Introdução
O cuidado em saúde mental, no Brasil, tem sido objeto de debates e inovações, especialmente diante da transição impulsionada pelo Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica (MBRP). Nesse sentido, é necessário compreender os modelos de atenção que, atualmente, influenciam concepções e práticas de cuidado em Saúde Mental: modelo Asilar, o Psiquiátrico Clássico e o de Atenção Psicossocial Territorial-APT (Nunes et al., 2016). O primeiro, pautado no caráter violento e excludente ao que transgride a norma social, e o segundo, eminentemente centrado na cura da doença e tendo como instituição fundamental o hospital psiquiátrico, entrelaçam-se, reafirmando-se.
Diferenciando-se desses, o modelo de APT fudamenta-se em uma concepção ampliada de saúde e investe no sujeito, compreendendo a saúde/doença como um complexo dinâmico em que múltiplos processos se interdependem e se interdeterminam (Nunes et al., 2016). Constata-se, então, um deslocamento que permite tomar esse sujeito como um agente da possibilidade de mudanças (Melo & Melo, 2022). Orientado por essa mudança de paradigma, propõe-se a produção do cuidado no território geográfico e social do sujeito, fomentando, pois, o redirecionamento da lógica de organização dos processos de trabalho e de produção de ações de saúde (Guimarães & Sampaio, 2016).
Dentre as diversas táticas propostas para a efetivação do modelo APT, os Centros de Atenção Psicossocial-CAPS foram os serviços que mais se ramificaram pelo território brasileiro, como substitutivos à internação psiquiátrica hospitalar. Porém, mesmo com a mudança de paradigmas, há ainda hoje uma sobreposição de ações, práticas e cuidados, remanescentes dos modelos Asilar e Psquiátrico Clássico, que afetam diretamente a efetivação da APT (Nunes et al., 2016).
As concepções demarcadas por esses modelos, em suas distinções intrínsecas de sujeito, saúde e doença, estão inscritas em processos e movimentos históricos, como vemos em Amarante e Nunes (2018). Assim, é possível acompanhar as contradições históricas no processo de implementação de uma alternativa substitutiva aos modelos Asilar e Hospitalar (Melo & Melo, 2022). Delineiam-se empecilhos à efetivação de mudanças na abordagem, assinalando uma vinculação intrínseca à realidade social, como afirmam Nunes et al. (2016, p. 1215): “na transição do modelo Psiquiátrico Clássico para o modelo APT, um dos maiores entraves percebidos é a sobrevivência de um padrão sociocultural que legitima a segregação das diferenças”.
Nesse contexto, destacam-se os efeitos que tal contradição provoca nas práticas cotidianas nos serviços de atenção psicossocial, por aqueles que o fazem. Ora, se há uma prática, ou conjunto delas, o que a orienta? Quais modelos de atenção e paradigmas efetivam-se no cotidiano dos trabalhadores em saúde mental atuantes nos CAPS? Considerando esses questionamentos, este artigo buscou compreender os modelos de atenção e os paradigmas existentes que orientam o processo de trabalho em saúde mental nos CAPS.
Métodos
Estudo de natureza qualitativa, com abordagem reflexiva e crítica, por se constituir na relação de familiaridade entre o pesquisador-meio-processo de trabalho em saúde mental, diante da observação do fenomeno no âmbito das representações sociais, perspectivas subjetivas, atitudes, valores e processos relacionais (Minayo, 2014).
A pesquisa foi desenvolvida no município de Caucaia, situado da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, Brasil, com estimativa populacional de 361.400 habitantes para 2020 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021), período em que se realizou o estudo. A coleta de informações ocorreu em três serviços da APT, por serem os únicos disponíveis no território, sendo estes, classificados como: CAPS tipo II, CAPS infanto-juvenil-CAPSi, e CAPS álcool e outras drogas-CAPSad.
