Introdução
Homofobia, bifobia e transfobia são conceitos que representam a expressão da hostilidade e violência contra lésbicas, gays, bissexuais, trans, queers, intersex, assexuais, entre outros (LGBTQIA+) e podem ser expressadas em ambiente universitário tanto de forma verbal por parte dos membros da comunidade acadêmica, quanto em materiais didáticos que compõem os currículos academicopedagógicos (Ribeiro, de Freitas Moraes e Medeiros Kruger, 2020). Estigma e preconceito institucionais e sociais perpassam pelos campos afetivos e cognitivos e podem impactar o desenvolvimento pessoal, saúde mental, bem-estar e expressividade de estudantes universitários LGBTQIA+ por meio de experiências de sofrimento psíquico que englobam características depressivas, ansiosas e queixas somáticas além de impactar nos relacionamentos interpessoais e comprometerem o desempenho nas atividades diárias, aspectos importantes em contexto acadêmico (Kuffel e Primão, 2017).
Estudos que visam conhecer percepções e experiências de LGBTQIA+ sobre o contexto universitário, percepções alheias que se tem nesse meio sobre temas LGBTQIA+, e condições de políticas e programas sociais voltados à essa população, tornaram-se expressivos nos anos 1990 nos Estados Unidos da América (EUA), onde atualmente estima-se que os LGBTQIA+ adultos acima de 18 anos compõem 4,9% da população total (Conron, & Goldberg, 2020; Renn, 2010).
Quanto à Europa e Ásia Central, em revisão anual sobre os direitos humanos de LGBTQIA+ relata-se que 72% de uma amostra (n=200) na Albânia declarou já ter sofrido bullying em ambiente escolar por ser LGBTQIA+, duas jovens trans cometeram suicídio na França pelo mesmo motivo em 2020, em Portugal 86% de uma amostra de 4843 estudantes acredita que a temática deve ser melhor abordada em sala de aula e em Malta a maioria dos estudantes LGBTQIA+ não acreditam que o currículo estudantil os representa (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association [ILGA-Europe], 2021).
A partir da compreensão das experiências de sofrimento psíquico de estudantes universitários LGBTQIA+ é possível identificar lacunas nos programas de diversidade atuantes e analisar fatores associados à percepção de inclusão afim de incentivar e prover evidências para a criação, manutenção e expansão destes (Monaci, 2018; Renn, 2010). Como consequência à intolerância e exclusão sofridas, e ao não-posicionamento das instituições face à discriminação devido à falta de política inclusiva efetiva, a população LGBTQIA+ torna-se mais suscetível a evadir da Universidade (Vieira Jr & Almeida, 2019). É o caso de travestis e trangêneros: estima-se que no Brasil a evasão acadêmica entre essa população seja de 82% (Hanna & Cunha, 2017). Dentre fatores que tornam uma organização inclusiva para indivíduos LGBTQIA+, a adoção de medidas eficazes para a inclusão implica em maior segurança e produtividade tanto em relação aos indivíduos quanto à organização de modo geral (Monaci, 2018).
Diante do exposto, a importância de abordagem do tema refere-se à possibilidade de, por meio do conhecimento das vivências de estudantes universitários LGBTQIA+, apontar estratégias de enfrentamento utilizadas por esse grupo, bem como nortear o desenvolvimento e indicar rumos para políticas de inclusão. Assim, objetiva-se revisar as produções recentes da literatura acerca do tema a fim de compreender as experiências vivenciadas pela população estudantil LGBTQIA+ no contexto universitário, e explorar os fatores que implicam em sofrimento psíquico em vistas a fundamentar ações institucionais que possibilitem tornar o meio acadêmico mais seguro e acolhedor para tais estudantes.
Métodos
Trata-se de uma revisão sistemática da literatura cuja pergunta de investigação seguiu as orientações da estratégia PICo - População, Interesse e Contexto, metodologia voltada para pesquisas não-clínicas (Sousa et al., 2018), sendo esta: Quais os fatores associados às experiências de sofrimento psíquico em estudantes universitários LGBTQIA+? Os termos e estratégia de busca foram lgbt AND university, nos últimos dez anos (2009 - 2019) por busca completa na base de dados PubMed e limitados somente ao resumo na SciELO e BVS.
