Introdução
A infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) permanece uma problemática importante na Europa, sendo que os homens que fazem sexo com homens representaram cerca de 49% das novas infeções em 2020.1 O seu prognóstico melhorou consideravelmente nas últimas décadas com o investimento na prevenção e com o aparecimento da terapia antirretroviral (TAR). (2 Quando utilizada adequadamente, embora não seja curativa, a TAR é altamente eficaz, suprimindo a replicação viral, melhorando a função imunológica e reduzindo consideravelmente o risco de desenvolver síndroma da imunodeficiência adquirida (SIDA). (3
O sarcoma de Kaposi (SK) é um tumor vascular de baixo grau, etiologicamente associado à presença do herpesvírus humano 8 (HHV-8). Existem quatro subtipos deste, sendo que o mais frequente é o associado à infeção por VIH. Quando este está presente é considerado uma doença definidora de SIDA. (4-5 Atualmente é a sétima doença definidora de SIDA mais comum na Europa, representando cerca de 6,1% dos diagnósticos. (1 Se, por um lado, com o advento da TAR complicações como o SK são hoje em dia mais raras, por outro, os infetados com VIH têm agora uma esperança média de vida suficientemente alta para experienciar as complicações associadas ao envelhecimento, como as doenças cardiovasculares (CV). (6 Sabe-se que, nesta população, existe um risco acrescido de doença coronária, incluindo de enfarte agudo do miocárdio, que ocorre, em média, uma década antes quando comparado com a população em geral. Estima-se que, em 2030, 78% dos doentes infetados com VIH apresentarão doença CV. (7
Os autores descrevem um caso de EAM e SK num paciente jovem com um diagnóstico recente de infeção por VIH.
Descrição do caso
Doente de 31 anos, sexo masculino, caucasiano. Antecedentes pessoais: VIH diagnosticado em novembro/2018 e medicado com abacavir/lamivudina/dolutegravir, mas sem cumprimento terapêutico consistente; sífilis primária tratada em 2012; comportamentos sexuais de risco (relações sexuais desprotegidas com homens); tabagismo ativo (10 UMA). Nega consumo de drogas de abuso.
Recorre ao serviço de urgência (SU) em 29/03/2020 por dor retroestrenal em aperto, com irradiação para o membro superior direito, e náuseas. O estudo efetuado revelou subida de marcadores de necrose do miocárdio e supradesnivelamento do segmento ST nas derivações anteriores. Foi submetido a intervenção coronária percutânea emergente com colocação de stent na artéria descendente anterior. Apresentou boa evolução durante o internamento, tendo alta em 01/04/2020, medicado com ticagrelor 90 mg 2 id, ácido acetilsalicílico 100 mg id, atorvastatina 40 mg id, ezetimibe 10 mg id e bisoprolol 2,5 mg id.
Em 07/04/2020, através de consulta telefónica com o seu médico de família (MF), o doente descreve aparecimento recente de “manchas escuras” e dolorosas no membro inferior direito. É referenciado ao SU onde realiza ecodoppler que descarta trombose venosa. Tem alta com diagnóstico provável de equimoses em doente duplamente antiagregado. O MF complementa o estudo com hemograma e estudo da coagulação, sem alterações de relevo, e perfil lipídico: colesterol (CT) total 93 mg/dL, CT LDL 55 mg/dL, CT HDL 27 mg/dL, triglicerídeos 54 mg/dL.
Em 09/06/2020 é realizada consulta presencial com o seu MF por agravamento das lesões. Ao exame objetivo apresenta placas de cor violácea, duras ao toque, não dolorosas, mais exuberantes nos membros inferiores (Figura 1) mas também dispersas pelos membros superiores (Figura 2) e tronco (Figura 3). É novamente referenciado para o SU para observação por dermatologia, tendo realizado biópsia, que revelou SK e presença do HHV-8.