Participaram da pesquisa 15 trabalhadores, cinco de cada serviço, selecionados por conveniência, diante da manifestação de interesse para participar do estudo, no momento em que o pesquisador esteve nos serviços, sendo: seis auxiliares administrativos, um assistente social, dois psicólogos, um enfermeiro, dois funcionários de serviços gerais, dois médicos psiquiatras e um médico clínico geral.
Foram realizadas entrevistas individuais, por meio da utilização de roteiro semiestruturado, com duração média de 30 minutos, as quais foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra, com as seguintes questões: (1) A partir da sua experiência cotidiana, em que consiste o tratamento oferecido aos usuários no CAPS? (2) Você percebe algum tipo de hierarquia entre as categorias profissionais no desenvolvimento das terapias/tratamento dos usuários do CAPS? (3) Considerando as práticas terapêuticas realizadas por vocês no CAPS, quais seriam as consequências que potencializam ou que limitam o tratamento dos usuários do CAPS?
As informações obtidas foram analisadas pela técnica de Análise de Conteúdo, em que a interpretação é feita com base na leitura e sistematização dos conteúdos das falas em categorias, com o objetivo de inferir sobre os sentidos mais profundos deste material (Minayo, 2014). A organização e o processamento das informações foram realizadas com apoio do software Iramuteq, que faz “análises estatísticas sobre corpus textuais e sobre tabelas, indivíduos/palavras” (Camargo & Justo, 2018, p. 1), sendo utilizada a Classificação Hierárquica Descendente-CHD e a nuvem de palavras, com o método estatístico inferencial do Qui-quadrado do Iramuteq 0.7-alpha 2, do corpus gerado a partir das entrevista individuais com os trabalhadores dos CAPS. A partir das classes que emergiram, as temáticas, as quais foram analisadas e organizadas em categorias empíricas.
A pesquisa obteve parecer ético legal, sob número 4.379.407 e CAAE 38440020.3.0000.5037, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Ceará-ESP/CE. A fim de que se mantivesse o sigilo dos participantes realizou-se o seguinte procedimento de codificação: 1- primeira letra da categoria profissional, 2 - caso a categoria seja a mesma foi indicado um algarismo arábico, 3 - indicação do serviço que atua, 4 - ordem de entrevista, como no seguinte exemplo: AA1CAPSi2.
Resultados e discussão
O corpus geral foi constituído por três textos, separados em 30 segmentos de textos (ST) e aproveitamento de 27 STs (90,0%), gerando sete classes, com as classes 1, 2, 3, 5, 6 e 7 (14,8%) tendo a mesma representatividade. Na Figura 1, pode-se visualizar o dendograma que demonstra as classes advindas das análises lexicais.
As seis classes apresentadas na Figura 1, geradas pelo software Iramuteq deram origem a três categorias empíricas a seguir:
Modelos de atenção e paradigmas existentes no trabalho em saúde mental - composto pela classe 6 e 5, as quais se referem à produção e às ações desenvolvidas pelos trabalhadores diante das necessidades apresentadas pelos usuários dos CAPS;
Relações multiprofissionais tortuosas: a hierarquia velada na atenção psicossocial, composta pelas classes 7 e 1, que irá discutir como as relações interprofissionais se constituem em meio à necessidade do trabalho interdisciplinar nos CAPS;
Implicações do modelo psiquiatrico clássico no processo de trabalho psicossocial territorial, composta pelas classes 4, 3 e 2, para melhor compreensão dos sentidos, optou-se pela nuvem de palavras (Figura 2), como forma ilustrativa para a representação desta categoria, as quais evidenciam os vestígios do modelo Hospitalar Psiquiátrico, e sua interferencia na concretização do processo de trabalho proposto pela APT.
Modelos de atenção e paradigmas existentes no trabalho em saúde mental
Os primeiros elementos, a permitirem análise dos modelos de atenção existentes no processo de cuidado em saúde mental, surgem como resultado do questionamento sobre o tratamento ofertado. Houve uma preponderância, no discurso dos trabalhadores dos CAPS, sobre os termos “serviço”; “profissional” e “acolhimento”.
