Introdução
A prática em cuidados primários,1 a medicina geral e familiar (MGF) em Portugal, tem vindo a ser uma opção de carreira pouco atrativa na Europa, EUA e países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), tendo a insatisfação no exercício da profissão sido associada a elevada carga de trabalho, tensão mental, gestão de situações complexas e de expectativas dos pacientes, tarefas de gestão, burocracia e conflitos casa-trabalho. 2 A investigação já realizada assegura ser requerida uma forte força de trabalho em MGF para ser possível proporcionar um equilíbrio eficiente entre o uso de recursos económico-financeiros e a prestação eficiente de cuidados aos pacientes. 1,3
O exercício, a importância, os desafios e as dificuldades que se colocam à MGF têm sido objeto de estudo sob várias perspetivas e em várias regiões do mundo. As publicações efetuadas por equipas de investigadores em zonas tão diversificadas como a Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Israel, Suécia e conjuntos de vários países europeus apresentam conclusões para os respetivos contextos sobre assuntos variados, relacionados com características, dificuldades e motivos de satisfação/insatisfação no exercício da MGF.
Em revisão da literatura foi possível verificar como foram estudadas as dificuldades percecionadas no exercício da profissão, 3 a identificação das características gerais mais relevantes no exercício da MGF, 4 as dificuldades associadas à gestão da incerteza na prática corrente da MGF, 5 a prevalência de burnout e fatores associados, 6 a relevância da relação médico-doente, 7 a importância da centragem do método clínico no doente8 e a identificação de motivos de satisfação e de insatisfação no exercício da profissão. 2
Para Portugal não foi ainda publicado qualquer estudo suficientemente abrangente sobre a satisfação ou a insatisfação com o exercício da MGF, contemplando as múltiplas dimensões de tal exercício, embora se tenham encontrado:
Estudo circunscrito aos médicos de MGF da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos; 9
Estudo focando a satisfação com a especialidade, mas envolvendo apenas internos de 22 especialidades (incluindo MGF); 10
Investigação sobre a satisfação com o programa de formação específica (internato) em MGF dos internos da Zona Norte; 11
A medição da satisfação de todas as categorias profissionais que trabalhavam no Agrupamento de Centros de Saúde Feira-Arouca; 12
A avaliação da satisfação com o exercício da profissão de todos os elementos do Centro de Saúde São João (Porto, 31 questionários); 13 e,
A associação entre o bem-estar psicológico (BEP) e o engagement no trabalho dos profissionais de saúde nos agrupamentos de Centros de Saúde de Matosinhos e Grande Porto IV. 14
Ainda de âmbito nacional, um estudo publicado em 2021 foca aspetos muito particulares que endereçam (a nível regional) a questão da satisfação dos internos de MGF (da região de Lisboa) relativamente às competências pedagógicas dos orientadores de formação. 15 Já foi também reconhecido que a investigação do tema da satisfação profissional chegou tarde ao campo da gestão em saúde no nosso país. 16
Internacionalmente, e além dos estudos acima citados, deve salientar-se a investigação de Le Floch e colaboradores2 destinada a elencar um conjunto alargado com 31 fatores de satisfação sem, contudo, os usar na prática em inquérito para retirar conclusões; os fatores propostos foram agrupados em seis famílias (médico como pessoa, competências especiais requeridas, organização do trabalho, relação médico-paciente, ensinar e aprender, equilíbrio da vida pessoal).
Surge, assim, a necessidade de investigar para colmatar tal lacuna, considerando vários critérios (ou fatores) de avaliação baseados nas vertentes identificadas na literatura. O conhecimento assim gerado em função das respostas individuais pode ajudar a, percebendo a avaliação que os médicos de MGF fazem do exercício da sua atividade profissional, melhorar a satisfação com/e o exercício da profissão, evitando constrangimentos individuais.
Existe investigação, não restrita ao domínio da MGF, que reconhece ser a satisfação dos profissionais no setor da saúde, em termos gerais, um aspeto fundamental na prestação dos serviços, 17 que os pacientes dos médicos com maior satisfação profissional podem eles próprios estar mais satisfeitos com os seus cuidados, 18-19 que a insatisfação pode ocasionar um aumento da rotatividade dos médicos nos serviços, provocando diminuição da continuidade dos cuidados aos pacientes e aumento dos custos para o sistema de saúde, 19 e que o conhecimento desses aspetos é também importante para as associações médicas. 20
Torna-se importante este conhecimento por ser reconhecido o baixo apelo da MGF como opção de carreira, sendo esse um problema recorrente para os sistemas de saúde na Europa, EUA e outros países da OCDE2 - referem os relatórios da OCDE que a percentagem de médicos de MGF, entre todos os médicos, pode variar entre cerca de 50% no Chile e Canadá e apenas 5% na Grécia e na Coreia. 21
Objetivos
Conceber um instrumento de inquérito, com uma estrutura desenhada para obtenção da distribuição de perceções sobre a avaliação do exercício da profissão, numa visão holística, pelos médicos da especialidade de MGF, nomeadamente quanto a questões da esfera pessoal, competências especiais requeridas, organização do trabalho, relação médico-paciente, ensino e aprendizagem, equilíbrio pessoal e fatores de insatisfação.
