Em 2024, o Instituto de Estudos Medievais (IEM) celebrou vinte anos de existência como unidade de investigação. Com algum atraso, é certo - foi em 2002 que se apresentou à primeira avaliação da FCT -, mas talvez inevitável quando se estuda uma época que tinha outra concepção do tempo, mas que sabia como apreciar o valor dos rituais e das cerimónias. Como de regra, assim se fez. A celebração foi, desde logo, uma comemoração, uma recordação em comunidade dos fundadores do Instituto e da herança destes, acompanhada pela evocação do percurso do IEM e das realizações e sucessos que este alcançara naquele período. De tudo se fez memória no renovado portal do Instituto (https://iem.fcsh.unl.pt/20-anos-iem/), com recurso a fotografias, a cartazes e a testemunhos de investigadores doutras unidades e instituições, dentro e fora do país.
Mas a recordação do passado e da herança comuns - a aposta nos estudos inter-disciplinares, no trabalho em equipa, na partilha e na discussão, na disseminação dos saberes, ou na atenção aos mais jovens - foi completada por momentos de balanço e de reflexão. O primeiro deles para sublinhar a preocupação geral com a degradação das condições da vida científica. Criada em parte pela lenta renovação dos docentes universitários e pela atrofia dos quadros de pessoal, mas sobretudo pela precaridade do emprego científico, dos investigadores aos gestores de ciência e de comunicação. Problemas sem solução à vista, mas agravados pela ausência de políticas claras de apoio à investigação, pela irregularidade e pela incerteza dos financiamentos, ou pela singular e habitual alteração de prazos, de procedimentos, de critérios e de formulários, muitas vezes sem avisos atempados. Os efeitos de tudo isto não são irrelevantes e não podem, nem devem, ser ignorados. Ora porque tornam mais difícil a programação das unidades de investigação, ora porque criam, sobretudo, um ambiente nefasto, que convida ao desânimo e à desistência, ou que promove, em contrapartida, a selecção dos melhores, os mais aptos para publicar em contínuo e para estar presente em toda a parte. Para serem conhecidos e para terem, em suma, impacto instantâneo, esse capital mediático dos dias de hoje. É o que lhes pode assegurar acesso a recursos cada vez mais escassos, os lugares, os projectos e financiamentos, mas que os transforma em unidades autónomas de produção de saberes em série, muito menos em investigadores que fazem ciência e revelam segredos do mundo e do passado.
Houve felizmente reflexões mais animadoras e de maior futuro. Serviram umas para assinalar a continuidade das linhas tradicionais de investigação, desenvolvidas em torno das formas de exercício e de representação dos poderes, da história da vida económica e das cidades, mas que mantiveram o dinamismo anterior, renovando perspectivas e multiplicando escalas de observação. Outras sublinharam as áreas em que o IEM produziu novidade, como a Arquivística Histórica e a Arqueologia, ou a Iluminura, com os estudos da cor e dos materiais. Também se destacaram, por fim, as linhas de investigação emergentes no IEM, dirigidas para o estudo das pequenas cidades do interior, das formas de vida religiosa, da simbologia heráldica, da paisagem e do ambiente, ou das viagens e da diplomacia. De uma ou doutra forma, todas contribuiram para consolidar esta pequena unidade de investigação como um centro de referência nos estudos medievais. Com pouco mais de 20 Anos, o IEM continua um ser um instituto jovem e dinâmico, em grande parte porque tem sabido aliar a inovação com a tradição.
A Medievalista tem procurado honrar esta imagem de marca do IEM. Sem perder a identidade, nem a regularidade, adaptou-se de igual modo aos novos tempos e às novas exigências. Desses desenvolvimentos se deixou nota detalhada nos últimos números, e o propósito de os evocar agora serve apenas para registar como o velho e o novo se voltam a combinar na revista aqui apresentada. Num artigo que regressa à história dos preços e retoma o antigo problema das crises cerealíferas, a Profª Iria Gonçalves partilha novidades importantes sobre a natureza destes fenómenos em ambientes rurais e sobre as respostas locais à escassez de cereais e ao aumento dos preços. Ao cruzar a história política com a biografia dos servidores dos reis, Philippe Josserand, recupera no segundo destaque, a personalidade de Guillaume Nogaret, um jurista que serviu Filipe IV, o Belo. Mais conhecido pela lenda negra que lhe foi associada, pelo papel que teve no confronto com Roma, na prisão dos freires do Templo e na extinção da Ordem, teve um contributo decisivo na construção da autoridade sagrada da monarquia francesa. Por outro lado, os trabalhos do dossier temático, editado por Stéphane Péquignot e Diana Martins, exploram um tópico novo - a diplomacia dos príncipes herdeiros -, de cuja importância se suspeitava, mas do qual não havia dados disponíveis e sistemáticos. Por fim, João Vicente Dias trata o problema da gestão de conflitos e de expectativas no contexto da ascensão ao poder imperial de Aleixo I e dos Comenos, em 1081, assunto no qual as mulheres jogam papéis decisivos, com repercussões diversas nos discursos e nas memórias cronísticas desse período.
