Introdução
A introdução e o desenvolvimento das técnicas endovasculares, nas últimas décadas, condicionaram uma profunda alteração na especialidade de Angiologia e Cirurgia Vascular. O tratamento de AAA mudou radicalmente de OAR para EVAR e a introdução da nova geração de dispositivos, nomeadamente tecnologia endovascular como BEVAR e FEVAR, continua a aumentar a aplicabilidade anatómica do EVAR, diminuindo consequentemente a necessidade de OAR.
A evolução do tratamento cirúrgico do AAA, de cirurgia aberta (OAR) para cirurgia endovascular, tem sido acompanhada por uma apreensão crescente no que diz respeito à exposição dos internos de Cirurgia Vascular a cirurgia aórtica aberta e levanta preocupações relativamente à competência dos futuros cirurgiões vasculares para executar este procedimento complexo e de alto risco. Vários estudos relatam uma diminuição significativa no número total de OAR ao longo do tempo, bem como aqueles realizados por internos de Cirurgia Vascular.1-7
O principal objetivo deste estudo foi avaliar as tendências de tratamento de AAA pelos internos de Cirurgia Vascular, ao longo de 15 anos, a nível nacional.
Métodos
Após identificação dos médicos que terminaram o internato de Angiologia e Cirurgia Vascular entre 2007 e 2017, inclusive, a nível nacional, procedeu-se à colheita de dados, através da consulta dos currículos para a prova final de conclusão do internato complementar. A consulta e colheita de dados foram realizadas com a aprovação de todas as Direções de Serviço de Cirurgia Vascular bem como de todos os especialistas cujos currículos foram consultados.
Contabilizaram-se o número total de procedimentos para correção de AAA, tanto convencionais como endovasculares, como cirurgião principal e ajudante.
A correlação entre os endpoints e o ano de conclusão do internato complementar foi testada usando o coeficiente de correlação de Spearman. Valores de correlação (rho) entre 0,7-0,9 foram considerados como uma forte correlação, entre 0,5- 0,7 como moderada correlação e abaixo de 0,5 como fraca correlação. Todos os testes foram realizados de forma bilateral e foi considerado significado estatístico se o valor P < 0,05. Para a análise estatística foi utilizado o software SPSS para Windows (versão 24).
Resultados
Em Portugal, de 2002-2011, 59 indivíduos iniciaram o internato de Angiologia e Cirurgia Vascular, sendo que 8 indivíduos (14%) desistiram da especialidade. Dos 51 indivíduos que concluíram a especialidade no período de 2007-2017 , 21 indivíduos (41%) eram do género feminino. Dos 51 indivíduos que concluíram a especialidade, obtiveram-se 41 currículos, sendo o estudo baseado nesta amostra.
No período compreendido entre 2002 e 2017 (15 anos), foram contabilizados um total de 3392 procedimentos para correção de AAA, sendo que 2232 procedimentos (57%) foram OAR e 1160 procedimentos (43%) foram EVAR.
Do total de OAR registados, em 570 procedimentos (25.5%) os internos de Cirurgia Vascular foram o 1ºcirurgião; no que diz respeito aos EVAR, os internos realizaram o procedimento em 32.5% dos casos (378 em 1160 procedimentos).
Em cirurgia de AAA, ao longo do tempo, apesar de não haver variabilidade no número total de operações convencionais, verificou-se uma diminuição significativa nas realizadas como 1º cirurgião (rho=-0,412; P<0.02, Figura 1); constatou-se um aumento marcado no número total de procedimentos endovasculares de AAA (rho=0,478; P<0.002) e como 1ºcirugião (rho=0,540; P<0.001, Figura 2).
O número de procedimentos endovasculares para correção desta patologia foi sempre inferior à cirurgia convencional, com exceção do ano de 2017.
Em Portugal, no final do internato de Cirurgia Vascular, em 2007 os internos realizavam, em média, 15 correções cirúrgicas convencionais de AAA; em 2017 a média de procedimentos de correção de AAA por cirurgia convencional era de apenas 7.
Discussão
O presente estudo retrata uma evolução relevante na formação dos internos de Angiologia e Cirurgia Vascular no que diz respeito à experiência em cirurgia convencional e endovascular de AAA, ao longo de 15 anos.
Smith et al. estudaram as atuais tendências para correção de AAA entre os programas de formação de Cirurgia Vascular por forma a avaliar a exposição a correção cirúrgica convencional de AAA entre os internos de 2010 a 2014.1Verificaram que o volume de casos de cirurgia convencional para correção de AAA diminuiu 38% em 4 anos. Concluíram que a exposição a correção cirúrgica convencional de AAA diminuiu dramaticamente com aproximadamente metade dos internos de anos avançados a realizar menos de 5 casos em 2014.
Desai Sapan et al. realizaram uma análise retrospetiva na década de 2000-2010 através da National Inpatient Sample (2000-2010) e do Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME case logs (2001-2012) cujo objetivo foi avaliar a tendência de correção cirúrgica convencional de AAA pelos internos de Cirurgia Vascular e estimar o impacto da diminuição do volume de casos nos resultados da aprendizagem e formação.2 Verificaram uma diminuição de 33% do volume de correção cirúrgica convencional de AAA associada a um decréscimo de confiança na realização autónoma deste procedimento {40% dos internos relataram muito baixa confiança; segundo a escala de Likert (1, não confiante; 2, meio confiante; 3, muito confiante)}. Os mesmos autores (2) apuraram que na década de 2000-2010 o número de casos adjudicados e litígios contra cirurgiões vasculares devido a complicações decorrentes da correção cirúrgica convencional de AAA triplicou. Concluíram, baseados em modelos preditivos que os internos de Cirurgia Vascular, no fim da sua formação, concluirão apenas 5 casos de correção cirúrgica convencional de AAA. Reforçam também que, perante a diminuição de confiança na realização deste procedimento associada ao aumento de litígios por negligência nesta área, não será necessário um novo paradigma na formação em Cirurgia Vascular para manter altos padrões no tratamento de doentes submetidos a correção cirúrgica convencional de AAA.
