SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36 número1Da transexualidade à disforia de género: protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.1 Lisboa fev. 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i1.12705 

CARTA AO DIRETOR

Resposta dos autores "Da transexualidade à disforia de género: protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários"

Paulo Santos, Tiago Maricoto, Alberto Hespanhol*

*Editores da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar


 

O artigo Da transexualidade à disforia de género: protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários, publicado na RPMGF, volume 35, n.º 3, em 2019, foi elaborado e submetido em 2017, tendo, desde então, surgido atualizações, nomeadamente ao nível legal e de classificação.

Os autores, que não subscrevem a totalidade dos comentários constantes da carta ao editor, reconhecem que a mesma não coloca em causa a substância do artigo publicado, sendo que a tomarão em conta em futuros trabalhos.

Ana Gabriela Carvalho Oliveira, Ana Filipa Vilaça, Daniel Torres Gonçalves*

*Autores do artigo Da transexualidade à disforia de género: protocolo de abordagem e orientação nos cuidados de saúde primários, Rev Port Med Geral Fam. 2019;35(3):210-22. doi:10.32385/rpmgf.v35i3.12105

Comentário editorial

Agradecemos a atualização de conteúdos proposta pelos autores da Carta ao Editor.

A identidade de género está atualmente na ordem da opinião pública, o que leva a que se verifique alguma confusão nos conceitos e definições que se misturam com crenças e opiniões nem sempre baseadas na melhor evidência.

A existência de doença depende de vários fatores. Numa lógica histopatológica, a doença é definida por uma alteração do funcionamento celular e dos sistemas que leva a uma incongruência em relação à fisiologia ideal, capaz de cumprir a função predestinada da célula ou do sistema orgânico. Em consequência, postulamos que há sempre um mecanismo perfeitamente definido que justifica o erro inicial da cadeia de eventos que se lhe segue.

Já percebemos há muitos anos que tal não é completamente verdade.

A questão dos comportamentos é paradigmática, pois independentemente da existência de determinadas características genéticas ou epigenéticas que possam estar na base de certas opções; a realidade é que os comportamentos são modelados por um conjunto alargado de variáveis, incluindo padrões familiares, comunitários e sociais.

Neste sentido, a definição de doença engloba também uma avaliação da distribuição normal entendida pela forma como determinada situação se aproxima ou afasta da média da população.

Os comportamentos serão «normais» ou «anormais» consoante os cut-off que estabelecemos, dependentes da média da população e da tolerância que quisermos adotar para os desvios a essa média. Numa linguagem mais estatística, definimos uma média e um desvio-padrão da distribuição e convencionamos aceitar como normal o que se situa entre os mais ou menos 2 desvios-padrão (o mais comum) ou 3 ou 4, ou os que quisermos.

Desta forma, percebemos que «normalidade» é o que quisermos definir e que o problema não está no comportamento, mas na aceitação que fazemos dele na sociedade.

Os comportamentos sexuais são um bom exemplo deste conceito. A «doença» depende da definição do outcome de avaliação e do valor que a sociedade lhe atribui.

Por motivos que são conhecidos, durante muitos anos foi tabu falar de sexualidade. Isto levou a que comportamentos diferentes dos códigos socialmente aceites fossem vistos como desviantes e classificados como doença. Mas a sociedade muda em tudo e também no sistema de valores. Atualmente vemos que comportamentos considerados desviantes no passado são aceites como adequados (como os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo), num fenómeno claro de alargamento dos desvios-padrão aceites em relação ao comportamento médio da população. Da mesma forma, assistimos à categorização como desviante de comportamentos que no passado eram normais (como a recusa da utilização do preservativo nas relações sexuais ocasionais).

Dentro desta perspetiva de evolução social não encontraríamos nenhuma dificuldade, se toda a sociedade evoluísse à mesma velocidade, o que obviamente não será fácil de determinar. Daí os fenómenos discriminatórios que a Lei, enquanto instrumento normativo (diferente de normalizador), procura, e bem, corrigir.

A saúde tem um entendimento diferente da justiça. Se a justiça corrige as relações entre as pessoas, a saúde corrige a relação da pessoa consigo própria. Só faz sentido relevar um comportamento (ou seja, enquadrá-lo como patológico) se for causa de sofrimento para o próprio (como a pessoa que bebe álcool em excesso) ou diretamente para terceiros (e que depois vai conduzir o seu carro). Mas também não fazemos o contrário (ainda que possa haver evidência do benefício de uma ingestão moderada de algumas bebidas alcoólicas, não classificamos a abstinência alcoólica como doença). Não obstante, orientaremos uns e outros se isso condicionar angústia, sofrimento ou dor no presente ou, preventivamente, o puder vir a fazer no futuro.

Se nos entendermos nestes conceitos, seremos, enquanto profissionais de saúde, instrumentos para um equilíbrio social fundamental à paz e ao sucesso de todos, independentemente dos comportamentos (aqui sexuais) que cada um assume para si próprio e na relação que estabelece com os outros.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons