A caça no período medieval é um assunto por demais conhecido entre a historiografia nacional e internacional. Contudo, o seu estudo recente - ao longo das duas últimas décadas -, nomeadamente no contexto português, não conheceu avanços tão significativos como noutras historiografias. Por um lado, não ignorando trabalhos relevantes para o estudo da caça no Portugal medievo, os avanços mais assinaláveis surgiram, sobretudo, a pretexto de estudos dedicados a outras temáticas. Por outro, o debate historiográfico, concretamente em torno das múltiplas questões que rodeiam a cinegética, não tem sido particularmente alimentado1. Sintomático desta insuficiência é o facto de que, datando de 1988, o principal trabalho de referência para o estudo da caça no Portugal medievo tenha praticamente quatro décadas de existência2.
No entanto, o mesmo não se tem verificado ao nível da historiografia internacional, que tem dado visibilidade a novas formas de perspectivar a caça desde um ponto de vista histórico3. Mal-grado a atualidade historiográfica do tema, sobretudo conquanto se insere numa dinâmica de interesse académico em história animal - e, claro, na história ambiental em sentido mais lato -, este conjunto de contributos carece de um palco de discussão e cruzamento de ideias entre investigadores. Foi esta constatação, juntamente com o ensejo de reavivar e promover o debate em torno da história da cinegética medieval, que nos levou à organização do evento científico que intitulámos Medieval Hunting Meeting (MHM), o qual pretendemos que venha a ser um ponto de encontro regular e de referência para os estudiosos do tema. Este encontro enquadra-se no âmbito da Network for the Environment in Medieval Usages & Societies (NEMUS)4, uma rede dedicada a uma área de estudos que, apesar de não ser nova, tem vindo a despertar cada vez mais interesse no seio do Instituto de Estudos Medievais, que conta, nomeadamente, com diversos projetos de mestrado e doutoramento, atualmente em desenvolvimento ou completados muito recentemente.5
A primeira edição do MHM, com o acolhimento do IEM, teve lugar nos dias 18 e 19 de Julho de 2024, no Colégio Almada Negreiros (Campus da Universidade Nova de Lisboa). Dedicada ao subtema das relações entre humanos e canis, traduziu-se na incorporação de perspectivas diferenciadas sobre a forma como os nossos antepassados medievos conviveram com lobos e cães (ambos do género canis; Linnaeus, 1758), quer no plano do imaginário, quer das vivências “reais”. Como foi expresso no Book of Abstracts, a escolha de comunicações regeu-se por um enquadramento concreto:
“The dog (canis lupus familiaris) has almost always been man's best friend, as a watchful guard, a faithful companion, and also a hunting partner. As to the wolf (canis lupus), widely despised and persecuted, it was often perceived as a threat, the enemy of livestock and man. However, these were not always necessarily the attributes associated with canis, as they could vary depending on the context and even completely contradict the most commonly held beliefs. Although human communities have developed very different attitudes towards wolves and dogs throughout time, their common biological ancestry is a given. Over millennia, while domestic canids were systematically bred by humans into a wide array of animals with distinct physiognomies and functions, dogs and wolves progressively diverged ever further apart”6.
Ao longo do evento, a sala pareceu pequena para albergar todos - entre investigadores, docentes e alunos de mestrado e doutoramento7 - os que quiseram escutar os oradores e participar na discussão.
Na sessão de abertura, Catarina Tente8, Directora do Instituto de Estudos Medievais, endereçando as boas-vindas aos presentes, deu início aos dois dias de trabalho que se seguiram. Contámos com três conferências plenárias, por Ana Elisabete Pires (Faculdade de Medicina Veterinária; Universidade Lusófona-Centro Universitário de Lisboa)9, Aleks Pluskowski (University of Reading)10 e Kathleen Walker-Meikle (University of Basel/Science Museum Group)11. A escolha de oradores e temas abordados espelharam a interdisciplinaridade e internacionalização que quisemos trazer para o debate. Assim, respetivamente, os três conferencistas proferiram comunicações versando Dogs in the Iberian Peninsula: A Genomic Study through Time; Lupus Redux: Revisiting the Idea and Reality of Wolves in Medieval Europe; e Barking Around: The Multiple Meanings of the Medieval Dog.
Os restantes contributos foram repartidos em três painéis. O primeiro, dedicado em particular à relação entre humanos e cães, explorou os diferentes tipos de cães que rodeavam os monarcas portugueses, os que eram mantidos na Casa Real ou por oficiais periféricos (Afonso Soares de Sousa)12, e o vínculo íntimo estabelecido entre cães de caça e caçadores, claramente demonstrado em vários tratados de caça medievais castelhanos (Marthe Czerbakoff)13. Além disso, foram, provavelmente pela primeira vez, evidenciados os poucos, mas extremamente significativos vestígios de medicina veterinária canina nas fontes eruditas portuguesas (André Silva)14.
No entanto, enquanto os cães e as sociedades humanas se aproximavam, os lobos mantinham-se controversos aos olhos da humanidade, numa relação nem sempre fácil de compreender, mas que muitas vezes resultava em confrontos. Dando, pois, seguimento à conferência de Aleks Pluskowski, realizou-se uma sessão dedicada à relação entre os humanos e os lobos no mundo medieval. Principiou-se por uma incursão pelo domínio da literatura e pelas percepções do lobo a nível imaginário e poético (Ana Paiva Morais)15; e, em seguida, avançou-se para uma reflexão sobre o relacionamento de dois animais (humano e não-humano) que competiam pelas mesmas presas, mas que não estavam dispostos a partilhar os despojos (Andreia Fontenete Louro)16.
A terceira sessão esbateu as fronteiras entre cães e lobos, com um olhar mais atento sobre as representações, nem sempre fáceis de diferenciar, dos canídeos na arquitetura românica de Entre-Douro-e-Minho (Silvana Vieira de Sousa)17, mas também a forma como os cães e lobos eram utilizados na literatura cortesã galaico-portuguesa da Península Ibérica para ridicularizar e escarnecer, servindo, frequentemente, de objecto a uma linguagem obscena e satírica (Fabio Barberini)18.
Os diversos contributos para este primeiro encontro foram sintetizados e analisados (Tiago Viúla de Faria), evidenciando-se assim a pertinência de recorrer a abordagens mais amplas para a análise das relações homem-animal, e a necessidade destas serem objecto para uma exploração partindo de linhas de investigação cada vez mais interdisciplinares.
O elevado interesse que estas distintas temáticas despertaram entre o público justificou, por si só, a necessidade de dar continuidade a esta iniciativa. Nessa medida, encontramo-nos já a preparar a publicação de um trabalho colectivo, tendo por base a versão escrita dos textos apresentados e, sobretudo, as reflexões que resultaram do profícuo debate que teve lugar neste encontro. Por outro lado, encontra-se já programada, também, a realização de futuras edições do MHM, a primeira das quais terá lugar em meados de 2025, dedicada ao subtema dos espaços e tempos da caça.