As atividades são estabelecidas como sendo feitas para “eles”, não com eles, como observa-se no relato de PCAPSAD2 sobre seu método de trabalho: “eu vou tentando e encaixo no paciente a melhor técnica, a melhor forma de tentar tocá-lo”. A passividade do “paciente” aqui é vividamente sublinhada. Questiona-se até que ponto os trabalhadores esquecem que os processos de trabalho devem ter o usuário como protagonista.
Como assinalado anteriormente, ao elemento “serviço”, identifica-se o termo “médico” e, conexo a ele, “atendimento”. Assim, aquilo que caracteriza ou marca o serviço prestado é o agente e sua função: a realização de atendimentos por médicos.
Nesse sentido, delineia-se uma segunda distinção importante, interna à equipe, tendo como critérios a categoria profissional e o trabalho realizado. Na equipe, há uma diferenciação entre trabalhadores médicos, trabalhadores não médicos e trabalhadores de nível médio. Tendo em vista a representação da Figura 1, depreende-se que é atribuída uma maior importância, no serviço, aos trabalhadores médicos, uma vez que estes, como agentes, e sua própria função, o atendimento médico, são sublinhados discursivamente.
A outra ramificação que emerge é “profissional”, da qual partem: “atendimento”, “acolhimento” “paciente” e “pessoas”, pode-se interpretar esse “profissional” como um trabalhador não médico, demarcando uma indiferenciação de categorias profissionais como assistente social, psicólogo, enfermeiro, terapeuta ocupacional, bem como de suas atividades, assinaladas por “atendimento” e “acolhimento”. Ressalta-se que a prática de acolhimento inicial ao usuário, conforme os relatos dos entrevistados, é realizada por trabalhadores dessas categorias, excetuando-se a médica.
No que se refere ao registro de que o atendimento deve ser “o mais rápido possível”, como ressalta ECAPSi1 e ASSCAPSI4, deve-se pontuar a precarização do trabalho público como efeito da adoção da ideologia neoliberal, como apontam Guimarães e Sampaio (2016). Neste âmbito, imbricam-se fatores como o reduzido número de profissionais frente à demanda crescente, a contratação part time ou por tempo determinado, sempre inferior ao tempo necessário aos projetos terapêuticos, e a fragilização dos direitos e benefícios trabalhistas, dentre outros.
Relatos como o de ECAPSI1, quando afirma que “com relação à nossa abordagem (...) a gente procura dar vazão o mais rápido possível”, retrata a oferta de um trabalho precarizado e aquém do que é previsto como uma estratégia de cuidado humanizado, que inclua “acolhimento, escuta, vínculo, corresponsabilização e construção de autonomia” (Guimarães & Sampaio, 2016, p. 269). Assim, podemos avistar obstáculos a um acolhimento que tenha por objetivo a construção de vínculos, como previsto na Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão em Saúde (PNH) (2003).
Relacionando-se à discussão sobre a precarização do atendimento, é interessante atentar à terceira ramificação ligada com a “escuta”. O termo se relaciona a técnica de “escuta qualificada”, no discurso dos trabalhadores responsáveis pelo cuidado. No entanto, esta técnica vem sendo aplicada quase que exclusivamente, com a coleta de informações, como se percebe na fala de AACAPSII3: “a gente escuta para saber o que ele [o paciente] está precisando e a gente encaminha se for para o psicólogo ou para qualquer outro setor responsável” e, também, na fala de PCAPSII4: “o paciente chega (...) e é passado para o profissional que está na acolhida, feita a escuta, e, através da escuta, a gente vê a necessidade desse paciente”. A concepção, portanto, parece administrativa, para triagem, em confronto com a noção de escuta qualificada como potência para criação de vínculos (Girundi et al., 2021).
