Introdução
As teorias sobre as Relações Internacionais, como um campo de estudos autônomo, são diversas. Na gênese da disciplina, com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as principais contribuições foram as idealistas e no período pós-Segunda Guerra Mundial, os princípios realistas ganharam força. No entanto, com o ingresso de novos temas na agenda internacional e o inesperado desfecho da Guerra Fria, em 1991, fez-se necessário discutir diferentes maneiras de conceber a esfera externa. Somados ao desenvolvimento das Ciências Humanas, com as viradas linguística e sociológica, esses fatores resultaram na elaboração das chamadas teorias pós-positivistas, que questionavam as abordagens anteriores e o futuro das RI (Barros, 2006).
Há uma grande variedade de contribuições teóricas nesse sentido: a Teoria Crítica, o Construtivismo, os Feminismos, o Pós-Colonialismo e outras. No presente trabalho, tratar-se-á sobre as ideias pós-estruturalistas ou pós-modernistas, que discutem sobre os elementos sociais no período posterior à modernidade e propõem novas interpretações a eles, numa profunda crítica à naturalização de pressupostos. Para auxiliar na compreensão, será feito uso do filme “A Chegada”, dirigido por Denis Villeneuve, e suas aproximações com o embasamento teórico escolhido. Nessa perspectiva, enfatiza-se a ideia do audiovisual como um recurso pedagógico relevante, principalmente como um complemento ao que se ensina sobre teoria nesse campo de estudos. Além disso, o cinema apresenta especificidades relevantes para a política internacional, como será abordado na seção seguinte.
Audiovisual e Relações Internacionais
Carter e Dodds (2014) argumentam que para aqueles que se debruçam sobre os estudos na esfera das Relações Internacionais, mídias populares, como filmes, televisão e plataformas midiáticas, como as redes sociais, são instrumentos que auxiliam na constituição das políticas internacionais. Essa influência acabou intensificada pelo incentivo à produção cinematográfica, pela difusão dos meios de comunicação e, sobretudo, pela globalização. Nesse sentido, é evidente que a sétima arte possui implicações diretas no trabalho dos estudiosos. A multiplicidade das Relações Internacionais, como já mencionado na variedade de teorias, se expressa novamente: o audiovisual é, também, um dos diversos recursos mobilizados para reflexão, que no presente caso tem caráter teórico.
Nesse sentido, é fundamental destacar as particularidades do cinema em relação às outras mídias e demonstrar o porquê é revolucionário. Posto isto, a imagem no mundo cinematográfico apresenta uma função específica e um carácter eminentemente histórico, isto é, a imagem apresenta-se como algo fluido (uma “imagem-movimento”) e carregado de tensão dinâmica, sendo utilizada para contar uma história messiânica. Logo, segundo Agamben (2014) “cada momento, cada imagem está carregada de história”. Em adição, o cinema detém um carácter ainda mais próprio, a montagem, que se baseia em duas condições: a repetição e a paragem. A repetição recupera a possibilidade do que já foi, o fazendo ser possível novamente, enquanto a paragem é descrita como “uma potência de paragem que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo para a expor enquanto tal”. Dessa forma, juntando as duas, constitui-se a iniciativa messiânica do cinema, a qual está ligada essencialmente com a criação. E, como aponta o autor Giorgio Agamben (2014), “todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento define-se antes de tudo pela sua capacidade de des-criar o real”.
Portanto, é possível compreender que o trabalho com imagens possui uma importância histórica e messiânica, tendo em vista sua habilidade de projetar a potência e a possibilidade em direção ao que é por definição impossível, em direção ao passado. Logo, o cinema é entendido como revolucionário justamente pela potencialidade que apresenta e pela distinção em relação às outras mídias, como afirma Agamben (2014):
O cinema faz então o contrário do que fazem as mídias. As mídias dão-nos sempre o fato, o que foi, sem a sua possibilidade, sem a sua potência, dão-nos portanto um fato sobre o qual somos impotentes. As mídias adoram o cidadão indignado mas impotente. É o mesmo objetivo do telejornal. É a má memória, a que produz o homem do ressentimento.
