Introdução
A febre é um sintoma comum na prática clínica em medicina geral e familiar (MGF), sendo habitualmente autolimitada, com tratamento sintomático e/ou dirigido à etiologia. A síndroma de febre de origem indeterminada (FOI) foi descrita pela primeira vez por Petersdorf e Beeson em 1961,1-6 tendo a definição sofrido diversas modificações ao longo do tempo.
Em 1991, Durack e Street reviram a definição original, sendo esta síndroma definida atualmente como uma elevação de temperatura corporal superior a 38,3°C durante pelo menos três semanas, sem diagnóstico definido, apesar de investigação adequada em internamento hospitalar durante três dias ou investigação em ambulatório durante três consultas.1-2,4-6 Estes autores propuseram também uma classificação para a síndroma de FOI ajustada à prática clínica, subdividindo-a em quatro diferentes grupos: 1) FOI clássica; 2) FOI nosocomial; 3) FOI neutropénica; 4) FOI associada a VIH.1-2,4-7
Relativamente à FOI clássica, a etiologia pode ser subdividida em infeciosa (11-57%), inflamatória não-infeciosa (1-31%), neoplásica (8-13%) e miscelânea.1,3-4,7 A FOI associada a VIH1,2,4-7 pressupõe um diagnóstico prévio de VIH, o que remete para um grupo de etiologias que, neste grupo, têm um papel relevante, denominadas infeções oportunistas, nomeadamente Mycobacterium tuberculosis, Pneumocystis jiroveci, Citomegalovírus (CMV), entre outras.4,6-9
Segundo os dados epidemiológicos de 2019 da Organização Mundial da Saúde (OMS), o VIH afeta cerca de 38 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma incidência de 1,7 milhões no referido ano.9 No entanto, apesar de um aumento da prevalência da doença a nível mundial, tem-se verificado uma diminuição da incidência e da mortalidade devido ao diagnóstico mais precoce e à eficácia das atuais terapêuticas. A SIDA corresponde ao estádio mais avançado de infeção por VIH, caracterizado por CD4+ < 200/uL e/ou doença definidora de SIDA.8-9
Segundo as normas de orientação clínica da Direção-Geral da Saúde (DGS), o rastreio laboratorial de VIH está recomendado para todos os indivíduos com idade compreendida entre os 18 e 64 anos (pelo menos uma vez na vida) ou em certos grupos de risco, nomeadamente indivíduos a quem foi diagnosticada uma infeção sexualmente transmissível (IST).10
A escolha deste caso clínico foi motivada pelo facto de a investigação da síndroma de FOI ter conduzido a um diagnóstico inesperado de uma patologia atualmente cada vez mais rara (SIDA). O médico de família apresenta um papel essencial na prevenção primária e na prevenção secundária de IST (designadamente através da realização de rastreios, quando indicado). Além disso, perante um quadro clínico de FOI é importante manter um elevado grau de suspeição clínica e realizar uma abordagem diagnóstica sistemática, orientada pela história clínica e pelo exame objetivo e dirigida às possíveis causas, das mais para as menos prováveis. Este relato de caso pretende, portanto, sensibilizar para a importância do rastreio de VIH, para a correta abordagem diagnóstica da síndroma de FOI e para a importância do acompanhamento longitudinal, de acordo com o diagnóstico estabelecido.
Descrição do caso
Mulher de 47 anos, de raça caucasiana, residente na zona de Setúbal. Tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade e trabalha como administrativa. Divorciada há 15 anos, tem dois filhos de 22 e 18 anos, integrando uma família monoparental. Sem vida sexual ativa nos últimos oito anos.
Relativamente aos seus antecedentes pessoais salienta-se o diagnóstico de neoplasia do colo do útero, submetida a conização em 2016 com cura, atualmente sem seguimento em consulta de ginecologia e com citologia cervico-vaginal atualizada, com resultado negativo para lesão intra-epitelial ou malignidade (NILM). Dos antecedentes obstétricos destaca-se um índice obstétrico 2-0-0-2 (dois partos de termo eutócicos em 1998 e 2003). Sem medicação habitual. É fumadora de 20 cigarros por dia desde há 15 anos (15 unidades maço-ano), sem hábitos alcoólicos ou toxicofílicos. O plano de vacinação está atualizado. Não apresenta antecedentes familiares de relevo.
A utente recorreu à consulta de doença aguda na sua unidade de saúde familiar (USF), em janeiro de 2020, por um quadro com cerca de uma semana de evolução, caracterizado por mal-estar geral, cansaço, temperatura corporal vespertina subfebril (temperatura máxima 37,5 °C), tosse seca e, por vezes, dispneia associada. Não apresentava alterações de relevo ao exame objetivo. Optou-se por iniciar terapêutica sintomática e antibioterapia com azitromicina 500mg (um comprimido por dia durante três dias), assumindo como hipótese diagnóstica uma pneumonia atípica. Foi ainda requisitada uma radiografia torácica.
