Introdução
O final do ano de 2019 foi marcado pelo aparecimento de um novo vírus, denominado de SARS-CoV-2. Esse novo coronavírus, foi descoberto na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China, tendo um mercado de frutos do mar como possível origem da contaminação, através do manuseio de animais vivos levando a crer que o vírus tenha ligação zoonótica, pois alguns estudos especulam que esse tipo de coronavírus tenha sido transmitido de morcegos para pangolins e, desses hospedeiros intermediários, para o homem (morcego-pangolim-homem) (Brito et al., 2020).
Esse vírus transmite a doença chamada de covid-19 que, só no ano de 2020, foi responsável pela contaminação de mais de 79,2 milhões de pessoas mundialmente. Desde o primeiro caso, em 25 de fevereiro de 2020, o Brasil contabilizou 7.675.781 casos e 194.976 mortes neste mesmo ano, configurando-se como o epicentro da pandemia na América Latina (Buonafine et al., 2020; OPAS, 2022).
A explicação para estes eventos inclui a relação muito próxima entre o homem e os animais selvagens, além da ingestão desses animais por humanos. A cultura alimentar de alguns países orientais sustenta que os animais vivos abatidos são mais nutritivos, e a prática desta crença pode contribuir para a transmissão de patógenos, como os vírus (Chaves & Bellei, 2020).
Essa pandemia deve ser entendida como um impacto dos fenômenos que envolve o homem e a natureza, e a oportunidade para avaliar e compreender relevância das interações entre saúde ambiental, animal e humana como elemento-chave para muitas doenças emergentes caracterizando as necessidades para alcançar uma saúde única (Chaves & Bellei, 2020).
Em tempos pandêmicos as pessoas sintomáticas requerem atendimento quase que simultaneamente de modo a superlotar os serviços de saúde, o que provoca dificuldades em cadeia nos sistemas de saúde de todo o mundo. E essa sobrecarga, especialmente no nível terciário de atenção, remete crises na saúde pública tanto nos países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos, quase que ao mesmo tempo e em todos os continentes, situação sem precedentes ao longo das últimas décadas (Brooks et al., 2020; Faro et al., 2020).
Nesse cenário, os riscos aos profissionais de saúde têm sido potencializados por causa das extensas e exaustivas jornadas de trabalho, desvalorização profissional, conflitos interpessoais, desgastes físicos e mentais, espaços de repouso desumanos nos serviços de saúde, insuficiência quantitativa e qualitativa de equipamentos de proteção individual (EPI), tudo isso intensifica o risco de adoecimento desses trabalhadores (Santos et al., 2020).
Importante destacar que, no âmago da saúde ocupacional, os agravos não interferem somente na produtividade, mas também há influência em um contexto maior que contempla a qualidade de vida fora do seu ambiente de trabalho (Serra et al., 2019).
Devido a todo estresse e pressão que os profissionais vêm sofrendo, mais intensamente durante a pandemia, a saúde física e mental desses profissionais, e consequentemente o comprometimento da capacidade para o trabalho, são apontadas em diversos estudos como uma grande preocupação (Prado et al., 2020).
Uma forma de avaliar a capacidade laborativa é através de instrumentos específicos de autoavaliação. Um desses instrumentos é o chamado Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT) que permite visualizar o bem-estar do trabalhador no presente e no futuro, e a capacidade de executar seu trabalho em função das exigências, de seu estado de saúde, e de suas capacidades físicas e mentais (Cordeiro & Araújo, 2017).
Dessa forma, ao avaliar a CT dos profissionais da saúde que assistem à covid-19, é possível detetar precocemente situações comprometedoras na saúde do trabalhador, e pode contribuir para a diminuição dos problemas de saúde física e mental, bem como despertar para que medidas com vistas à prevenção, promoção ou reabilitação, sejam tomadas pelos gestores institucionais, pois esses têm responsabilidade na saúde de seus trabalhadores. Outrossim, também pode colaborar para implementação de políticas públicas que subsidiem melhores condições de trabalho para esses profissionais tendo em vista a sua carreira.