Para Duarte (2002), a pertinência da utilização da sétima arte como elemento auxiliar a outras áreas de estudo se dá, em grande parte, pela sua função na socialização, tendo em vista seu papel na formação cultural como prática social. Nesse segmento, o cinema se caracteriza como uma forma de conhecimento, sendo de importante análise, já que seus elementos constitutivos produzem sentido. Ainda, cabe enfatizar o caráter do espectador como um sujeito social que, constantemente, interage com a significação articulada na produção fílmica. Portanto, o cinema é capaz de estabelecer alteridade - para Bakhtin, conceito fundamental na constituição de identidade, ou seja, para quem é na relação com o outro que os indivíduos (a linguagem, a consciência, pensamentos, visões de mundo) se constituem (Faraco, 2009).
Destaca-se, em adição, o fundamento antropológico da perspectiva educativa do cinema abordado por Almeida (2017), que trata sobre a importância da narrativa fílmica ficcional como ferramenta capaz de propiciar a experiência sensorial, intelectual e psicológica. Apesar das claras limitações do cinema, como a reprodução de estereótipos e o apelo comercial das produções, ele também atua como um difusor das culturas periféricas ao sistema e também como um representante de grupos minoritários da sociedade. O contato com os costumes de sociedades mais distantes das grandes potências ocidentais é, inegavelmente, de grande relevância para a formação sociocultural dos espectadores. Assim, deve-se perceber o impacto cinematográfico no âmbito social e também na constituição de um repertório cultural mais amplo para aqueles que assistem.
Ademais, é importante ressaltar que o uso das narrativas fílmicas por governos têm, na maioria das vezes, objetivos políticos. A construção discursiva do comunismo como antagônico, colocando-o como uma ameaça, foi ancorada na produção audiovisual, permitindo que os Estados Unidos reforçassem o apoio da opinião pública dos países aliados e, desse modo, lidimar o combate na Guerra Fria. Atualmente, há um controle do grande público, condicionando-o ao consumo de filmes específicos, os denominados blockbusters. Ainda assim, mesmo nesses filmes, é possível notar tendências políticas e a apresentação de discursos proeminentes na esfera social. Diante disso, o cinema hollywoodiano produziu filmes como Amanhecer Violento (1984) e Rambo (1984), que transcodificam os discursos conservadores de Ronald Reagan; ou, então, a saga Star Wars, os quais já são filmes mais complexos e abertos a múltiplas interpretações (Zanella & Neves Jr, 2016; Kellner, 2010).
À vista disso, o presente artigo faz uso de uma produção audiovisual a fim de elucidar brevemente a perspectiva pós estruturalista, como um recurso didático para a compreensão de aspectos teóricos, de maneira a facilitar que o estudante de Relações Internacionais apreenda como tal teoria pretende observar seu objeto de estudo. Almeja-se, portanto, que com a exposição da teoria, da narrativa fílmica e, por fim, com uma síntese dos dois itens, o leitor seja capaz de assimilar com mais facilidade a interpretação pós-estruturalista da realidade internacional.
O Pós-estruturalismo e David Campbell
O Pós-Estruturalismo em Relações Internacionais é uma crítica pós-fundacionalista do estruturalismo. O estruturalismo, incorporado às ciências humanas e sociais a partir da experiência linguística, busca identificar o imutável, o aspecto invariante, isto é, o fundamento das estruturas sociais (Mendonça, 2020). Nesse contexto, o pós-estruturalismo contrapõe a perspectiva estruturalista, a qual propõe a existência de fundamentos essenciais e naturais que regem as estruturas do mundo social, pois acredita na dinamicidade das estruturas, questionando a essencialidade e naturalidade dos fundamentos (Casali & Gonçalves, 2018). Assim, é concebido como uma crítica pós-fundacionalista: excede a identificação das estruturas, isto é, fundamentos, buscando também seus objetivos, por meio do questionamento de sua existência. Contudo, apesar de visar a ruptura, o pós-estruturalismo e o estruturalismo ainda compartilham certas características, como:
a) a importância da linguística; b) a ênfase na natureza relacional das totalidades; c) o caráter arbitrário do signo; d) a primazia do significante sobre o significado; e) a descentralização do sujeito; f) a preocupação especial com a natureza da escrita - ou seja, com o material textual; g) o interesse no aspecto temporal como algo constitutivo e integrante da natureza dos objetos e eventos; e h) o questionamento da noção de sujeito do pensamento humanista renascentista que aponta o sujeito como um ser autônomo, livre e autoconsciente, fonte de todo conhecimento e da ação moral e política (Giddens, 1999 apud Casali & Gonçalves, 2018, p.86).