O acolhimento, com escuta, é uma estratégia para construção de vínculos, que devem ser buscados por toda a equipe. Porém, se apenas um segmento é colocado como responsável, o que daí se depreende é que a construção desse vínculo é algo prescindível para uma parcela da equipe. Como apontado, trabalhadores médicos não realizam acolhimentos nos serviços que constutuíram o cenário da pesquisa. Percebe-se, assim, a construção de uma hierarquia, já que este momento inicial deve ser feito por trabalhadores não médicos, tomados, aqui, como intermediários dentro de um fluxo vertical.
Os processos de trabalho, então, estabelecem uma correspondência com a lógica da linha de montagem, segundo a qual as tarefas e o próprio sujeito são fragmentados e encadeados como qualquer mercadoria de produção comum (Melo & Melo, 2022). Confirma-se tal correspondência ao atentarmos à ausência de encontros para discutir casos, elegendo como registro de montagem do objeto-produto-mercadoria o prontuário, como demonstrado por MCAPSI5, ao dizer que “chega o paciente e eu olho o prontuário”.
Considerando os relatos dos participantes, o acolhimento não se faz junto ao usuário, mas, sim, junto à crise ou à doença mental. Logo, o que interessa é que esse procedimento seja rápido e sucinto, selecionando os aspectos que realmente importam a este modelo, isto é, relativos à doença. De fato, captura-se uma tecnologia de cuidado do modelo de APT, qual seja, o acolhimento, para colocá-lo a serviço do modelo Psiquiátrico Clássico, já que é esvaziado do intuito da construção de vínculos.
Relações multiprofissionais tortuosas: a hierarquia velada na atenção psicossocial territorial
A resposta preponderante à percepção sobre hierarquia no contexto de trabalho no CAPS é “não”, conforme as falas de todos os entrevistados. Porém, sutis contraposições a esta negativa inicial delineiam-se na trama discursiva dos relatos. Alguns desvelamentos surgem, por exemplo, quando se indica que a presença de hierarquizações é algo que é trabalhado pela e na “equipe”, tendo relação direta com “trabalhar”; “hierarquia”, “muito”, “médico”, “relação”, “percebo” e “profissionais”, conforme Figura 1. “Trabalhar”, nos relatos, diz respeito ao lidar com os outros nas relações de trabalho, aparecendo aqui, pois, como um sinônimo de elaborar, defrontar-se e buscar formas de manejar uma determinada questão.
Este sentido é corroborado por PCAPSII4, ao afirmar que a presença de hierarquia é algo que “as diferenças estão sendo abordadas em reuniões para tentar equiparar”, o que confirma a existência de hierarquizações, bem como, aponta para movimentos que buscam suprimi-la, por meio de reuniões de equipe, encontrando novos arranjos. As conexões sugeridas pelas classes 7 e 1, indicam uma percepção de “existir” hierarquia no caso da categoria “médico”, em contraposição à predominância da resposta “não” manifestada nas entrevistas.
Considerando a complexidade do trabalho em saúde, é importante entender a interdisciplinaridade como uma proposta que exige a integração não somente de saberes, mas também de práticas, e integra e renormaliza as disciplinas e as profissões delas decorrentes, concretizando, ao final, a íntima relação entre conhecimento e ação (Santos et al., 2018). Porém, tal integração não se dá sem tensionamentos, nem deslocada do complexo social no qual são constituídos e articulados em sua realidade prática.
O processo interdisciplinar de compartilhamento e interlocução pode encontrar dificuldades e descompassos, especialmente no que se refere à existência de hierarquia entre saberes (Santos et al., 2018). No campo da saúde é frequente observar uma fragmentação de saberes e de práticas, o que estabelece um espaço fértil à hierarquização, favorecendo o perpetuar de uma lógica de trabalho centrada no médico (Melo & Melo, 2022).
A existência de relações hierárquicas também aparece no cotidiano do trabalho, mas com tentativas de superação, como podemos perceber na fala de ASCAPSAD1: “atualmente existe bem mais sutileza nessa hierarquia, quando eu cheguei era bem mais evidente, principalmente com relação a médico, ficava meio que a equipe técnica, equipe de suporte, num patamar, e os médicos acima. Hoje em dia já é um pouco menos”. Encontramos ecos a esta fala em PCAPSII4, quando assinala que “alguns médicos tem uma dificuldade de aceitar o que nós levamos; nós temos uma visão e às vezes fica ‘bate e volta’.