Assim, diante dessa nova experiência que a pandemia vem nos trazendo e considerando a importância de se estudar a saúde do trabalhador no contexto de uma visão integral, ressurte uma inquietação no que tange a capacidade para o trabalho frente as exigências internas e externas desses trabalhadores que atuaram no atendimento a pacientes com COVID-19. Sendo assim, esse artigo proveniente de uma dissertação de mestrado, tem como objetivo avaliar a capacidade para o trabalho dos profissionais da saúde que assistem à COVID-19 em um hospital universitário de Pernambuco.
Metodologia
Esse trabalho consiste numa pesquisa quantitativa, transversal, exploratória e descritiva, cujo desenho de estudo permitiu examinar a relação entre duas ou mais variáveis, quantificando a força da relação entre as variáveis, não estabelecendo relação de causa-efeito. A variável dependente nesse estudo é o índice de capacidade para o trabalho (ICT) e as variáveis independentes são: sexo, idade, estado civil, escolaridade, tempo de serviço, tipo de vínculo, renda familiar, número de vínculos e categoria profissional.
A pesquisa foi efetuada em um hospital universitário de Pernambuco que realiza atendimentos de média e alta complexidade em níveis ambulatorial e hospitalar. A escolha se deu porque desde abril de 2020 o hospital tornou-se referência para atendimento de pacientes com COVID-19 encaminhados pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco via central de regulação de leitos hospitalares, conforme o aumento dos números de casos no estado.
Foram incluídos nessa pesquisa os trabalhadores que desenvolviam suas atividades laborais na assistência a pacientes com COVID-19 no período da coleta de dados da pesquisa.
Como critérios de exclusão foram considerados aqueles profissionais que não atuam na linha de frente a pacientes com COVID-19 ou que no momento da coleta; período compreendido de setembro a dezembro de 2021; estavam afastados por motivos de saúde (licença médica), por licença maternidade, por solicitação (licença não remunerada), ou por fazerem parte do grupo de risco para covid-19, estarem realizando atividades remotas, de acordo com a Portaria HC-UFPE/EBSERH nº. 88 de 19 de março de 2020.
A amostra foi composta por 77 trabalhadores, destes, 15 são assistentes sociais, 09 enfermeiros, 13 técnicos de enfermagem, 09 farmacêuticos, 01 técnico em farmácia, 15 fisioterapeutas, 03 fonoaudiólogos, 06 médicos, 01 nutricionista, e 05 psicólogos.
Os dados foram coletados através do formulário eletrônico do Google Forms enviado para o e-mail institucional dos pesquisados disponibilizados pela Divisão de Gestão de Pessoas da instituição. Junto do formulário de pesquisa foi enviado também o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O questionário foi dividido em duas partes: uma referente aos dados sócio demográficos e ocupacionais, e a outra a aplicação do instrumento Índice de Capacidade para o Trabalho - ICT.
O ICT, proposto pelo Instituto de Saúde Ocupacional da Finlândia tem como objetivo avaliar, no presente ou no futuro próximo, a perceção do trabalhador sobre quão bem está ou estará e quão bem ele é capaz de executar o seu trabalho, considerando as exigências, seu estado de saúde e as capacidades físicas e mentais. Esse instrumento pode identificar de forma precoce situações em que há perda de capacidade para o trabalho e que ocasionam o absenteísmo (Silva et al., 2020).
É um questionário autoaplicável composto de dez itens, sintetizados em sete dimensões: 1. Capacidade para o trabalho atual comparada com a melhor de toda a vida; 2. Capacidade para o trabalho em relação às exigências do trabalho; 3. Número atual de doenças diagnosticadas por médico; 4. Perda estimada para o trabalho devido às doenças; 5. Faltas ao trabalho por doenças no último ano; 6. Prognóstico próprio sobre a capacidade para o trabalho daqui a dois anos; 7. Recursos mentais.
Os pontos alcançados em cada questão são somados, resultando em um escore final, que pode variar de 7 (pior índice) a 49 pontos (melhor índice). Para identificar a prevalência da capacidade para o trabalho, os escores foram dicotomizados em CT inadequada (≤36 pontos) e CT adequada (≥37 pontos).