No que tange o aspecto linguístico, é importante tratar sobre Saussure, um autor da tradição estruturalista e precursor essencial ao desenvolvimento do pós-estruturalismo. Ele entende a língua e fala como objetos distintos, conceituando a primeira como o “aspecto estrutural da linguagem” e a segunda como o “modo particular e singular como a fala se articula em relação à língua”, levando a consequente definição de discurso como sendo “as formas de apropriação pelo indivíduo falante do universo da língua”. A partir da sistematização saussuriana, foram desenvolvidas novas interpretações linguísticas, como a de Derrida, propondo que a escrita e o pensamento são fatores complementares, pois a primeira é uma forma de externalizar a segunda, além da escrita proporcionar a edificação de outros sentidos - tendo em vista a capacidade dos significantes de se inserir em outras propostas discursivas (Casali & Gonçalves, 2018).
Logo, observa-se que uma palavra sozinha não apresenta sentido, ela precisa de um sujeito que a signifique. Porém, sujeitos diferentes apresentam contextos históricos e culturais distintos, o que se traduziria em significados divergentes para uma mesma palavra. Isto é, o discurso é uma construção social pois é fruto de laços sociais estruturados pela linguagem, os quais, por sua vez, são produtos do meio, época e cultura em que seus atores estão inseridos (Casali & Gonçalves, 2018).
Outrossim, é relevante discorrer sobre David Campbell e sua contribuição para o Pós-Estruturalismo. Sendo assim, o autor difere os termos política externa e Política Externa. A primeira (com as iniciais minúsculas) relaciona-se com práticas para distinguir o “eu” do “outro”, já a segunda (com as iniciais maiúsculas) é diretamente ligada ao aparato estatal, podendo também realizar a primeira. Isto posto, Campbell afirma que a política externa e o Estado são forças complementares, pois é a partir da política externa que se tem a consolidação do que é o Estado (“eu”) e do que é o estrangeiro/migrante (“outro”), o que gera a produção de pontes e, principalmente, fronteiras entre os Estados (Nogueira & Messari, 2005).
Nesse sentido, para reforçar a soberania do Estado - especialmente em tempos de fragilidade da identidade nacional - o outro é construído como inimigo, uma vez que é possível compreender e fortalecer as características do “eu” na negação dos elementos constitutivos do outro. À vista disso, infere-se que a produção de diferenças é essencial para a consolidação da identidade do Estado, a qual é assegurada pelos “discursos de perigo” e pela “evangelização do medo”, ou seja, “os discursos de “perigo” são centrais para os discursos do “estado” e os discursos do “homem” (Campbell, 1992, p.54; Nogueira & Messari, 2005).
Ainda a respeito das contribuições feitas por Campbell, há a concepção do declínio da Ordem da Cristandade e a formação dos Estados Nacionais, ou seja, como a organização social disposta por intermédio da religião, promovida pela Ordem da Cristandade, estruturava as relações sociais de poder e a vida das pessoas a partir do fundamento divino. Dessa forma, era produzido, nos indivíduos, propósito: “estou aqui e vivenciando essa situação pois é a vontade de Deus’’. Assim, havia legitimação por meio da resposta fornecida pela fé cristã.
Apesar disso, no século XVI, iniciou-se a Reforma Protestante, gerando novas indagações na população e reacendendo antigos questionamentos (já respondidos a partir da ótica cristã). Assim, as estruturas consolidadas começaram a ser contestadas. Destarte, Campbell afirma que a sustentação das ordens políticas depende do quanto estão incutidas na população e dão respostas para suas vidas. Logo, com a fragilização da Ordem da Cristandade, apresenta-se um cenário de colapso da autoridade vigente, que permite a instauração de um novo modelo de organização social. Então, tem-se a ascensão dos Estados Nacionais.
