos saberes das ciências da saúde, como neurologia, enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia.

Rute: (...) com as enfermeiras era muitas coisas, né, identificar uma crise convulsiva de ausência, que eu não sabia como era, e desengasgar também. Quando a criança engasga, elas me ensinaram algumas coisa (sic) para fazer desengasgar, lavagem no nariz dele que eu não sabia e tinha muito medo de fazer, eu pensava que eu ia complicar ele, deixar ele mais doentinho se eu fizesse isso, porque ele já foi internado com pneumonia, aí precisava muito ficar lavando o nariz, pra mim eu ia piorar a situação, aí tive que perder esse medo pra fazer também. E complicação intestinal, porque às vezes ele passava uma semana sem fazer cocô aí eu tive que aprender a colocar supositório também. E estimular algumas massagens, me ensinaram muito massagem para cólica, massagem para estimular o intestino para fazer cocô também, essas necessidades dele. Eu acho que eu aprendi de tudo, viu, de tudo um pouco.

Sofia: Bem, no início eu ficava muito nervosa, eu ligava sempre para a enfermeira. A enfermeira: “mãezinha, como é a crise?”, eu digo: “ele esticou a boca, ele esticou a perna, ele arregalou os olhos pra cima e não quer mais voltar ao normal, ele tá todo duro, ou então: ele tá todo molinho como se fosse desmaiar”. Aí elas: “mãe, marque os segundos, marque os minutos que ele continua. Coloque ele no braço, abrace ele, converse com ele, chame o nome dele bem alto, faça barulhinho não muito forte para não assustar ele, para ele retornar, que uma hora ele vai retornar”. O normal da crise é até 2 ou 3 minutos, se passar disso alguma coisa aconteceu, ou deu uma parada cardiorrespiratória nele ou ele desmaiou, porque o normal da crise é até três minutos e não faz nem isso tudo.

Tanto para Rute e Sofia, como para outras mães deste estudo, as consultas médicas presenciais ou por chamadas de áudio e vídeo são um espaço de diálogo, acolhimento e prescrição de condutas de cuidado a serem realizadas. Na perspectiva ergológica, tratam-se das normas. As mães relataram que todos os profissionais de saúde com os quais já tiveram contato as ensinaram um pouco de como deveriam lidar com os filhos nas tarefas de cuidado especiais, como, por exemplo: administrar medicamentos por via oral ou via anal, alimentá-los por meio de sonda, higienizá-los, socorrê-los em crises diversas, realizar atividades de estimulação sensorial por fisioterapia.

Mesmo para aquelas mães que já tinham tido alguma experiência materna, as demandas de um filho que requer especificidades no cuidado são maiores do que os saberes que já possuíam com o arcabouço normativo anterior. Para as mães que cuidam de crianças em situação de saúde rara, a educação em saúde ofertada pelas médicas, enfermeiras, fisioterapeutas, entre outras profissionais, apresenta-se não só como um norte importante a ser observado, mas como um guia prescritivo que deve ser rigidamente executado. Por isso que a relação entre essas mulheres e os profissionais da saúde assume um aspecto ainda mais normatizador, impondo regras prescritas, normas, tarefas e horários a serem cumpridos; além disso, também há o acompanhamento evolutivo do quadro, de modo que é necessário por parte das mães uma certa prestação de contas do que se tem feito ou não, do que tem dado certo ou não.

Outro aspecto importante que gera normas antecedentes muito específicas são os exercícios de reabilitação. Durante o período de isolamento social com a ameaça da covid-19, os exercícios de reabilitação ficaram exclusivamente a cargo das mães, intensificando o trabalho de cuidar nesse período, visto que elas já eram encarregadas de estimularem seus filhos em casa como um complemento do trabalho feito nos centros de reabilitação (Junqueira et al., 2020). Porém, com a paralisação desses espaços e os atendimentos de forma remota por chamadas de vídeo, o trabalho passou a ter mais elementos normativos e um aspecto ainda mais regulador: as mães passaram a filmar a execução do exercício e enviar para os profissionais, que determinavam o certo e o errado e fiscalizavam a periodicidade do trabalho realizado.

Jéssika: E como é tua relação com os profissionais da saúde, médico, TO (terapeuta ocupacional), fisioterapeuta?

Raissa: Eu gosto, eu gosto de levar ele. São uns amores de pessoa. Porque às vezes eu chego muito triste, cabisbaixa, e eles que me dão força, eu amo demais.