Entretanto, outro aspecto da estruturação hierárquica surge quando a equipe se abstém de dar algum tipo de suporte, eximindo-se de participação na condução dos processos, como PCAPSAD5 aponta ao dizer que “alguns profissionais acharem que só o médico pode resolver várias situações quando eu acho que não, que há várias situações que se acha que só o médico, mas outras pessoas da equipe podem também conseguir resolver”. O mesmo entrevistado também afirma que “teoricamente qualquer profissional de equipe multidisciplinar está apto a fazer ou tentar fazer o que o médico muitas vezes não conseguirá resolver”.
Depreende-se, então, um impasse materializado na contradição entre modelos de atenção distintos. A despeito do “não” acerca da existência de hierarquia na equipe, são narradas situações que evidenciam uma forte orientação ao modelo Psiquiátrico Clássico, muito embora o CAPS deva constituir-se em uma lógica de trabalho interdisciplinar e horizontal, conforme o modelo de APT.
As desigualdades estabelecidas em função dos vínculos empragatícios são outro aspecto que influencia a dinâmica de trabalho e a definição de patamares hierárquicos entre os profissionais, devido a diferenciação entre “concursado” e “contratado”. Têm-se, então, uma verticalidade entre concursados, que detêm maior estabilidade, em detrimento dos contratados, sujeitos à fragilização e a troca de favores políticos. O comprometimento da estabilidade laboral afeta o trabalho nos serviços de saúde mental (Guimarães & Sampaio, 2016).
Desdobra-se, aqui, a impossibilidade de implementação do modelo APT ao mesmo tempo que haja uma desvalorização dos trabalhadores (Lima et al., 2021). A precarização do trabalho, inclusive, pode ser vista como estratégia sistemática de desmonte, uma vez que trabalhadores desvalorizados, com vínculos empregatícios fragilizados, engendram o suporte de uma narrativa capciosa de ineficácia de qualquer estratégia que não a hospitalocêntrica.
O que se observa nas entrevistas é a presença de profundas marcas na organização da lógica de trabalho. A equipe vê-se como inapta para lidar com as demandas trazidas pelos usuários, pois estas só podem ser enxergadas pela “centralidade na doença e no combate aos seus sintomas” (Nunes et al., 2016). Essa perspectiva, baseada numa estrita delimitação e reducionismo, contrapõe-se ao que Paladino e Amarante (2022) indicam como uma nova forma de cuidado, que deve operar na construção de possibilidades.
Evidencia-se, assim, que novas concepções para promoção de cuidado não são garantia da superação das tendências de dominação e exclusão (Dimenstein et al., 2021). Faz-se relevante lembrar a crítica promovida por Pelbart (1991) ao mencionar os “manicômios mentais”, onde perfaz-se uma “racionalidade carcerária” que não rompe operacionalmente com lógicas de paradigmas questionados pelo MBRP.
Depara-se, então, com um cuidado que se propõe atravessado por noções como rede e território, mas que, efetivamente, não rompe com a proposta de cuidado essencialmente biomédica, centrada no modelo exclusivamente clínico e na prescrição medicamentosa, subservientes, portanto, à lógica manicomial (Machado, 2020).
Implicações do modelo psiquiatrico clássico no processo de trabalho psicossocial
Ao questionar os entrevistados sobre como suas práticas de trabalho influenciam o tratamento ofertado aos usuários, destacou-se nas respostas o elemento “não”, conforme demonstração ilustrada pela nuvem de palavras, apresentada pela Figura 2, também ganham ênfase as palavras “gente”, “tratamento”, “paciente”, “equipe”.