Em suma, as críticas presentes nas teorias pós-estruturalistas expõem uma nova forma de análise dos diversos cenários existentes e possíveis nas Relações Internacionais e, entre seus autores, David Campbell se destaca. Ainda nesse sentido, as ideias apresentadas serão utilizadas mais a frente neste artigo como uma lente de análise ao recurso audiovisual escolhido: o longa metragem “A Chegada”.
O filme
O filme de ficção científica “A Chegada” ou “O primeiro encontro” é uma produção de 2016, de direção de Denis Villeneuve, com atuação de grandes nomes como Amy Adams, Jeremy Renner e Forest Whitaker. Ele não possui uma narrativa linear, em função da perspectiva central da obra: a língua utilizada pelos extraterrestres, denominados heptapods. O longa-metragem conta a chegada de 12 OVNIs que aparecem no planeta Terra e se instalam ao redor do globo. Com isso, diversos especialistas são convocados pelas forças militares para estudá-los e, entre eles, está a doutora em linguística Louise Banks, que é chamada para interagir com as criaturas, traduzir os sinais e desvendar se os extraterrestres representam uma ameaça ou não. O grupo é pressionado a descobrir o propósito dos aliens o mais rápido possível, assim como outras onze equipes de países onde as demais naves pousam. Porém, os interesses políticos, a corrida pela supremacia, o medo do desconhecido e as diferenças culturais entram no caminho da ciência e Louise se mostra como ferramenta central na compreensão dessas nuances.
Observa-se durante o filme que a linguista, ao tentar estabelecer comunicação com os visitantes, demonstra seus recursos linguísticos - primeiramente na escrita da língua inglesa e depois por meio de expressões corporais atreladas à língua escrita. No momento em que os alienígenas compreendem essa tentativa, eles iniciam então o contato por meio da sua língua, que não é organizada por meio de palavras, mas de símbolos estranhos ao ser humano. Acreditando que todo o processo de análise da língua em questão é embasado na gramática estrutural, Louise Banks analisa os símbolos linguísticos dos extraterrestres a partir da divisão das estruturas apresentadas. Ela compreende que a língua se explica por si só e seu objetivo ao dividi-la é tentar reconhecer as normas dessa língua apenas pelos símbolos apresentados pelos visitantes, visto que não há parâmetros para uma possível comparação com recursos terrestres.
Ao longo da trama, a linguista, imbuída desse conceito da gramática estrutural, consegue entender o mecanismo de funcionamento dessa nova língua, as normas presentes, o que é ou não permitido dentro dela de uma maneira tão completa que ela se torna capaz de reproduzir a língua e estabelecer uma comunicação clara com esses seres. A perspectiva estrutural presente no filme, de Sapir-Whorf, defende que língua e cultura estão intimamente ligadas a ponto de existir uma relação sistemática entre ambas que permite compreender a cultura de uma deter minada sociedade a partir da estrutura de sua língua.
Aprender e entender essa nova língua pode, então, permitir uma nova compreensão de mundo. Essa mudança pode ser percebida por quem aprende dessa maneira distinta de comunicação. No filme, tal mudança de concepção fica evidente quando a linguista consegue entender perfeitamente a língua e, com isso, aos poucos percebe mudanças em sua realidade: começa a ver e sentir certas coisas que só foram possíveis depois do estabelecimento desse contato, além de outras possibilidades no contexto das Relações Internacionais.
O Pós-estruturalismo em “A Chegada”
Após a breve exposição dos princípios teóricos a serem utilizados na presente discussão e, além disso, o resumo da obra cinematográfica escolhida, analisar-se-á a articulação da mídia com a teoria. Para isso, serão apresentados, respectivamente, três tópicos: a concepção dos extraterrestres como inimigos perigosos, a questão linguística que permeia a situação e, por fim, as potencialidades de organização social no período posterior ao contato.