Jéssika: Eles costumam dizer muito o que você tem que fazer? Como fazer?

Raissa: Sim, eles ensinam a gente a fazer em casa, tudo que eles fazem lá, eles pedem pra mim fazer em casa. Eu faço com ele fisio, faço fono.

Jéssika: E como foi que eles te ensinaram?

Raissa: Eles fazem ensinando, “olha Raquel você faz assim com ele em casa”. Depois dessa pandemia eles fazem videochamada, eles pedem para mim fazer e vai fazendo em casa.

Jéssika: E você consegue fazer?

Raissa: Consigo. Não é a mesma coisa que um fisio faz, mas eu consigo fazer, consigo manusear ele tranquilo. Só é ruim assim, porque a gente não tem tudo que tem na fisioterapia, que é as bolas, os rolos, eu não tenho para a gente poder ficar em casa fazendo, e assim, eu não vou mentir, eu não faço direto, porque minha coluna só Jesus na causa, até medicação eu estou tomando. Ontem mesmo, eu fiz fono nele, porque ele está tendo bruxismo. Aí principalmente quando ele se acorda ele fica com esse bruxismo forte, aí hoje pela manhã eu falei com a fono e ela me pediu para mim dar uma compressa morna antes dele dormir, aí eu faço. Eu não faço todos os dias porque tem dias que eu estou muito cansada pelo fato de fazer almoço, dar banho, fazer isso, fazer aquilo, tem dia que só Jesus [risos] que a coluna dói muito. Mas eu faço um pouquinho de estimulação nele.

Quando Raissa afirma que a maneira pela qual realiza os exercícios de reabilitação não é a mesma que a do fisioterapeuta, ela nos lembra a compreensão ergológica a respeito da atividade. Conforme Durrive e Schwartz (2021), o ser humano não é determinado como um robô. Na atividade há momentos em que ele obedece aos comandos recebidos, mas, ao mesmo tempo, também efetua arbitragens, transgredindo quando necessário, já que a realidade sempre se impõe trazendo o novo, aquilo que é impossível de ser antecipado.

Na fala a seguir, Rute expõe a renormatização presente na atividade concreta:

Jéssika: Lembra que você me falou, que tinha aprendido muita coisa depois que se tornou mãe “praticamente do zero”? Então, eu fiquei pensando: dessas coisas que você não sabia de jeito nenhum, que você aprendeu a fazer, existe algo que você aprendeu de uma forma e modificou, passando a fazer do seu jeitinho?

Rute: Eu acho que sobre comida para ele. Muita gente acha que “ah, não dá isso para ele não que faz mal, não dá o feijão com a palha não que faz mal também. Tenta tirar só o grãozinho”. E eu fiz do meu jeito. Alimento ele com as comidas que - claro que o nutricionista passou, é a dieta dele - mas, as coisas que eles diziam que não podia, as comidinhas natural. Pra mim, eu dou do mesmo jeito, tipo, inhame com carne moída, ele disse que não pode dar. Pode até dar, mas a carne tem que ser carne de panela, não pode ser carne moída por causa daqueles pedacinhos de gordura, e ele come mesmo assim. Eu dou e, graças a deus, nunca fez mal. Sucos também, sucos de tudo ele toma, que também disseram que só podia suco natural, eu também dou um Kapo [marca de suco industrializado] e graças a deus nunca fez mal. Eu acho que em respeito às comidas. Os profissionais da saúde e pessoas da família também que sempre dá palpite: “ah, você não pode fazer isso, não pode fazer aquilo porque faz mal pra criança”. E eu acho que tudo bem, eles alertam, tem coisas realmente que vale muito a pena, mas tem coisas muito sem lógica, tipo posição de dormir, não pode uma posição virada pra cima, não pode travesseiro muito baixo. Eu acho que, às vezes, é umas coisas sem lógica e eu faço do meu jeito. Eu aprendi muito, muitas coisas, mas algumas coisas eu acho desnecessário.

As normas pensadas anteriormente e refletidas através da ciência encontram um lugar de destaque na vida social e ainda mais na vida de Rute e das outras mães deste estudo. As normas antecedentes, que são importantes, ao encontrarem a vida se mostram insuficientes ou impossíveis, por isso neste encontro, há sempre o uso-de-si, com sua inteligência, memória, corpo e valores. Pois, como dizer para uma mãe, que tem em suas raízes culturais o milho como alimento básico, que este não deve ser ofertado para seu filho? Rute lê essa regra como uma contradição com aquilo que faz parte de si mesma, seus valores e sua cultura. Por isso, pelos seus próprios experimentos com sua criança, ela toma sua própria decisão e se essa decisão é uma transgressão à norma médica, não é feita como um simples capricho, pois, ao fazer à sua maneira, ela ajusta o prescrito à sua realidade singular e assim tenta ser mais eficiente segundo a sua perspectiva.