Reagendou consulta após duas semanas, referindo melhoria da dispneia, mas mantendo queixas de mal-estar geral, cansaço, tosse, picos febris vespertinos (temperatura máxima de 38,5 °C) e hipersudorese de predomínio noturno. Apresentava ainda queixas de anorexia e perda ponderal de 4kg desde a última consulta. Negava hemoptises e contexto epidemiológico conhecido de relevo. A radiografia torácica não apresentava alterações. Atendendo à clínica, e colocando como principal hipótese de diagnóstico o diagnóstico de tuberculose pulmonar, optou-se por pedir avaliação analítica (com hemograma e marcadores inflamatórios) e tomografia computorizada (TC) pulmonar, mantendo medidas gerais e de controlo sintomático.
Após três semanas agendou nova consulta de reavaliação para mostrar o resultado dos exames pedidos, referindo encontrar-se assintomática há uma semana. Ao exame objetivo apresentava aspeto emagrecido, sem outras alterações. Dos MCDT pedidos na consulta anterior destacava-se, na avaliação analítica, anemia normocítica normocrómica, leucopenia, elevação da velocidade de sedimentação (VS) e da ferritina. Na TC pulmonar foram descritas alterações fibróticas em ambas as regiões apicais. Atendendo ao facto de, nesse momento, a utente se encontrar assintomática optou-se por não prosseguir na investigação (assumindo quadro autolimitado) e manter cuidados gerais.
No entanto, após duas semanas, a utente contactou novamente a USF, referindo reinício de queixas de cansaço para médios esforços e reinício de picos febris vespertinos diários (temperatura corporal máxima 39,0 °C) com uma semana de evolução. Foi agendada uma consulta presencial nesse mesmo dia para reavaliação completa da anamnese e exame objetivo e realização de investigação etiológica da síndroma de FOI.
Nesta consulta, para além dos aspetos anteriormente referidos, destacavam-se cinco adenopatias infracentimétricas inguinais bilaterais e uma perda ponderal de 11kg desde o início do quadro. Procurando realizar o diagnóstico diferencial entre etiologia infeciosa, neoplásica e inflamatória ou autoimune foram pedidos novos MCDT: avaliação analítica (incluindo serologias e eletroforese de proteínas), ecografia abdominal, eletrocardiograma e ecocardiograma.
A avaliação analítica foi sobreponível à anterior (anemia, leucopenia, elevação da VS e da ferritina). Apresentava também elevação da desidrogenase láctica (LDH), hipergamaglobulinemia e hipoalbuminemia e serologia VIH-1 positiva (sendo as restantes serologias negativas). A ecografia abdominal, o eletrocardiograma e o ecocardiograma não apresentavam alterações valorizáveis.
Perante a serologia positiva para VIH-1, após confirmação da infeção explicou-se à doente o significado do diagnóstico, a abordagem terapêutica e o prognóstico. Procurando esclarecer a via de transmissão, a utente referiu que o ex-companheiro da relação que tivera há oito anos apresentava história de abuso de drogas injetáveis e outros comportamentos de risco, sendo, portanto, a via sexual o modo de transmissão mais provável.
Foi contactado o serviço de infeciologia do hospital de referência, tendo a utente iniciado seguimento em consulta hospitalar no dia seguinte. Durante o seguimento em consulta hospitalar, e atendendo aos sintomas respiratórios descritos, foi feito o diagnóstico de infeção por Pneumocystis jirovecii. Sendo esta uma doença definidora de SIDA e atendendo à contagem de células CD4+ < 200 células/µL foi confirmado o diagnóstico de SIDA. Iniciou-se terapêutica antirretroviral e terapêutica dirigida à pneumocistose, com evolução clínica favorável.
Atualmente a utente mantém seguimento em consulta de infeciologia, cumprindo terapêutica e mantendo carga viral indetetável e contagem leucocitária normal, com recuperação progressiva do seu bem-estar físico. No entanto, salienta-se o impacto negativo que este diagnóstico teve no seu bem-estar emocional e psicológico. A utente desenvolveu sintomatologia depressiva, com necessidade de acompanhamento em consulta de psicologia, associado a terapêutica farmacológica com sertralina 50mg/dia.
Na última consulta de medicina geral e familiar, a utente apresentava melhoria do humor, tendo retomado atividade laboral sem intercorrências. No entanto, mantém revolta pela noção de cronicidade da patologia e dificuldade na aceitação do diagnóstico, sobre o qual guarda segredo perante familiares e amigos. Este estado emocional tem conduzido a algum isolamento social e falta de apoio familiar, bem como rejeição de novos relacionamentos afetivos, sendo os cuidados de saúde primários e secundários o seu principal pilar de suporte.
Comentário
A síndroma de FOI é uma entidade pouco frequente em MGF, sendo que, quando surge, deve-se mais frequentemente a uma apresentação atípica de uma doença comum do que à apresentação de uma doença rara. No presente caso clínico, a etiologia identificada foi a infeção por VIH, com diagnóstico concomitante de doença definidora de SIDA (entidade atualmente rara, devido à deteção e tratamento cada vez mais precoces de infeção por VIH).