Buscando compreender o sentido atribuído ao “não”, e sua conexão com outros termos, é necessário refletir sobre a forma como os entrevistados caracterizam seu trabalho. Depara-se, em muitos relatos, com uma noção de cuidado em que o adoecimento em saúde mental é um problema a ser resolvido, eminentemente pelas categorias com maior poder hierárquico. Como vemos na fala de ECAPSI1: “procuramos sempre solucionar o problema” e de AACAPSII3: “a gente já resolve o problema, se alguém está em crise eu vou e falo logo com o médico e digo tem um paciente assim e tal e já passo para a enfermagem”. A família também é demarcada como possuidora de problemas, como PCAPSII4 assinala: “infelizmente a gente encontra muitos percalços por conta da família que tem muitos problemas”.
De acordo com esta compreensão, o usuário, que esta representado na núvem de palavras Figura 2 apenas como paciente, então, busca o serviço por ter algum problema. Observa-se a ênfase no problema, e a consideração do indivíduo como centro do problema (Honorato, 2022), reforçando o isolamento e estigma social. Como consequência, o CAPS torna-se o lugar dos problemas e das, supostamente, soluções.
As ditas soluções, na tessitura discursiva, são indicadas pelo tratamento no serviço, entretanto, esse tratamento não faz menção ao que esteja além do serviço. O tratamento é atrelado àquele espaço, caracterizando uma atuação ‘CAPS centrada’, que o configura como um novo local de cronificação (Nunes et al., 2016). Nesse sentido, Dimenstein et al. (2018) também assinalam a existência de modos de gestão resistentes em operar para fora do serviço, em produzir portas de saída e de circulação na rede, aspectos que podem estar transformando os CAPS em manicômios disfarçados.
Ao mencionar os familiares dos usuários, PCAPSII diz que “não se importam, não ajudam, então o paciente toma a medicação de forma completamente equivocada, não como foi prescrita, então os resultados são sempre piores do que quando chega aqui”. Estabelece-se uma sinonímia entre o tratamento adequado e a medicação, e delimita-se o papel da família na manutenção dos ditames prescritivos. Nessa perspectiva, a aproximação da família, quando existem as aproximações, costumam ter caráter apenas pedagógico e assistencial (Honorato, 2022).
O trabalho realizado é entendido como tendo, principalmente, uma função de orientação ao “paciente” e à família. Como afirma ECAPSI1, “o nosso papel aqui (...) é de suma importância, sem dúvida, que seja o profissional médico, o terapeuta ocupacional, o psicólogo, o serviço social, a enfermagem, nós estamos para orientar em relação às medicações que sejam passadas pelo médico”. Portanto, o sofrimento mental, a doença mental, é abordado como uma desorientação, ideia próxima à de desvio da norma, o “paciente” é visto como despossuído de orientação e é aí que o serviço e seus trabalhadores atuarão e todos para dar suporte ao médico.
Esses são indícios que apontam para uma relação de clientela característica do modelo Asilar, que pode ser definida em termos de suprimento e carência, sabedoria e ignorância, razão e insensatez, sapientes e ignorantes (Honorato, 2022). Tais dualidades são herdeiras semânticas da divisão fundamental entre sãos e loucos que reforçam o estigma social (Flores, 2020).
Atravessada pela noção de “problema”, a noção de melhora na condição clínica está ancorada na ideia de reabilitação correcional no quadro da doença mental, na forma de sua remissão, quase sempre por meio da medicalização, como assinala PCAPSII2: “quando não tem ninguém para explicar o uso da medicação é difícil ele melhorar”. Caberia questionar, ainda, na perspectiva de quem, usuários ou profissionais, será determinado o “melhorar”. Observa-se, então, uma produção de cuidado que “direciona o foco para a clínica individual, com ênfase na prescrição medicamentosa, em que o usuário é reduzido à condição de objeto, desconsiderando subjetividade, singularidade e cada sujeito em sua experiência de vida” (Nunes et al., 2016, p. 1228).
Constata-se, mais uma vez, a reprodução do modelo Psiquiátrico Clássico, também evidenciado na fala de AACAPSII1 “a parte ambulatorial [ainda] é a cara do serviço, infelizmente, atendendo esses pacientes de forma muito ambulatorial, não com esse cuidado psicossocial mais amplo”.