Além disso, também há aspectos econômicos em jogo: o tipo de carne a oferecer não é apenas um gosto pessoal, mas também uma questão financeira. O mundo e suas tessituras se intercruzam nas escolhas e gerência diária, de modo que há escolhas presentes em cada alimento ofertado, na roupa e nos insumos de cuidado, como também em cada ato pensado e executado através dela mesma como um recurso a se gerir. Conforme Mencacci e Schwartz (2015, p. 36), “o uso de si por si, é a pessoa que reinventa uma certa maneira de ser, de viver, de sobreviver, de sobreviver com os outros”. As escolhas, que parecem em certa medida serem tão ínfimas numa dada realidade particular, fazem parte de um universo social maior e estão presentes em um vaivém entre o micro e o macrossocial que está permeado de valores.

4. Considerações finais

Os relatos das histórias e experiências compartilhadas pelas mães deste estudo e analisados a partir da perspectiva da ergologia nos permitiram refletir que a maternidade cuidadora implica o cotidiano uso de si - do corpo, do tempo, da vida - para dar conta de uma criança com deficiência. Cuidar de uma criança nessa condição exige saberes que não fazem parte do repertório construído e compartilhado por gerações de mulheres às quais se atribuiu as tarefas de cuidado como um destino, pois há uma ampliação de suas responsabilidades com normas mais complexificadas.

Ao aproximarmo-nos da ergologia, reconhecemos na maternidade o seu caráter complexo e enigmático, pois o trabalho de cuidar requer competências específicas, que não são inatas nem prévias, e sim produzidas no trabalho. De modo que as normas, os valores e suas tessituras estão presentes e se multiplicam no dia a dia. Contradizendo a produção social mais ampla, na qual a maternidade é supostamente ligada à “natureza” e à “essência” feminina, e sequer é considerada um trabalho. Os achados endossam o debate acadêmico sobre o trabalho de cuidar, questionando o mito da sua não qualificação e repondo-o como um fazer complexo, que demanda mobilização e inteligência para a sua realização e gestão cotidiana (Sato & Oliveira, 2008).

A rotina desgastante e o cansaço sem fim vivido por essas mulheres são acompanhados muitas vezes de um certo fatalismo em relação à condição em que vivem (Martín-Baró, 2017; Silva et al., 2021). Embora as mães entrevistadas apresentem uma tendência ao não reconhecimento de sua atividade de cuidar como um trabalho, isto é, como uma atividade equivalente àquelas que são remuneradas e têm um outro status social, ao olharmos com a lupa da ergologia o que fazem todo o dia para manterem seus filhos vivos e confortáveis e todos os arranjos que precisam lançar mão para fazer frente às infidelidades do seu meio, damo-nos conta do absurdo da invisibilidade social dessa atividade e do seu não reconhecimento como um trabalho.

Enfatizamos que os dados aqui apresentados não esgotam as discussões a respeito do tema e sugere-se o desenvolvimento de novos estudos que busquem compreender a realidade de diversas outras mulheres que se dedicam ao trabalho de cuidar, seja de seus filhos com microcefalia ou outras doenças, ou ainda ao trabalho de cuidado em outros cenários no contexto brasileiro. É importante também sinalizarmos a utilização de outras formas de diálogos e compreensão da realidade de trabalho dessas mulheres, considerando que em nosso estudo, essa construção foi feita por meios digitais em um cenário pandêmico.

Entendemos que o trabalho de cuidar é um trabalho multifacetado, e sua compreensão se faz ainda mais necessária para se pensar em possibilidades de construir mudanças na vida dessas mulheres, bem como suscitar o desenvolvimento de políticas públicas que amparem e deem visibilidade a esse conjunto de trabalhadoras que são geralmente representadas pelo rótulo de mães desempregadas, pobres e vítimas de Zyca, um retrato evidente das desigualdades sociais de gênero, classe e raça no Brasil.

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Recebido: 15 de Janeiro de 2024; Aceito: 27 de Maio de 2024

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