Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a saúde sexual como um estado de completo bem-estar físico, emocional e mental em relação à sexualidade, e não só à ausência de doença, disfunção ou enfermidade.
Apesar de historicamente a sexualidade feminina ter sido negligenciada e alvo de pouca preocupação, esta é uma parte importante da vida da mulher, sendo fundamental para o seu bem-estar. Uma vida sexual satisfatória e a realização sexual correlacionam-se positivamente com a qualidade de vida1.
A resposta sexual feminina envolve uma interação complexa entre a fisiologia, as emoções, as experiências, as crenças, os estilos de vida e as relações. Ao longo dos anos, muitos foram os modelos propostos para melhor compreendê-la, e assim entender como os problemas e as disfunções sexuais se manifestam e se mantêm.
Atualmente, existem diferentes classificações, definições e critérios de diagnóstico das disfunções sexuais femininas (DSF). Segundo a American Psychiatric Association’s Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5.ª edição (DSM-V), as DSF são condições sexuais crónicas nos domínios do desejo, excitação, orgasmo e dor2, distinguindo-as das dificuldades sexuais (variações normais e transitórias na vida sexual) pela sua persistência/recorrência (duração superior a seis meses) e sofrimento pessoal significativo.
As DSF podem ser um problema desde o início da atividade sexual ou podem ser adquiridas ao longo da vida. Podem ser situacionais (presentes em apenas algumas situações ou com um parceiro específico) ou generalizadas (ocorrer em todas as situações, com todos os parceiros) e ser caracterizadas como ligeiras, moderadas ou severas, podendo sobrepor-se ou variar ao longo da vida da mulher2.
A etiologia das DSF é frequentemente multifatorial, incluindo fatores biológicos, psicológicos, interpessoais e socioculturais2, sendo infrequente a determinação de uma causa específica isolada. Algumas das etiologias e fatores de risco mais comuns para DSF estão listados no Quadro I 3.
As DSF são uma situação prevalente a nível mundial e podem afetar mulheres em todas as faixas etárias4. As prevalências variam de estudo para estudo, dependendo não só das amostras e possíveis fatores socioculturais, mas também do conceito de DSF e dos instrumentos utilizados pelos investigadores para a avaliar. Assim, estima-se que aproximadamente 40-50% das mulheres, a nível mundial, sofra de algum problema sexual4-7.
Em Portugal, os estudos são escassos, e as prevalências encontradas variam de 37-77%8-12. Um dos estudos mais representativos da prevalência de disfunções sexuais na população feminina portuguesa, dada a sua amostra considerável (1250 mulheres) e uma significativa quantidade de variáveis em estudo, revelou uma prevalência de problemas sexuais de 56%, sendo o desejo sexual o domínio mais afetado12. Características sociodemográficas como a idade, o nível educacional, o número de relação sexuais e o estado civil foram apontados como variáveis influenciadoras de problemas sexuais em diversos estudos portugueses8-12.
Apesar de existirem estudos realizados em Portugal sobre esta temática, a heterogeneidade dos resultados obtidos revela a necessidade de mais investigações neste âmbito. O presente estudo tem como objetivos avaliar a disfunção sexual feminina numa população de mulheres portuguesas e identificar possíveis características da população associadas a problemas sexuais.
Metodologia
Estudo observacional e transversal, realizado através do preenchimento de um inquérito online anónimo, exclusivamente em português, disponibilizado através das redes sociais entre agosto e setembro de 2023. Os dados foram colhidos utilizando a ferramenta Google Forms®. A participação foi voluntária, não remunerada e o consentimento para a participação foi fornecido durante o preenchimento do questionário.
O inquérito incluiu duas secções, a primeira para recolha de características sociodemográficas (idade, nível de educação, estado civil, duração da relação, local de residência) e biológicas (patologias conhecidas, estadio reprodutivo). A segunda secção, para avaliação das DSF, incluiu o Female Sexual Function Index (FSFI) validado para a língua portuguesa13.
O FSFI consiste num questionário breve composto por 19 itens, sobre a atividade sexual nas quatro semanas anteriores ao momento em que o questionário é preenchido. Fornece informação detalhada sobre as principais dimensões da resposta sexual na mulher (desejo, excitação subjetiva, lubrificação, orgasmo, satisfação e dor), permitindo avaliar separadamente cada dimensão da resposta sexual e obter um valor para o funcionamento sexual feminino na sua totalidade.
Os itens que constituem o FSFI têm cinco a seis opções de resposta, das quais a mulher deve assinalar apenas uma. À opção de resposta em cada item corresponde um valor de 0 a 5 ou de 1 a 5. As pontuações de cada dimensão são calculadas por fórmula matemática e variam entre 1.2 e 6 ou entre 0 e 6. A pontuação total do FSFI varia entre 2 e 36, correspondendo as pontuações mais elevadas a maiores níveis de funcionamento sexual. Pontuações iguais ou inferiores a 26,55, são consideradas como disfunção sexual e uma pontuação inferior a 3,6 em algum dos domínios são consideradas critério de risco de disfunção sexual5,6,13-16.