O processo de busca e seleção dos estudos ocorreu em janeiro de 2020 e se deu conforme as recomendações PRISMA (Moher, Liberati, Tetzlaff, Altman, & PRISMA, 2010) (Figura 1). As referências foram importadas, organizadas e sistematizadas por duas pesquisadoras de forma independente. Foram identificados por meio da pesquisa inicial 51 artigos na base de dados PubMed, 47 na BVS e 1 na Scielo, totalizando 99 artigos; sendo 42 destes excluídos por estarem duplicados. Dentre os 57 artigos restantes, todos adequaram-se aos critérios de inclusão: sujeitos da pesquisa serem universitários; e artigos publicados nos idiomas inglês, português e espanhol entre os anos 2009 e 2019. Após a leitura de títulos e resumos, 38 artigos foram excluídos por apresentarem um ou mais critérios de exclusão: teses, capítulos de teses, livros, capítulos de livros, anais de congresso ou conferências e editoriais; ou que não estivessem disponíveis no formato eletrônico. 8 artigos foram selecionados para a revisão a partir da leitura íntegra dos artigos por contribuírem para a construção do estudo ao atenderem ao objetivo proposto.
Resultados
Os artigos respondem à pergunta norteadora ao apresentarem fatores associados ao sofrimento psíquico de estudantes universitários LGBTQIA+. Isto é, referem à forma como o ambiente universitário, enquanto espaço inseguro para a expressividade de discentes LGBTQIA+, associa-se às experiências ali vivenciadas, como: as opressões e represália entre estudantes, os determinantes sociais de vulnerabilidades e o desamparo institucional. Além disso, contemplam sobre o coletivo LGBTQIA+ e ativismo estudantil, ou políticas de assistência institucionais e regimentos internos das universidades voltados a debates e reivindicações do grupo LGBTQIA+.
O idioma em 87,5% (n=7) dos artigos é inglês, havendo 1 único artigo sido publicado em espanhol. O país onde a maioria (62,5%) das pesquisas ocorreram, é os EUA, correspondendo a 5 artigos. Seguido de Japão, Irlanda e México, como países com 1 (12,5%) pesquisa executada em cada. Além disso, dentre os 10 anos (2009 - 2019) aos quais esta revisão se limitou, aqueles nos quais os artigos foram publicados são: 2011, 2013, 2014, 2016, 2018 e 2019. Cada um dos anos com 1 artigo publicado, exceto 2018, quando 3 (37,5%) do total (n=8) de artigos foram publicados (Tabela 1).
Discussão
Os resultados foram agrupados em duas categorias temáticas, cada uma contendo duas subcategorias, a saber: 1) Clima do campus - a) determinantes de vulnerabilidades; b) vivência universitária e saúde mental; e 2) medidas de intervenção - a) ativismo estudantil LGBTQIA+; b) políticas institucionais de assistência.
Clima do Campus - determinantes sociais, vivências e saúde mental
Evidências de desamparo institucional em faculdades e universidades, discriminação, assédio e intimidação focados na orientação sexual, identidade ou expressão de gênero podem compor a vida cotidiana dos estudantes LGBTQIA+, interferir em sua saúde mental e constituir aspectos relacionados ao clima do campus universitário. Ressalvas quanto à livre expressão de suas orientações sexuais e identidades de gênero, porém, geralmente surgem a partir das relações familiares, quando a internalização do sofrimento psíquico e ocultamento de si se fazem necessários - seja pelo desejo de proteger sua privacidade e evitar estigma e discriminação, seja por uma atitude consciente ou inconsciente de autocensura e preconceito internalizado (Ikuta et al., 2016; Tetreault, Fette, Meidlinger, & Hope, 2013; Villanueva & Ponce, 2018).