O antagonismo extraterrestre
No início do longa, com a chegada dos heptapods, os OVNIs são construídos como inimigos, oferecendo aos humanos a ameaça potencial do que é desconhecido. Tal situação fragiliza a soberania estatal ao redor do mundo e cria uma união entre os Estados, a partir da Política Externa, para descobrir as motivações dos alienígenas no planeta Terra, até então entendidos como inimigos da espécie humana. Essa estruturação do inimigo é abordada no arcabouço teórico de David Campbell, que denota a dicotomia do “Eu/Outro” ao desenvolver a política externa e a Política Externa: os Estados constroem a identidade do “outro” como a de um inimigo, uma vez que as características que constituem o “eu” são mais facilmente percebidas e assimiladas pela população ao rejeitar os aspectos específicos do inimigo apresentado. É importante salientar que a construção identitária do Estado “eu” a partir do “outro” inimigo só é realmente afirmada com a consolidação dos discursos dicotômicos de perigo, dita na teoria como a “evangelização do medo”, apregoando o “outro” como a ameaça a ser combatida imediatamente.
Ao passo que os humanos começam a interpretar a linguagem heptapod, o entendimento da raça alien como inimiga adquire maior complexidade, visto que a natureza das línguas é relativa às totalidades. Nesse segmento, a interpretação dos humanos começa a se tornar diversa entre as 12 estações, levando as nações a tomarem diferentes medidas defensivas em seus respectivos territórios, como uma resposta em vias de Política Externa. Em determinado momento da trama, a protagonista Louise traduz uma das escritas dos heptapods como “arma” e isso gera desacordo entre as nações, o que evidencia ainda mais a frágil situação da soberania dos Estados envolvidos. A linguista realiza uma tentativa de explanar para os líderes as nuances linguísticas da palavra que poderia, em dado contexto, significar “ferramenta”. No entanto, algumas nações, encabeçadas pela China, decidiram negar qualquer medida pacífica em relação aos OVNIs, uma vez que a “arma” pode indicar perigo nacional, explicitando a concepção de uma ameaça iminente dos alienígenas em seus países. Entretanto, nesse contexto, são ignorados aspec tos polissêmicos da linguagem, além da interação e socialização necessária para a semântica dos termos. Em um mesmo idioma, existem casos de variações - diastráticas, diacrônicas, diatópicas e etc. - que alteram a significação de um mesmo vocábulo em diferentes circunstâncias. Assim, há um grau de dificuldade acentuado em conceber a amplitude de um termo, em um idioma desconhecido, sem a compreensão de suas aplicações na interação entre falantes dessa língua.
Em suma, o longa demonstra, em sua relação entre humanos e heptapods, a questão de um perigo imediato proporcionado pelos extraterrestres. Nesse sentido, a construção que os humanos, representados por seus respectivos Estados e considerado por Campbell como o “eu”, fazem dos invasores como o inimigo a ser rejeitado, o “outro”, solidifica a soberania estatal antes comprometida pela chegada dos OVNIs, a fim de que as nações se demonstrem capazes de garantir a segurança da população civil.
A questão linguística
Antes da discussão da questão linguística que envolve todo o objeto de análise do presente texto, vale ressaltar alguns conceitos utilizados quando se trata da observação discursiva. “O que é um discurso?” é um questionamento complexo e que mobiliza linguistas desde o surgimento da disciplina de Análise do Discurso, na década de 1960. Foucault realiza um esforço em permitir a compreensão deste por meio da seguinte indagação: “como apareceu um determinado enunciado e não outro em seu lugar?” (Foucault, 1995, p. 31). Assim, apreende-se que uma formação discursiva se dá a partir de escolhas lexicais, que expõem o caráter ideológico, social, político e histórico acerca do tema tratado (Fernandes, 2007). Ademais, é importante tratar sobre a linguagem, elemento central da prática discursiva. Para Derrida (1967), a linguagem se estrutura a partir de relações dicotômicas de oposição: o homem e a mulher, o bem e o mal, o público e o privado. Nesse segmento, a realidade é composta por conceitos opostos que constroem a verdade aceita socialmente.