Harlander-Locke et al. realizaram um estudo cujo objetivo foi avaliar a tendência de correção cirúrgica convencional de AAA pelos internos de Cirurgia Vascular na sua instituição nos últimos 15 anos.3 Verificaram uma diminuição de 80% do volume de correção cirúrgica convencional de AAA associado a um aumento da complexidade da correção convencional (aumento do número de casos com clampagem supra-renal e supra-celíaca e da necessidade de revascularização renal e visceral complementar). Concluíram que os internos de Cirurgia Vascular estão expostos a cada vez menos casos de correção cirúrgica convencional de AAA e que esses casos apresentam alto nível de complexidade representando um alto nível de dificuldade na sua execução pelos internos. Alertam para que os programas de formação de internos de Cirurgia Vascular considerem uma formação suplementar no que concerne à correção cirúrgica convencional de AAA.
Teviah Sachs et al. realizaram um estudo cujo objetivo foi avaliar as tendências no tratamento convencional e endovascular de AAA eletivamente e em contexto de urgência. Identificaram a população de beneficiários da Medicare com diagnóstico de AAA submetidos a correção de 1995-2008.4 A amostra foi comparada mediante o tipo de correção cirúrgica (convencional vs. endovascular) e a apresentação AAA (electivo vs. urgente). Identificaram 449122 doentes (376355 eletivos e 72767 urgentes). O uso de EVAR no tratamento de AAA eletivos foi de 35% em 2001, 63% em 2005 e 78% em 2008. O número de cirurgias convencionais de AAA diminuiu 50% de 1999 a 2008.
No que respeita à patologia aneurismática da aorta, o presente estudo apresentou resultados concordantes com a literatura atual.1-3 Concluímos que, apesar de não haver variabilidade no número total de OAR, se verifica uma diminuição preocupante nas realizadas como 1º cirurgião. Tendo em conta o aumento de alternativas endovasculares (EVAR com cuff aórtico, EVAR com APTUS, BEVAR, CHEVAR, FEVAR) para doentes com AAA com colo aórtico de anatomia complexa, os casos sem resolução endovascular são consequentemente tecnicamente desafiadores. O elevado nível de dificuldade técnica associado a estes casos de OAR pode levar a que os especialistas não se sintam confiantes para permitirem que os internos desempenhem estas cirurgias, o que pode explicar a diminuição de OAR realizadas pelos internos apesar do não existir variabilidade no número total de cirurgias. Outra possível explicação poderá ser o facto de, dada a menor exposição a cirurgia aórtica convencional, os especialistas mais novos poderem sentir necessidade de evoluir para além do internato, com consequente menor atribuição de oportunidades aos internos.
Interessa referir o facto de Portugal ter uma baixa taxa de tratamento de AAA comparado com outros países,9 apesar da incidência de rAAA tem-se mantido estável nos últimos 10 anos10 o que se refletirá, necessariamente, numa menor exposição dos cirurgiões e internos a mais casos (para além de estarmos a colocar mais pacientes sob o risco de rotura e maior mortalidade por essa via) o que conduz à necessidade de haver sensibilização para um plano de rastreio. Constata-se também, no presente estudo, um aumento marcado no número total de procedimentos endovasculares de AAA.
Importa referir como limitação do estudo, que não se obtiveram 20% (10 em 51) dos currículos para a prova final de conclusão do internato complementar o que condiciona um importante viés de seleção. Reconhecemos um possível viés no método de colheita de dados através da consulta dos currículos vitae. Não obstante terem sido verificados por diversos elementos dos serviços antes do envio para os elementos do júri, é possível que haja erros e, deste modo, o ideal seria corroborar os dados através da pesquisa no sistema informatizado de registos das cirurgias em cada instituição por uma terceira pessoa independente.
A patologia aneurismática da aorta abdominal em concreto, pelo desafio técnico que impõe, chama a atenção para a questão atrás referida da preocupação da menor aquisição de competências técnicas para a cirurgia convencional.
Mediante esta atual alteração no paradigma da formação dos internos de Cirurgia Vascular em cirurgia aórtica aberta, vários autores consideram a necessidade de colmatar a falta de experiência nesta área com várias alternativas, nomeadamente subespecialização em centros de grande volume de cirurgia aórtica convencional ou em treino em cadáveres (existindo já laboratórios com simulação vascular pulsátil em cadáveres).11-14
Conclusão
O presente estudo revela que os internos de cirurgia vascular se encontram expostos a cada vez menos casos de cirurgia convencional de AAA, o que levanta preocupação crescente no que diz respeito à competência dos mesmos para desempenharem este procedimento complexo e de alto risco.
Perante o exposto, consideramos que um novo paradigma na formação de internos de cirurgia vascular é necessário por forma a manter altos padrões no tratamento de doentes submetidos a cirurgia convencional para correcção de AAA.
Provavelmente terá de ser considerado um programa de formação suplementar nesta área, como subespecialização em cirurgia aórtica convencional num centro de grande volume ou que se pondere a simulação em cirurgia aórtica em cadáveres, de forma a atingir alta competência neste procedimento.