Ignorar as necessidades específicas de um coletivo e tratar a todos como sujeitos homogêneos influencia negativamente o entendimento científico social entre as semelhanças e as diferenças desses grupos, especialmente em casos nos quais esses sujeitos apresentam outros marcadores sociais de vulnerabilidade para além de comporem a comunidade LGBTQIA+ (Boyle & McKinzie, 2018). A exemplo, os resultados apontam que mulheres, independente de sua orientação sexual, apresentam maiores índices como vítimas de violências sexual em relação a homens; e o mesmo ocorre com estudantes racializados em comparação a estudantes brancos, ou em análises que combinam gênero, raça e orientação sexual, onde mulheres racializadas LGBTQIA+ compõem um grupo que sofre de uma opressão tripla: de raça, gênero e sexualidade (Boyle & McKinzie, 2018; Lima, 2018). Percebe-se, portanto, que a intersecção desses determinantes ocasiona maior probabilidade de essas estudantes estarem expostas à hostilidade e à experiências de sofrimento psíquico.
A constância com a qual circunstâncias de violências e violações permeiam a vivência social de indivíduos LGBTQIA+ pode, inclusive, constituir fatores de marginalização, perda, diminuição, violação ou precariedade de seus direitos enquanto cidadãos, e configurar um quadro de estresse de minoria composto de potencializadores ao sofrimento psíquico (Chinazzo et al., 2020; Robinson & Spivey, 2011; Smidt, Rosenthal, Smith, & Freyd, 2019; Villanueva, & Ponce, 2018) . Conseguinte, assédio sexual, perseguição, racismo e estigma vivenciados em ambiente acadêmico ou familiar podem ocasionar disparidades na saúde psicológica e física das minorias sexuais, e aumentar a probabilidade de comportamentos suicidas (Boyle, & McKinzie, 2018; O’Neill et al., 2018; Smidt et al., 2019). Nesse contexto, as universidades religiosas foram classificadas dentre as mais hostis a discentes LGBTQIA+ por apresentarem menos abertura a debates que os protagonizem, junto às universidades localizadas em regiões onde os direitos de pessoas LGBTQIA+ não são assegurados devido ao partidarismo político (Kane, 2013; O’Neill et al., 2018; Robinson, & Spivey, 2011).
O preconceito internalizado atua principalmente em relação à autoestima e fragilização do autocuidado, assim os eventos discriminatórios atingem sujeitos LGBTQIA+ ainda que estes não sejam os alvos diretos das mesmas, devido à sua autopercepção e antecipação da rejeição, o que os tornam mais suscetíveis a situações de isolamento (Cerqueira-Santos, Azevedo e Ramos, 2020). Em adendo, não-heterossexuais vítimas de assédio sexual apresentam maiores níveis de depressão, ansiedade, comportamentos autolesivos e distúrbios alimentares, uma vez que a exposição constante e duradoura ao sentimento discriminatório constitui um fator de risco à saúde mental da população LGBTQIA+ quando em comparação a indivíduos heterossexuais (Melo, Silva e Mello, 2019; Smidt et al., 2019).
Assim sendo, a forma como o ambiente universitário relaciona-se a fatores que contribuem para o sofrimento psíquico de estudantes LGBTQIA+ pode estar condicionada a determinantes de vulnerabilidades, e à relação entre a vivência universitária e saúde mental considerando a prevalência e as consequências de opressões e represália entre estudantes, e as influências religiosas e da política partidária regional na política de igualdade das universidades.
Medidas de intervenção e representatividade - ativismo estudantil LGBTQIA+ e políticas institucionais de assistência
Há um entendimento entre os estudantes universitários de que os campi que contêm coletivos LGBTQIA+ geralmente configuram ambientes menos hostis, principalmente entre aqueles que tiveram contato prévio com tais coletivos durante seu ensino médio (Kane, 2013). Uma vez que esses grupos tornam-se uma fonte de apoio social e oportunidades de ativismo, o espaço universitário passa a ser considerado mais aberto a expressões de gênero e sexualidade que divergem das normatividades sexuais dominantes, principalmente por aqueles que são impedidos de expressá-las no campo familiar e local de residência (Sposito e Tarábola, 2016). Como efeito, campi com organizações LGBTQIA+ mostraram ter maior corpo discente, ser melhores avaliados, e receber maiores investimentos externos por aluno (Kane, 2013).