É importante ressaltar a questão da heterogeneidade presente na análise discursiva. O sujeito não é homogêneo, isto é, ele não apresenta um discurso único em sua constituição. Ele é resultado do entrecruzamento de diferentes discursos, mesmo aqueles que se encontram em oposição, ou seja, ainda que haja a delimitação de dicotomias, a formação discursiva ainda faz uso de distintos aspectos para sua gênese, permitindo a observação dessas nuances ao realizar enunciados, proporcionando que as relações de agonismo e antagonismo, linguisticamente, não sejam fixas. Assim, é possível entender a mobilização de recursos no âmbito da linguagem para atingir determinado fim no cenário em questão.
Observando o campo das Relações Internacionais, diversas dicotomias podem ser citadas: capitalismo estadunidense contra o socialismo soviético, que pode ser colocado, para alguns, como liberdade vs. repressão; paz e guerra; interno e externo. O cientista político David Campbell considera que, para que o Estado garanta sua autoridade política, é necessário constituir uma ameaça externa. Nesse sentido, a Política Externa é um elemento de formação do Estado, capaz de produzir, assim como a política externa, diferenciações essenciais à existência e manutenção do aparelho estatal. Portanto, tendo em vista que a realidade é incompleta e somente isso permite que os homens disponham de poder sobre a história, conceitos como nacionalidade e soberania - partes constituintes do discurso da soberania estatal - servem para reforçar a legitimidade política das autoridades domésticas.
No filme, Ian Donnelly faz uma citação do livro da personagem principal, Louise Banks: “A língua é a base da civilização. É a cola que mantém um povo unido. É a primeira arma sacada em um conflito.” Apesar de ser uma simplificação do papel da linguística nas mais diversas esferas sociopolíticas, é uma frase que corrobora com a compreensão do longa. Mesmo com a construção dos extraterrestres como um desconhecido perigoso e a exigência das autoridades em encontrar respostas complexas sobre a chegada deles ali, as relações entre os dois são precárias antes de um esforço linguístico que familiarize ambos os lados. Assim, nota-se que a língua não é uma mera ferramenta de comunicação, mas que ela também compõe e influencia interações com funções diversas. Cabe, aqui, um dos alicerces da Teoria do Discurso: a pluralidade de sentidos, alterados em conformidade com o local sócio-histórico-ideológico do enunciador. Um exemplo explícito disso no filme é a compreensão do termo “arma”, que sem conotação coativa pode significar “ferramenta”. Nesse sentido, as escolhas lexicais inseridas no contexto discursivo demonstram fundamentos políticos já naturalizados socialmente.
Fica evidente na narrativa fílmica que as nuances sociopolíticas da linguagem humana interferem no entendimento dos heptapods, que não dispõem da mesma linearidade linguística humana. A dinâmica da língua dos extraterrestres é distinta, possui ortografia não linear e isso leva a uma estrutura diferenciada de pensamento. Com uma estrutura linguística diferenciada, com alterações na temporalidade, a forma escrita do idioma heptapod apresenta enunciados sólidos e completos. A linguagem humana, segundo Benveniste (2005), permite que frases estabeleçam valor semântico em um contexto maior que a sentença, isto é, o nível sintático. À vista disso, o contexto mais amplo no qual se estabelecem enunciados é o discurso, também responsável pela significação do proferido linguisticamente. Portanto, a incompatibilidade dos aspectos específicos da linguagem fragiliza o processo de comunicação e acaba levando a interpretação da intenção de um ataque, visão característica do discurso da soberania: o uso do perigo e do medo para legitimar uma ação violenta e reiterar o poder do Estado. Um outro aspecto interessante do filme é que, após a imersão na língua heptapod, Louise consegue partilhar da percepção extraterrestre e seu pensamento abandona a lógica linear de acontecimentos, o que transforma sua vida e visão de mundo, permitindo pensar em pos sibilidades para o social.