As seções fixas da revista cumprem a diversidade habitual. A literatura e os estudos literários são tema de duas recensões. Na primeira, Miguel Alarcão comenta um romance sobre o imaginário cavaleiresco de finais da Idade Média, feito a partir de um manuscrito inventado, à maneira de Borges, ou de Eco, obra que ele posiciona no campo actual do Medievalismo. Na outra, Isabel Barros Dias dá a conhecer uma obra colectiva sobre a representação das mulheres na lirica medieval galego-portuguesa, destinada ao público em geral, mas útil a todos pela visão panorâmica e pelos materiais que compendia. As restantes recensões são de investigadores do país vizinho. Os resultados de um colóquio recente sobre as origens, a implantação geográfica e o património construído da Ordem do Templo são analisados por Almudena Bouzón Custodio e Luis Manuel Ibáñez Beltrán, enquanto David Nogales Rincón recenseia outro estudo das relações luso-castelhanas, atento à dimensão política (oposição e aliança), mas também à circulação de objectos de prestígio, de práticas e de modelos culturais.
Nas notas de investigação, Marco Liberato sintetiza os dados de uma interessante investigação que, cruzando o registo arqueológico com as formas do povoamento, procurou fazer história e esclarecer, por um lado, a transição da sociedade antiga para a medieval, mas, sobretudo, a instalação de duas formações sociais distintas (a islâmica e a cristã) no território compreendido entre o Tejo e o Mondego, a partir de meados do século IX. A análise não se confina, contudo, a esta cronologia e traz anotações decisivas sobre a sobrevivência dos protótipos meridionais e dos oleiros respectivos, ou sobre os contextos de síntese dos séculos XIII e XIV. Datam deste período as residências régias do reino de Maiorca estudadas por Marta Fernández Siria, numa investigação que junta as fontes literárias e de arquivo com os vestígios da arte e da arquitectura, para recuperar os usos e as transformações dos espaços palatinos. Ao contrário destas construções, onde a polivalência era de regra, posto que houvesse aposentos femininos desde inícios do XIV, os hospitais das coroas de Aragão e de Castela analisados por Raúl Villagrasa-Elias conheceram um processo de reforma, ou de renascimento, que os transformaram em estruturas complexas, com equipas mais profissionais e edifícios maiores. Deste estudo resultou, ainda, um portal em linha, ferramenta útil para quem trabalha estas instituições. A secção encerra com uma investigação sobre os espaços e os oficiais da caça régia, com novidades sobre a organização das coutadas e sobre os vários servidores que por elas respondiam.
Dois dos trabalhos publicados na Varia respeitam às comemorações dos 20 Anos do IEM. Pertence a Gonçalo Melo da Silva o texto que faz um balanço do colóquio promovido pelo Instituto em Janeiro de 2024, no qual se pretendia reflectir sobre o percurso deste e a situação actual dos estudos medievais, os desafios do presente e as perpectivas de futuro. O outro é a comunicação escrita de António Resende de Oliveira a esse mesmo colóquio, então lida na ausência do autor. Traz um balanço imortante sobre o ensino da História da Cultura nas universidades portuguesas, a par de uma enorme preocupação sobre o futuro da disciplina. Como a Paleografia e a Diplomática, a História da Cultura está sob ameaça, por causa da política de contenção de custos, da redução do corpo docente e da quebra da continuidade entre gerações de investigadores.
O texto de Cristina Sobral que abre a Varia e no qual se presta uma merecida homenagem a Harvey Sharrer integra-se bem nestas evocações da riqueza e do dinamismo do passado e das inquietações dos tempos actuais. Mesmo sem entrar em pormenores, importa notar que boa parte das descobertas que Sharrer realizou foram o resultado da verificação sistemática de todos os manuscritos, de todas as cotas e de todas as pistas, tal como ele reconhece em alguns trabalhos. Trata-se de um velho princípio da heurística histórica, hoje mais esquecido, porque obriga a uma investigação lenta, que o tempo ajuda a amadurecer. Meritória por certo, mas que parece cada vez mais estranha na vertigem dos dias que correm.
Luís Filipe Oliveira
João Luís Fontes