Para além da percepção de acolhimento por meio de coletivos LGBTQIA+, a afinidade entre as entidades estudantis e as esferas institucionais faz-se fundamental, pois a interação entre ambas permite discussões (sobre) e reconhecimento da diversidade e demandas particulares a esses grupos (Boyle & McKinzie, 2018; Ikuta et al., 2016). Muitas vezes o que ocorre, porém, é o incentivo limitado, sem que haja sua efetiva inclusão participativa, de forma a corroborar o preconceito velado - quando há reconhecimento do direito à diferença desde que ela não seja expressada aberta ou publicamente (Villanueva & Ponce, 2018).
A existência de políticas, programas e serviços inclusivos pode influenciar a forma como os discentes avaliam a experiência universitária, visto que a partir da validação de si, indivíduos LBGTQIA+ sentem-se mais respaldados a exporem suas autenticidades; caso contrário, podem tanto forjar seus comportamentos naturais, quanto evitar frequentar esses ambientes (Kane, 2013; Tetreault et al., 2013). Por outro lado, a ausência de linguagem inclusiva no regimento das universidades torna seus discentes LGBTQIA+ mais vulneráveis à intolerância e desamparo institucional por dificultar-lhes um meio respaldado para denúncias, podendo, indiretamente, sinalizar para os membros do campus que o comportamento anti-LGBTQIA+ é tolerável ou até aceitável, o que pode causar experiências de sofrimento psíquico (Robinson & Spivey, 2011; Smidt et al., 2019).
Em caráter resolutivo, identificou-se que para evitar e prevenir a ocorrência de assédio moral e a vitimização da violência em ambiente acadêmico, houve adesão a um currículo acadêmico que abrangesse as temáticas LGBTQIA+, bem como propôs-se que houvesse amparo social, psicológico e médico disponíveis, e que se agregassem os termos “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “expressão de gênero” nas políticas de igualdade de oportunidades dos campi (Ikuta et al., 2016; Robinson & Spivey, 2011). As influências do reconhecimento da diversidade de experiências dos discentes LGBTQIA+ contribui, inclusive, para um melhor desenvolvimento pessoal e profissional dentro e fora da Universidade (Tetreault et al., 2013).
As análises apontam, portanto, que estudantes lésbicas, gays, bissexuais, trans, queers, intersex, assexuais, entre outros, procuram ambientes universitários menos hostis ao considerarem tanto a presença de grupos estudantis LGBTQIA+, quanto a forma como políticas anti-descriminatórias estão inclusas no regimento interno das Universidades.
Conclusão
A rede e o apoio social e institucional são recursos essenciais para o enfrentamento dos fatores associados ao sofrimento psíquico de estudantes universitários LGBTQIA+. Quando a composição da rede social de um sujeito contempla diversos contextos, como a educação, saúde, lazer, trabalho, família e amigos, e nos quais o apoio se faz presente, haverá uma tendência à minimização da vulnerabilidade à violência e, consequentemente, um aumento dos fatores de proteção à saúde mental e de qualidade de vida.
Os resultados possibilitam às instituições de ensino superior identificar e atender melhor às necessidades acadêmicas de estudantes universitários LGBTQIA+ à medida que fornecem base empírica para a implementação de programas educacionais, serviços profissionais e políticas inclusivas voltados à orientação sexual, e identidade e expressão de gênero na instituição. Com efeito, essas medidas se tornam critérios para a geração atual de estudantes LGBTQIA+ quando considerarem o clima - ou nível de aceitação - do campus ao escolher uma universidade, em sua adaptação ao ambiente acadêmico, e decisões sobre evadir ou permanecer estudando. É necessário, portanto, que se construa um paradigma de diversidade enquanto norma de forma a evidenciar que, para que a quebra do padrão normativo de sexualidade e gênero ocorra, apenas seu reconhecimento não é suficiente.
Quanto às implicações para a prática clínica, o conhecimento baseado nas evidências científicas apontadas neste estudo demonstrou que urge a necessidade de a comunidade acadêmica assumir um papel ativo na discussão de políticas de promoção da saúde mental e de incentivo da aceitação à diversidade humana. Nesse sentido, é fundamental propor estratégias de enfrentamento ao sofrimento psíquico voltadas aos estudantes universitários LGBTQIA+ por meio de grupos de apoio psicossocial e que permitam a troca de experiências, articuladas por profissionais que atuam no campo da saúde mental e enfermagem psiquiátrica.