De modo a garantir a significância estatística dos resultados, a dimensão da amostra foi calculada com recurso ao programa informático Epi Info TM e utilizando a função STATCALC. Considerando uma precisão de 5% e um nível de confiança de 95%, e tendo por base a população feminina, segundo os censos de 2021, e uma prevalência de 37% para DSF (prevalência mais baixa identificada nos estudos realizados em Portugal), obteve-se uma dimensão amostral mínima de 358 mulheres.
Os critérios de inclusão no estudo foram a idade compreendida entre os 18 e os 75 anos, residência em Portugal e envolvimento sexual heterossexual. O cálculo do FSFI foi apenas realizado para mulheres com atividade sexual nas últimas quatro semanas, uma vez que a ausência de atividade sexual, não é necessariamente atribuível a disfunção sexual e deste modo, uma provável subestimação dos valores totais de FSFI e dos seus domínios poderia ocorrer16.
Para análise dos resultados obtidos, estes foram codificados e posteriormente informatizados, com recurso ao programa SPSS® versão 22. Foi realizada uma análise descritiva da amostra e posteriormente aplicados testes estatísticos como o teste Qui-Quadrado para comparar proporções e o teste de Fisher quando uma das frequências esperadas no Qui-quadrado foi menor que 5. Para determinar a força de associação entre variáveis foi aplicado o Odds Ratio (OR) com um intervalo de confiança de 95% (nível de significância de 0,05). Foi também utilizado o teste t-Student para testar a associação entre variáveis qualitativas e quantitativas com um intervalo de confiança de 95% (nível de significância de 0,05).
Resultados
Um total de 401 mulheres participou neste estudo, sendo que oito foram excluídas por não preencherem os critérios de inclusão, ou não aceitarem a cedência de dados para fins científicos. Assim, um total de 393 mulheres foi considerado para a análise.
As mulheres questionadas apresentavam uma idade média de 41,6 anos (20-71 anos, desvio padrão (DP) ± 12,8). A maioria residia em Portugal continental (74%), tinha pelo menos completado o ensino secundário (92%) e referiu ser saudável (73%). Das inquiridas, 36% encontrava-se na pós-menopausa e 40% não tinha filhos (Quadro II).
Relativamente à satisfação sobre a sua vida sexual, 74% das mulheres referiu que se encontrava moderadamente satisfeita ou muito satisfeita com a sua vida sexual, enquanto que apenas 10% das inquiridas referiu estar muito insatisfeita ou moderadamente insatisfeita. Um total de 38 mulheres (9,6%) referiram ausência de relações sexuais nas últimas 4 semanas.
As mulheres com vida sexual ativa, nas últimas 4 semanas, apresentaram uma pontuação média no FSFI de 27,37 (7,50-3,50; DP±4,99).
Verificou-se que 36% da população apresentou pontuações compatíveis com problemas sexuais (FSFI ≤26,55). Os problemas sexuais mais frequentemente relatados foram nos domínios da excitação e do desejo (55%) (Quadro III).
Mulheres em menopausa apresentaram uma prevalência de problemas sexuais de 49%, tendo em conta a pontuação total do FSFI. Os domínios mais frequentemente afetados foram igualmente o desejo e a excitação, sendo reportados problemas em 63% e 69% dos casos, respetivamente. Verificou-se também que a prevalência de DSF foi superior com o avançar da idade: 28% (20-30 anos); 31% (31-40 anos); 30% (41-50 anos) e 52% (≥51 anos).
Verificou-se que mulheres em menopausa apresentaram pontuações médias inferiores no FSFI total e em todos os domínios, exceto para o domínio da dor, relativamente a mulheres em idade reprodutiva (p<0,05). Também mulheres com filhos ou com pelo menos excesso de peso (IMC ≥ 25) apresentaram pontuações inferiores no FSFI total e nos domínios do desejo, excitação e satisfação (p<0,05). (Quadro IV).
Foi possível também constatar que mulheres em menopausa e mulheres com filhos apresentaram uma probabilidade aproximadamente 2 vezes superior (2,3 e 1,8 respetivamente) de sofrer de problemas sexuais (p<0,05).
Discussão
Neste estudo, a prevalência de problemas sexuais foi de 36%, concordante com outros estudos realizados a nível mundial5-7,15,17-18. Apesar destes resultados irem ao encontro de alguns dos estudos realizados em Portugal9,12, existe uma grande heterogeneidade de resultados, alguns estudos relatando uma incidência superior8,11. As diferentes prevalências encontradas na literatura poderão ser justificadas, em parte, pela utilização de diferentes definições de DSF e de instrumentos de avaliação. Além disso, o FSFI não avalia o sofrimento associado à queixa. Quando se considerou a população total inquirida (393 mulheres), independentemente da presença de atividade sexual nas últimas quatro semanas, apenas 10% revelou insatisfação com a sua vida sexual, mostrando a importância da valorização do sofrimento pessoal da mulher no diagnóstico de DSF.