Este relato apresenta um caso de síndroma de FOI clássica, apesar da associação ao diagnóstico de infeção por VIH, dado este diagnóstico ser inicialmente desconhecido. A FOI clássica compreende um vasto leque de etiologias possíveis (infeciosas, neoplásicas, inflamatórias, autoimunes ou mistas). O médico de família deve manter um elevado grau de suspeição clínica e uma abordagem sistemática, de modo a não atrasar o diagnóstico etiológico desta síndroma sem que, por outro lado, se realizem exames complementares invasivos e/ou desnecessários.
A utente cumpriu critérios de síndroma de FOI na terceira consulta, por ter apresentado febre com cerca de quatro semanas de evolução, de etiologia desconhecida após investigação etiológica inconclusiva dirigida às causas mais prováveis (pneumonia atípica e tuberculose pulmonar). No entanto, atendendo à melhoria clínica, optou-se nesse momento por não prosseguir a investigação etiológica, assumindo-se patologia autolimitada, facto que terá contribuído para um atraso no diagnóstico. Perante o reinício dos sintomas foi necessário reavaliar a utente, revendo cuidadosamente a anamnese e o exame objetivo, alargando o leque de hipóteses diagnósticas e consequente investigação.
A investigação diagnóstica inicial da FOI implica a realização de uma anamnese completa, exame objetivo detalhado, avaliação analítica e imagiológica seletivas. Não existe uma abordagem consensual relativamente aos MCDT recomendados. Numa primeira fase, os MCDT a realizar devem incluir: hemograma completo, creatinina, fosfatase alcalina (FA), aspartato aminotransferase (AST), alanina aminotransferase (ALT), VS, proteína-C reativa (PCR), LDH, creatinina cinase (CK), ferritina, anticorpos antinucleares (ANA), fator reumatoide (FR), eletroforese de proteínas, análise sumária de urina, hemoculturas, radiografia do tórax e ecografia abdominal.1-5,7 As serologias para VIH devem também ser incluídas na abordagem inicial em doentes com fatores de risco para a infeção (como era o caso da utente deste caso clínico).5
Os restantes MCDT deverão ser orientados pelas potenciais pistas diagnósticas e os resultados das avaliações laboratorial e imagiológica iniciais. Estes poderão incluir as restantes serologias (hepatites B e C e VIH, caso esta não tenha sido incluída na avaliação inicial), ecocardiograma, teste de tuberculina, TC toraco-abdomino-pélvica, tomografia por emissão de positrões (PET), biópsia de adenopatias, biópsia medular, biópsia hepática, entre outros.1-5,7
No caso clínico descrito, apesar de ter realizado rastreio para VIH com resultado negativo durante as gravidezes, a doente apresentava como fator de risco para esta infeção o diagnóstico de infeção pelo vírus do papiloma humano (HPV). A neoplasia do colo do útero pode corresponder a um indício desta imunodeficiência, dada a maior prevalência de cancro relacionado com HPV em pessoas seropositivas, associado aos hábitos tabágicos conhecidos.11-12 Segundo a Norma de Orientação Clínica n.º 058/2011, da DGS, o diagnóstico de IST constitui critério para rastreio de infeção por VIH.10
O facto de não ter sido realizado o rastreio de infeção por VIH aquando do diagnóstico de infeção por HPV conduziu a que o diagnóstico de VIH permanecesse desconhecido até ao estádio de SIDA, altura em que o desenvolvimento de infeção oportunística a Pneumocystis jirovecii motivou investigação etiológica e, deste modo, o estabelecimento do diagnóstico. O desenvolvimento de doença definidora de SIDA, mesmo que cada vez mais raro, associa-se a um estado de imunodeficiência grave, com múltiplas complicações associadas. Deste modo, é fundamental desenvolver protocolos de atuação, tanto ao nível dos cuidados de saúde primários como secundários, que incluam a pesquisa de outras IST perante utentes com resultado positivo para infeção por HPV no rastreio de cancro do colo do útero.
Atualmente as serologias do VIH são um exame rápido e pouco dispendioso, com testes rápidos de quarta geração bastante sensíveis e específicos,13 embora não estejam disponíveis em muitas das unidades de saúde do país.
Após o estabelecimento do diagnóstico, o médico de família tem o papel de gestor dos cuidados prestados, recorrendo ao apoio dos cuidados de saúde secundários sempre que indicado. No presente caso clínico, a rápida articulação com o serviço de infeciologia do hospital de referência, através da discussão do caso clínico por contacto telefónico e agendamento de consulta hospitalar para o dia seguinte, permitiu assegurar um seguimento célere e adequado em contexto hospitalar.
Atendendo ao impacto do diagnóstico nesta doente, não só a nível pessoal como também a nível familiar e social, foi fundamental manter uma abordagem multidisciplinar, articulando não apenas com o serviço de infeciologia, mas também com o serviço de psiquiatria e psicologia, sendo esta uma das características do médico de família, que tem um papel privilegiado também no seguimento longitudinal de cada utente, numa perspetiva holística e centrada na pessoa e no seu contexto familiar, social e comunitário.