Para análise, os dados foram categorizados em um banco de dados na planilha excel 2019 os quais foram exportados e analisados através do programa Epi info versão 7.0 do Centers for Disease Control & Prevention de Atlanta (CDC).
Para atender o objetivo proposto nesse artigo foram feitas análises descritivas do índice de capacidade para o trabalho, variáveis contínuas, calculando a média, mediana, moda e desvio padrão (DP); e para analisar os aspetos sociodemográficos e ocupacionais utilizou-se a frequência absoluta e relativa nas variáveis categóricas. Em seguida foi feita uma análise individual das variáveis envolvidas, bem como a relação entre a variável dependente e cada uma das variáveis independentes.
A investigação atendeu aos requisitos preestabelecidos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº. 466/12 referente ao desenvolvimento de pesquisa científica envolvendo seres humanos, resguardando os princípios éticos da justiça, beneficência e da não maleficência. Esta pesquisa foi encaminhada à plataforma Brasil, sendo aprovada sob o parecer de número 4.958.358.
Resultados
O perfil da amostra foi composto por 81,8% participantes do gênero feminino; 48% na faixa etária dos 35 a 45 anos de idade; 53,2% vivem com companheiro (a); 67,5% são celetista; 49,4% possuem renda familiar maior que 5 e até 10 salários mínimos; 40,3% possuem pós-graduação do tipo especialização; 58,4% tem dois ou mais vínculos empregatícios; e 33,8% possuem experiência de 11 a 15 anos em serviços de saúde.
Ao comparar a variável gênero e índice de capacidade para o trabalho, o sexo masculino esteve com CT adequada enquanto que no sexo feminino a CT foi considerada inadequada. Quando comparado faixa etária e ICT, os profissionais dos 35 a 45 anos de idade, apresentaram capacidade para o trabalho adequada, enquanto que os menores de 35 anos e os maiores que 45, apresentaram CT inadequada.
Ao relacionar o tipo de vínculo empregatício com o ICT, os trabalhadores celetistas/EBSERH apresentaram CT adequada, os demais estiveram com a capacidade inadequada para o trabalho.
Para realizar a análise entre ICT e renda familiar foram criados cinco grupos de profissionais: (1) profissionais que possuem renda familiar superior a 20 salários mínimo (SM) apresentaram CT inadequada; (2) profissionais com renda familiar maior que 10 e até 20 SM, apresentaram CT adequada; (3) profissionais com renda familiar superior a 05 SM e até 10 SM, apresentaram inadequada CT; (4) profissionais com renda familiar superior a 2 e até 05 SM apresentaram CT inadequada; (5) profissionais com renda familiar de até 2 SM, apresentaram inadequada CT.
Aqueles com apenas um vínculo apresentaram capacidade para o trabalho adequada, e os com dois ou mais vínculos empregatícios apresentaram CT inadequada. Quando analisado o ICT e a escolaridade, os profissionais com doutorado e mestrado apresentaram adequada CT; já aqueles que possuíam apenas especialização, ensino superior ou técnico apresentaram inadequada CT. Os dois últimos apresentaram as menores médias do ICT (35,92 e 35,57).
Os trabalhadores da linha de frente da COVID-19 que tinham de 11 a 15 anos de experiência na área da saúde apresentaram CT inadequada. Os fisioterapeutas e os técnicos em enfermagem apresentaram médias de CT inadequada, já as outras categorias estiveram com CT adequada. O melhor ICT foi da categoria fisioterapeuta (48) e o pior psicólogo (28).
Na tabela a seguir serão apresentados os resultados da CT autorreferida pelos profissionais pesquisados e o resultado com a aplicação do instrumento ICT. As questões foram agrupadas de acordo com suas respostas e comparadas com o resultado do ICT, permitindo classificar a capacidade para o trabalho em adequada ou inadequada.
Questões do ICT | Capacidade para o Trabalho - CT | CT autorreferida | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Inadequada | Adequada | |||||
N | % | N | % | N | % | |
Pontos para CT atual | 34 | 44,2 | 43 | 55,8 | 77 | 100 |
2-7 | 20 | 26,0 | 10 | 13,0 | 30 | 39,0 |
8-10 | 14 | 18,2 | 33 | 42,8 | 47 | 61,0 |
CT em relação as exigências físicas | 34 | 44,2 | 43 | 55,8 | 77 | 100 |
Muito baixa/ baixa | 06 | 7,8 | 01 | 1,3 | 07 | 9,1 |
Moderada | 16 | 20,8 | 06 | 7,8 | 22 | 28,6 |
Boa/muito boa | 12 | 15,6 | 36 | 46,7 | 48 | 62,3 |
CT em relações as exigências mentais | 22 | 28,6 | 55 | 71,4 | 77 | 100 |
Muito baixa/baixa | 04 | 5,2 | 07 | 9,1 | 11 | 14,3 |
Moderada | 11 | 14,3 | 21 | 27,3 | 32 | 41,6 |
Boa/muito boa | 07 | 9,1 | 27 | 35,0 | 34 | 44,1 |
Lesão por acidente ou alguma doença atualmente | 34 | 44,2 | 43 | 55,8 | 77 | 100 |
Sim | 09 | 11,7 | 10 | 13 | 19 | 24,7 |
Não | 25 | 32,5 | 33 | 42,8 | 58 | 75,3 |
Lesão/doença é impedimento para o trabalho atual | 12 | 15,6 | 28 | 37,7 | 41 | 53,3 |
Algumas vezes preciso diminuir o ritmo do trabalho | 06 | 7,8 | 06 | 7,8 | 12 | 15,6 |
Eu sou capaz de fazer o meu trabalho | 03 | 3,9 | 06 | 7,8 | 09 | 11,7 |
Não há impedimento/não há doença | 03 | 3,9 | 17 | 22,1 | 20 | 26 |
Absenteísmo no último ano | 35 | 45,4 | 42 | 54,6 | 77 | 100 |
Nenhum | 17 | 22,0 | 22 | 28,6 | 39 | 50,6 |
Até 09 dias | 07 | 9,1 | 13 | 16,9 | 20 | 26,0 |
De 10 a 24 dias | 09 | 11,7 | 06 | 7,8 | 15 | 19,5 |
Acima de 24 dias | 02 | 2,6 | 01 | 1,3 | 03 | 3,9 |
CT de realizar o trabalho atual daqui a dois anos | 34 | 44,2 | 43 | 55,8 | 77 | 100 |
É improvável | 03 | 3,9 | 00 | 00 | 03 | 3,9 |
Não estou muito certo | 02 | 2,6 | 04 | 5,2 | 06 | 7,8 |
Bastante provável | 29 | 37,7 | 39 | 50,6 | 68 | 88,3 |
Apreciação das atividades diárias | 34 | 44,2 | 43 | 55,8 | 77 | 100 |
Nunca/ raramente | 06 | 7,8 | 01 | 1,3 | 07 | 9,1 |
Às vezes | 02 | 2,6 | 09 | 11,7 | 11 | 14,3 |
Quase sempre/sempre | 26 | 33,8 | 33 | 42,8 | 59 | 76,6 |
Sentir-se ativo e alerta | 34 | 44,2 | 43 | 55,8 | 77 | 100 |
Nunca/raramente | 04 | 5,2 | 03 | 3,9 | 07 | 9,1 |
Às vezes | 08 | 10,4 | 07 | 9,1 | 15 | 19,5 |
Quase sempre/sempre | 22 | 28,6 | 33 | 42,8 | 55 | 71,4 |
Cheio de esperança para o futuro | 34 | 44,2 | 43 | 42,8 | 77 | 100 |
Nunca/raramente | 03 | 3,9 | 07 | 9,1 | 10 | 13,0 |
Às vezes | 11 | 14,3 | 10 | 13,0 | 21 | 27,3 |
Quase sempre/sempre | 20 | 26,0 | 26 | 20,7 | 46 | 46,7 |
Os participantes realizaram uma autoavaliação com relação a sua capacidade para o trabalho atual pontuando de 0 (zero) a 10 (dez). Quando calculada a CT através do instrumento ICT, foi evidenciado que 44, 2% estão com capacidade inadequada para o trabalho.
Quanto as exigências físicas, o ICT mostrou que 44,2% estão com CT fisicamente
inadequada e 28,6% estão com a CT mental inadequada.
Quando questionados sobre afastamentos do trabalho no último ano por problemas de saúde, consulta médica ou para fazer exame, o ICT mostrou que 45,6% apresentaram CT inadequada. Com relação ao autoprognóstico da capacidade para o trabalho futuro, o resultado do ICT mostrou que 44,2% dos profissionais da saúde estão com a CT comprometida.
Nas questões 8, 9 e 10 referentes aos recursos mentais, onde foi perguntado sobre a apreciação das atividades diárias; a perceção quanto a sentir-se ativo e alerta; e o sentimento de esperança para o futuro; respetivamente, observou-se que 44,2% apresentaram CT inadequada.
Discussão
A prevalência da capacidade para o trabalho inadequada nos profissionais que assistem à covid-19 foi de 44,2% nos pesquisados. Essa frequência é considerada alta por se tratar de um evento evitável no campo da saúde do trabalhador (Cordeiro & Araujo, 2018).
A média do ICT foi de 36,81 pontos (DP 4,38), com pontuação mínima de 28 e máxima de 48; mediana e moda de 37 pontos. Converge com a pesquisa realizada por Silva Jr que apresentou o escore médio de 38,5 pontos (DP = 6,1 pontos) (Silva et al., 2011).
Quando analisado o ICT por gênero verificou-se que o sexo masculino apresentou adequada capacidade para o trabalho, já no sexo feminino o ICT foi inadequado, necessitando maior atenção nesse grupo. O gênero feminino esteve associado aos piores escores do ICT em comparação ao masculino em outros estudos. Um dos fatores relacionados pode ser a presença do trabalho doméstico, representando aumento na jornada total de trabalho e também o trabalho sob influência das piores condições laborais e salariais em comparação aos homens (Cordeiro & Araujo, 2017; Hilleshein et al., 2011; Martinez et al., 2010).
A faixa etária dos 35 aos 45 anos de idade nos indicou que a CT estava adequada e nas outras faixas etárias encontravam-se inadequada. Outros autores ressaltam que a idade reflete na CT do indivíduo, principalmente a partir dos 45 anos de idade, pois os fatores que contribuem na diminuição da CT (hábitos de saúde, estressores ambientais, aparecimento de doenças) começam a se acumular nesse período (Cordeiro & Araujo, 2018; Silva et al, 2011). Menores escores de ICT também pode estar presente em pessoas jovens, pois o excesso de comprometimento pode subestimar demandas e superestimar as capacidades de enfrentamento, podendo potencializar o desgaste no trabalhador (Hilleshein et al., 2011). Portanto, a idade é um fator importante no comprometimento da saúde, todavia, é preciso considerar que pessoas jovens também adoecem (Cordeiro & Araujo, 2017).
No estudo realizado na Bahia o tipo de vínculo empregatício efetivo esteve associado à CT inadequada (Cordeiro & Araujo, 2018). Corroborando com nossa pesquisa onde os RJU também apresentaram CT inadequada. A precarização no setor saúde não se refere apenas ao tipo de vínculo empregatício, mas também ao reconhecimento dos direitos sociais consagrados na Constituição Federal (Cordeiro & Araujo, 2018).
Outra variável que pode estar ligada a capacidade para o trabalho é a renda familiar, pois nos grupos 1, 2 e 3, que possuíam maior renda familiar foi possível observar que seus participantes apresentaram de moderada a boa capacidade para o trabalho (36,75 - 38,16). Enquanto que os grupos com renda familiar menor (4 e 5) apresentaram capacidade para o trabalho inadequada (35,40 - 35,50), com médias mais baixa quando comparada aos grupos com maiores salários. É importante destacar que condições socioeconômicas são tidas como importantes na determinação da saúde e da capacidade para o trabalho, contudo os padrões de associação podem ser influenciados por fatores relacionados ao trabalho, às condições de vida e aos hábitos de saúde (Martinez et al., 2010). Ademais, baixos salários induzem ao multiemprego, especialmente os profissionais de nível técnico, com jornadas de trabalho maiores, na tentativa de aumentar a renda familiar e consequentemente predispõe o comprometimento da CT.
A variável que apresentou discrepância significativa foi a escolaridade. Trabalhadores com doutorado apresentaram ótimo ICT (45) e o trabalhador que possui somente o curso técnico apresentou escore mais baixo (35,57). Um outro estudo avaliou o ICT por nível de escolaridade sendo observado que a capacidade para o trabalho inadequada foi maior entre os trabalhadores de nível técnico quando comparados aos de nível superior (Monteiro et al., 2005). Isso pode ter relação com o tipo de atividade executada, já que a natureza do trabalho de nível técnico exige mais esforço físico, e no atendimento a pacientes da COVID-19 os técnicos de enfermagem estiveram mais próximos dos pacientes.
A correlação apontou disparidade significativa também entre o ICT de técnicos em enfermagem (34,84) e técnicos em farmácia (39). Talvez essa diferença se der pelo fato dos técnicos em enfermagem lhe darem com cuidados diretamente ao paciente com covid-19. A média do ICT variou entre as categorias profissionais, sendo considerada inadequado para os fisioterapeutas e técnicos de enfermagem indicando necessidade de atenção. Ambas as categorias desenvolvem suas atividades junto ao paciente aumentando tanto o risco de infecção pela COVID-19 quanto o medo de contrair a doença.
Quando analisamos a primeira questão do ICT com a finalidade de visualizar a autoperceção do trabalhador com relação a sua capacidade atual para o trabalho comparada com a melhor de toda sua vida, a pontuação autorreferida foi de 8 a 10 em 61% dos respondentes, ou seja, os profissionais acreditavam estar com a CT boa/muito boa, porém quando analisado o ICT essa frequência cai para 44,2%. No estudo de Cordeiro e Araújo (2017) a pontuação autorreferida pelos pesquisados acerca de sua capacidade para o trabalho obteve frequência entre 8 e 10 pontos (89,5%). A pesquisa de Silva et al, que avaliou 110 profissionais de saúde, a maioria dos profissionais responderam boa a ótima CT, porém o resultado do ICT verificou que 38,18% estavam com CT inadequada (Silva et al., 2018). Salientamos que as pesquisas aqui citadas não foram realizadas em tempos de pandemia.
Ao considerar as exigências físicas e mentais do trabalho, a maioria dos trabalhadores considerou sua capacidade para o trabalho como boa/muito boa, 62,3% em relação às exigências físicas, e 44,1% em relação às exigências mentais. Mas quando calculado o ICT a variação cai para 46,7% para capacidade física e 35% para capacidade para o trabalho mental. Corroborando com a pesquisa de Cordeiro e Araújo a capacidade para o trabalho em relação as exigências físicas como boa/muito boa estiveram presentes nas respostas de 65,9% dos participantes (Cordeiro & Araujo, 2017). Nossa pesquisa diverge na CT referente as exigências mentais que foi de 83,1% na pesquisa das autoras referidas. Uma pesquisa realizada na atenção primária de saúde no município do Recife-PE mostrou que a pandemia da covid-19 afetou de forma negativa a saúde mental dos trabalhadores, repercutindo também em sintomas relativos a transtornos mentais comuns (Santos et al., 2022). Uma outra pesquisa realizada em um hospital universitário cujo objetivo era apresentar algumas singularidades, travessias e potencialidades advindas da construção e do desenvolvimento do Programa de Terapia Ocupacional, Saúde e Trabalho (ProTost) durante o início da pandemia da covid-19 evidenciou que a falta de reconhecimento do trabalho realizado e a falta de comunicação entre chefias e trabalhadores pode interferir no processo de trabalho (Lancman et al., 2021).