Tal como se verificaram em outros estudos, as alterações do desejo e da excitação foram os problemas mais frequentemente relatados5,7,10,15,18. No entanto, a prevalência neste estudo foi superior (50%), o que poderá ser em parte justificado pela ausência de avaliação de sofrimento associado à queixa.
Tal como na literatura, neste estudo verificou-se que a prevalência de DSF aumenta com a idade e é superior na menopausa5,8,18. Constatou-se que mulheres em menopausa apresentavam pontuações médias inferiores no FSFI e também nos domínios do desejo, excitação, lubrificação, orgasmo e satisfação. Resultados estes que estão de acordo com a literatura, uma vez que a redução dos estrogénios circulantes, característica da menopausa, assim como o declínio em androgénios, independente da menopausa, contribuem significativamente para o menor desejo, excitação, dispareunia, alterações orgásmicas e, consequentemente, redução da satisfação sexual. De realçar que apesar do impacto negativo das alterações fisiológicas da idade e da menopausa, fatores como problemas relacionais e fatores não biológicos podem afetar negativamente as experiências sexuais19.
Verificou-se que ter excesso de peso afetou negativamente a sexualidade das mulheres, informação em concordância com estudos anteriores que demonstraram uma relação entre a obesidade e a disfunção sexual em mulheres, sendo os problemas sexuais mais frequentes e severos em mulheres obesas20-22. Estilos de vida saudável que resultam em perda de peso, diminuição do tecido adiposo, melhoria global da saúde da mulher e de possíveis comorbilidades (doença cardiovascular, diabetes e síndrome metabólica) podem levar a efeitos bioquímicos positivos com impacto na saúde sexual. Além disso, a associação das alterações do peso a parâmetros psicológicos como baixa autoestima e confiança, alterações da imagem corporal, depressão e ansiedade podem influenciar negativamente a função sexual. Assim, a adoção de um estilo de vida mais saudável pode impactar positivamente a saúde sexual da mulher, podendo originar um maior interesse sexual, aumento do desejo sexual e melhoria da satisfação sexual23-24.
A gravidez e a parentalidade são eventos marcantes na vida de um casal, com inerentes alterações psicológicas e biológicas, que podem influenciar a dinâmica e os papeis no casal e consequentemente a função sexual25-27. A literatura existente sobre a implicação dos filhos na resposta sexual é inconsistente, assim como os fatores implicados nessa alteração (fatores psicológicos e físicos ou fatores sociais e culturais) 25,28-29. Neste estudo verificou-se que a existência de filhos influenciou negativamente as pontuações no FSFI e os domínios do desejo, excitação e satisfação.
Os dados obtidos neste estudo demonstram uma elevada prevalência de problemas sexuais na população feminina portuguesa. Os médicos de Obstetrícia e Ginecologia ocupam uma posição privilegiada para abrir a discussão sobre possíveis problemas sexuais. No entanto, as crenças, a falta de tempo, de conhecimentos e à vontade no tema são, muitas vezes, reportados como limitações na abordagem da sexualidade da mulher30. Assim, a sensibilização e formação dos profissionais neste âmbito poderá ser importante na melhoria da qualidade de vida das mulheres.
Deverá ser tido em consideração na interpretação dos resultados deste estudo que o FSFI não avalia o sofrimento pessoal associado à disfunção sexual, critério este imprescindível para o seu diagnóstico. Além disso, o estudo dependeu da colaboração voluntária das mulheres, assim como da necessidade de algum nível educativo para a adequada compreensão e preenchimento do questionário, o que poderá ter originado um viés de seleção. De destacar também, que a distribuição geográfica da amostra não é homogénea por todo o território português, podendo também ser considerado um viés de seleção. Tratando-se de um tema íntimo e muitas vezes tabu, algumas mulheres poderão ter respondido de acordo com o que pensariam ser mais aceite socialmente e não de acordo com a sua situação. No entanto, tentou-se contornar o possível enviesamento de respostas, através da utilização de um questionário anónimo, com autopreenchimento e com uma amostra populacional significativa (393 mulheres).
Conclusão
Apesar das limitações referidas, este estudo revela que os problemas sexuais poderão afetar uma parte significativa da população portuguesa, realçando que se trata de um problema real, que deverá ser alvo de intervenção, através da sensibilização e formação dos profissionais de saúde.
Neste estudo verificou-se que a menopausa, o excesso de peso e a parentalidade poderão associar-se a um maior risco de problemas sexuais na mulher.
Contribuição dos autores
Margarida Basto Paiva: Conceptualização, Metodologia, Recursos, Análise Formal e Redação Manuscrito Original.
Rosário Cercas: Conceptualização e Redação - Revisão e Edição.
Gisela Silva: Análise Formal.
Diogo Lima: Recursos.
Vera Vilhena: Redação - Revisão e Edição.
Ana Paula Lopes: Redação - Revisão e Edição.