Percebe-se, assim, um dos desafios da Reforma Psiquiátrica, o qual busca amenizar o risco de reprodução de práticas próprias dos modelos tradicionais nos serviços substitutivos. O modelo Psiquiátrico Clássico perpetua-se em um espaço de cuidado que se propõe substitutivo ao cuidado excludente ofertado pelo manicômio, explicitando a repetição dos contornos das práticas do paradigma que pretendem superar (Guimarães & Sampaio, 2016).
Os movimentos que conduziram à Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira apresentavam propostas disrruptivas e de caráter contestatório às condições de produção de uma racionalidade que corrobora a desigualdade social e políticas de exclusão. Entretanto, findaram por instituir poucas alterações, sem real transformação, configurando um cenário com rupturas, mas também com grandes continuísmos (Honorato, 2022).
Os relatos obtidos nas entrevistas assinalam atuações que começam e se esgotam, em sua maioria, no serviço, vendo como impossíveis ou demasiadamente além de suas forças uma prática “extra-muros”. Por isso, é necessário estimular atuações que interajam e descentrem, antes de tudo, a si mesmas, isto é, desloquem-se dos serviços, dos espaços institucionais, promovendo a inserção na sociedade e valorizando os espaços de vivências dos usuários.
Se obstinada é a persistência de modelos tradicionais e excludentes, obstinados também são os tensionamentos que apontam para a urgência de mudanças na forma de cuidar. É neste campo que reside a aposta do cuidado alternativo, atravessado pela dimensão territorial da Saúde Mental.
Considerações Finais
Diante da compreensão dos achados, ressalta-se que o objetivo do estudo foi alcançado, pois ficou evidenciado haver uma forte implicação do modelo Psiquiatrico Hospitalar no processo de trabalhos desenvolvidos dentro dos CAPS. Constituindo distinção hierárquica entre profissionais médicos e não médicos, estando presente uma veemente orientação medicalizante da vida, com uma frequente abordagem individualista destinada aos usuários dos serviços, aos quais é relegado, uma postura passiva e de espectador na construção de sua linha de cuidado.
A contradição aí advém da não superação das práticas biomédicas do trabalho individual, agrupado, ‘CAPS centrado’ na cura da doença e no controle dos corpos, sendo cotidianamente reproduzidos em serviços que nasceram e se constituiram a partir da APT. Logo, o distanciamento da produção de cuidados em saúde mental, com base na APT, pelos trabalhadores dos CAPS, se constitui em si, como uma limitação do estudo, pois o que se espera é encontrar um processo de trabalho que atenda a base epistemologica da APT. Onde a constituição colaborativa, interdisciplinar, humanizada e de base territorial ficam fortemente restrita à teoria, e as lutas que antes reinvidicavam por reformas, agora se alienam diante da prática.
Tal trajeto só será mudado pela retomada do processo reformista, com base na fortificação da Política Nacional de Saúde Mental, por meio da educação permanente em saúde, na garantia dos direitos sociais e trabalhistas dos trabalhadores, os quais podem fortificar a produção do trabalho interdisciplinar coletivo e colaborativo, alinhando-se com a Atenção Psicossocial Territorial.
Implicações para a Prática Clínica
Ignorar a hegemonia das práticas derivadas dos modelos Asilar e da Psiquiatria Clássica e incorporá-las na APT, é incorrer levianamente na reprodução de um cuidado não humanizado, o qual tende à exclusão dos ditos “loucos” em uma sociedade padronizada e normativa.
O cuidado em saúde mental é perpassado pela complexidade da realidade social-coletiva-individual. Aposta-se que, pela via de questionamento acerca do cuidado em rede de saúde e tendo em vista a urgência de considerar a produção de cuidado à luz dos determinantes sociais que aí concorrem, poder-se-á pensar em uma efetivação integral do modelo de Atenção Psicossocial Territorial.