As possíveis implicações sociais
A partir de sua linguagem não linear e escrita circular que contém sentidos completos, os heptapods oferecem uma maneira revolucionária de perceber a realidade. Essa visão tem o poder de produzir uma nova organização da sociedade - como visto nas cenas em que se mostra a mudança nas relações entre os países, motivada após a ligação da Dra. Louise Banks ao General Shang. Posto isso, também é relevante lembrar que a cena do telefonema foi o início de um novo Sistema Internacional (mais integrado e amigável entre as nações), o qual agora inclui os extraterrestres, já que existe um lábaro com o símbolo da linguagem dos heptapods presente ao lado das bandeiras dos demais países ao fundo da cena em que a Doutora e o General encontram-se, no que aparenta ser um encon tro de chefes de Estado e tomadores de decisão. Dessa forma, é possível notar mais uma articulação entre o filme e a teoria pós-estruturalista: a ascensão de uma nova ordem de organização da sociedade a partir da fragilização da ordem vigente. Em suma, segundo David Campbell, a organização institucional e territorial é um fundamento central para a eficácia das formas de fiscalização, controle e pu-nição. Então, quando a lógica da identidade/diferença (também vista pela dicoto mia “eu” e “outro”) se mostra instável como resultado de fluxos globais descon trolados, as práticas sociais, as lealdades e as economias de responsabilidade individual tornam-se menos previsíveis, podendo sofrer alterações (Nogueira & Messari, 2005).
Sendo assim, a analogia fica mais evidente. A Reforma Protestante levou ao questionamento das estruturas sociais e de poder que foram consolidadas a partir do fundamento divino na Ordem da Cristandade. Já a linguagem não linear dos heptapods e a nova visão de mundo que ela promove também detém o poder para gerar dúvidas e instabilidades sobre as perguntas que já estavam respondidas, propiciando, em última instância, o colapso do sistema vigente de organização da sociedade e abrindo caminho para um novo. Assim, da mesma maneira que a Ordem da Cristandade declinou e os Estados Nacionais ascenderam em virtude das indagações produzidas pela Reforma Protestante, fica possibilitada a formação de uma nova ordem vigente decorrente dos questionamentos promovidos pela nova visão de mundo proveniente da linguagem não linear.
Considerações finais
O objetivo do presente texto foi expor como a contribuição pós-estruturalista é relevante e capaz de apreender os mais variados acontecimentos no âmbito de interações entre interno e externo, incluindo um filme de ficção científica cujo escopo é a chegada de alienígenas à Terra. Há muito se discute o que torna uma teoria de Relações Internacionais boa: para os idealistas, ela deve demonstrar o devir da realidade; para os realistas, entretanto, ela precisa compreender regularidades e conceber a política internacional em sua essência real. O Pós-Estruturalismo, como visto, questiona tais concepções e propõe a historicização dos pressupostos tomados como dados naturais. Assim, essa teoria demonstra sua importância: a consciência da incerteza e da construção da verdade socialmente aceita, somada à constante indagação dos fundamentos utilizados nas demais interpretações, permite a compreensão da realidade internacional não em termos totais, mas ao menos mais amplos.
A tentativa de compreensão de objetos, seja por meio de mídias ou eventos de política internacional, à luz da teoria pós-estruturalista é um exercício complexo e demanda uma alta capacidade de abstração. O que procurou-se realizar aqui foi uma desconstrução da narrativa fílmica e exposição dos pressupostos que compõem a interação proposta, além da demonstração da influência linguística - principalmente discursiva - na intervenção e na própria composição da realidade. Nesse segmento, a articulação entre filme e teoria foi um recurso para elucidar as questões teóricas, assim como exemplificar a presença desses princípios em determinado contexto. É retomado, assim, a importância do cinema como recurso complementar no ensino das Relações Internacionais, já que possui a capacidade de retratar situações hipotéticas, permitindo praticar a investigação teórica em cenários potenciais.
Portanto, nota-se que, a partir dessa análise, é possível identificar a constituição de uma ameaça externa como instrumento de legitimação do poder estatal e de sua soberania, além do uso de discursos que reforçam esse mesmo fim. Desse modo, fica evidente que, mesmo se tratando de uma situação hipotética de contato alienígena, essa postura pode ser - e, muitas vezes, é - adotada contra qualquer elemento oposto à esfera doméstica. Ademais, é relevante pensar nas potencialidades que um rompimento com essa dinâmica traria: no filme, os conhecimentos de Louise, adquiridos a partir do contato com os extraterrestres, permitem que as relações interestatais se disponham de maneira mais harmônica. Uma mudança na concepção de Política Externa e seus discursos poderia, eventualmente, promover novas formas de organização social humana na atualidade.