É internado eletivamente em 03/07/2020, em infeciologia, para estadiamento do SK, que não revelou evidência de envolvimento de outros órgãos, tendo sido ainda efetuado diagnóstico de sífilis latente tardia. À data de alta (14/07/2020) foi medicado com esquema de penicilina e TAR com tenofovir-DF/emtricitabina + dolutegravir.
Atualmente é seguido em consulta de cardiologia e infeciologia, sendo ponderada a possibilidade de iniciar quimioterapia mediante a evolução das lesões.
Comentário
Os pacientes infetados com VIH têm um aumento de cerca de 50% do risco de EAM, independentemente dos fatores de risco cardiovasculares (FRCV) tradicionais, apesar destes serem mais prevalentes nesta população. (8 O EAM é mais comum em homens, fumadores e com baixos níveis de colesterol HDL. (6-7 Este aumento de risco persiste mesmo quando a carga viral é suprimida pela TAR. O risco de acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca e doença arterial periférica está também aumentado. (6,9 A má adesão à terapêutica pode ter sido um fator decisivo para o EAM precoce. Pensa-se que a variação nos níveis de CD4 e de carga viral, induzidos pela toma de TAR de forma intermitente, aumente o risco CV. (8 Também a escolha do fármaco deve considerar o perfil CV do doente. O uso de abacavir mantém-se controverso pela sua associação conhecida com o EAM. Os estudos que demonstram esta associação concordam que o risco parece ser mais elevado em paciente com FRCV tradicionais. Assim, nestes pacientes, o abacavir deverá ser evitado. (8,10
Os doentes com VIH sob TAR apresentam um risco mais elevado de insulinorresistência, diabetes mellitus tipo 2 e dislipidemia. (11 Para além disso, os doentes com VIH medicados com terapêutica antidislipidemiante atingem os alvos de CT LDL com menor frequência, quando comparados à população em geral na mesma categoria de risco. (12 Devido ao menor potencial de interação com a TAR, a pitavastatina é a estatina de eleição nos doentes com VIH, mas a atorvastatina e a rosuvastatina também podem ser consideradas e a sinvastatina deverá ser evitada. (11 Os autores recomendam a avaliação rotineira do perfil lípico e glucose em jejum. Sugere-se a sua obtenção antes do início da TAR, um a três meses após e a cada seis a doze meses posteriormente. (11 A prevalência do tabagismo é consideravelmente mais elevada em doentes com VIH, em comparação com a população em geral. (13 Os autores salientam a importância da aplicação rotineira da intervenção muito breve e breve nestes doentes.
Um dos scores de risco CV mais frequentemente utilizado na prática clínica, o SCORE2, não contempla a infeção por VIH ou a utilização de TAR. (14 Ainda assim, quando comparado com scores que integram dados específicos sobre VIH, como o Data Collection on the Adverse Effects of Anti-HIV Drugs (DAD) cohort risk calculator, o SCORE2 parece ser válido para a estimativa do risco CV em doentes com VIH. (12 Os clínicos deverão ter presente que a TAR é considerada um modificador do risco calculado, o que significa que a sua presença pode fazer aumentar o risco estimado de um indivíduo. (15
Antes da introdução da TAR, o SK ocorria em 30% dos pacientes com SIDA e, ao contrário da sua forma clássica, o SK associado ao VIH era rapidamente progressivo, disseminado e frequentemente fatal. (16 Nos Estados Unidos da América a sua incidência passou de 47 casos/1.000.000/ano para 6 casos/1.000.000/ano após a introdução da TAR. (17 Mantém-se a neoplasia mais frequente em pacientes infetados com VIH. (18 É mais comum em homens que fazem sexo com homens, o que é explicado pela mais alta prevalência do HHV-8 neste grupo. (16 Embora o SK possa envolver qualquer órgão, a doença cutânea é a mais comum. (19 Nos infetados pelo VIH, hipóteses diagnósticas como o SK, raro na atualidade nos países desenvolvidos, são consideradas complicações do passado, o que pode provocar um atraso considerável no diagnóstico e, possivelmente, prejudicar o prognóstico do doente.