Um percentual expressivo dos trabalhadores referiu que é bastante provável realizarem o trabalho atual daqui a dois anos (88,3%). Assim como na pesquisa Cordeiro e Araújo que foi de 83,8% (Cordeiro & Araujo, 2017). Porém o escores do ICT nos mostrou que apenas 50,6% estão com a CT adequada para realizarem o mesmo trabalho daqui a dois anos.
Esse instrumento, ICT, pode ser usado para avaliar a reabilitação profissional, utilizando-o antes e depois do afastamento laboral. Seus escores podem subsidiar as tomadas de decisões da organização laboral. Escores baixos indicam a necessidade de mudanças organizativas no ambiente laboral, gestão dos riscos, estilos e hábitos de vida com a implementação de programas que promovam melhorias na capacidade para o trabalho e prevenção de agravos, e intervenções nos casos de declínio da capacidade para o trabalho comprovada. Isso favorece a redução de absenteísmo, aposentadorias precoces e envelhecimento precoce em decorrência do trabalho (Cordeiro & Araujo, 2017; Godinho et al., 2017).
Ressaltamos que mesmo quando a CT dos sujeitos está classificada como boa ou muito boa não exclui a necessidade da promoção, manutenção e melhoria dessa capacidade, pois os dados apontam que a capacidade para o trabalho piora com o passar do tempo de trabalho e o avanço da idade (Hilleshein et al., 2011).
Este estudo, apesar de descritivo, apresenta algumas limitações referentes ao viés do trabalhador sadio, pois os trabalhadores afastados, de férias, de licença ou de atestados médicos e aposentados não foram inseridos na amostra. Portanto, entende-se que somente os trabalhadores que estavam em condições saudáveis e aptos ao trabalho fizeram parte da pesquisa, tendendo a subestimar os resultados da pesquisa.
Também se tem que é possível que alguns participantes tenham se negado a responder o instrumento de forma fidedigna. E ainda, a coleta de dados via internet, ao mesmo tempo em que favoreceu a participação de trabalhadores mantendo o distanciamento social por conta da pandemia, obstaculizou o engajamento na pesquisa.
Diante dos resultados, é possível desenvolver estratégias visando estabelecer ambientes laborais saudáveis, além da promoção da CT através de ações coletivas como objeto da vigilância à saúde, ao considerar que os trabalhadores da saúde são atores importantes no desenvolvimento da saúde única e na melhoria das condições de saúde da população e que é um risco atuar com a CT comprometida, pois isso pode gerar prejuízos tanto para o trabalhador quanto para os pacientes (Cordeiro & Araujo, 2018; Godinho et al., 2017; Hilleshein et al., 2011).
Conclusões
Ante os resultados expostos, entende-se que esta pesquisa conseguiu atender o objetivo proposto de avaliar a capacidade para o trabalho dos profissionais da saúde que assitem à COVID-19 em um hospital universitário de Pernambuco. De forma geral, as médias do ICT foram bastante próximas e a capacidade para o trabalho desses profissionais precisa ser melhorada.
Os autores desse estudo desconhecem, apesar da utilidade, do baixo custo e da facilidade operacional, empresas ou serviços de atenção a saúde do trabalhador no Brasil que utilizem o instrumento ICT levando a considerar a possibilidade de restrições organizacionais e de falta de conhecimento dos profissionais quanto à existência e finalidade do instrumento.
Portanto, há necessidade de disseminação do conhecimento desse instrumento junto aos trabalhadores, gestores, profissionais da saúde e segurança ocupacional, de instituições públicas e privadas, de forma que a temática seja incorporada à realidade concreta do mundo do trabalho.
É importante frisar que os resultados aqui apresentados são mutáveis e por isso a necessidade de aplicação periódica do ICT no sentido de conhecer e monitorar a capacidade para o trabalho dos profissionais de saúde, o que já fica como sugestão de trabalho futuro a comparação do resultado da presente pesquisa em tempos de pandemia com o resultado de pesquisa pós-pandemia.