Conhecer a perceção sobre a avaliação do exercício da profissão em função do género, da posição na carreira da especialidade e da idade.
Métodos
Foi concebido um questionário composto por um conjunto pertinente de critérios (ou fatores) de avaliação, baseados na literatura, discriminando aspetos de satisfação e de insatisfação com o exercício da profissão e com pontuação em escala quantitativa.
O questionário foi objeto de avaliação por nove peritos, todos médicos na área da MGF, sendo seis especialistas e três internos de especialidade, que opinaram sobre a construção frásica, sobre a oportunidade da temática a estudar e sobre as frases empregues. Este foi depois aplicado a 25 médicos para avaliação de consistência interna e fiabilidade, bem como de qualidade, agradabilidade da leitura, facilidade de compreensão, qualidade de construção das frases, capacidade de medição do pretendido e comentários, críticas e sugestões.
Foi construído o índice de satisfação em escala percentual de 0 a 100, em que o valor mais elevado significa maior satisfação, tendo em conta as respostas aos vários fatores do inquérito segundo a importância relativa (peso) atribuída a cada fator. Os valores dos pesos entraram numa média ponderada para cada inquérito (soma dos produtos do peso atribuído a cada grupo, após normalizado na escala 0-100%). O índice de satisfação foi calculado pela média ponderada, segundo os pesos fornecidos pelos inquiridos em resposta a pergunta específica.
Elaboração do questionário
Após consulta bibliográfica foi elencado um conjunto de fatores essenciais à avaliação do exercício profissional no âmbito da MGF, constituindo-se os seguintes sete grupos temáticos: 1. Aspetos pessoais ligados à profissão; 2. Competências especiais requeridas; 3. Organização do trabalho; 4. Relação médico-paciente; 5. Ensino e aprendizagem; 6. Equilíbrio pessoal; e 7. Fatores de insatisfação.
O questionário, constituído por 30 questões para os sete grupos, encontra-se na Tabela 1, sendo os grupos de questões doravante referidos por Gi (com i = 1…7) e as questões identificadas em cada grupo por um algarismo árabe adicional j (Gi.j).
Cada fator foi apresentado sob a forma de uma afirmação, pedindo-se o grau de concordância/discordância com a mesma numa escala de quatro possibilidades de resposta, não tendo sido usado um elemento neutro: 1 = Discordo totalmente; 2 = Discordo; 3 = Concordo; e 4 = Concordo totalmente.
Para os Grupos G1 a G6 - fatores de satisfação -, a maior pontuação significou maior satisfação e para as questões do Grupo G7 - fatores de insatisfação - quanto maior a pontuação maior era a insatisfação.
Para além da pontuação para cada questão foi também solicitada a importância (peso), em escala de 1 (muito baixa) a 10 (muito alta), atribuída a cada grupo de fatores numa avaliação do exercício da profissão, ponderando os respondentes os pesos de importância relativa de cada grupo de questões.
Como variáveis de estudo solicitaram-se a idade (em intervalos de grupos etários), o género e a posição na carreira de MGF, se interno ou especialista, segundo a Tabela 1.
Procedimento de recolha de dados
O questionário foi disponibilizado numa plataforma web, proporcionando o seu preenchimento e submissão online de forma anónima e com garantia de sigilo e confidencialidade. Os convites para o preenchimento foram enviados por email a todos os médicos inscritos na Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. O convite foi ainda colocado em redes sociais específicas da MGF: MGFamiliar XXI, Rede dos Amigos da Direção do Colégio de Especialidade, MGFXXI e rede dos médicos internos da especialidade da Região Centro. Os inquiridos foram devidamente informados sobre as finalidades da investigação, bem como sobre a garantia de anonimato, sendo obrigatória a digitalização da aceitação do consentimento informado para a continuação do preenchimento.
A recolha dos dados foi realizada nos meses de junho e julho de 2021, tendo sido efetuados dois recordatórios.
Análise estatística
A análise descritiva das variáveis examinadas fez-se verificando as suas médias, desvios-padrão e frequências absolutas e relativas.
Na adaptação cultural aplicou-se o teste alfa de Cronbach, bem como o teste F e o Coeficiente de Correlação Intraclasse. Na análise inferencial em função das variáveis (género, condição de interno de especialidade e escalão etário) sobre as pontuações obtidas foram utilizados os testes não paramétricos - Mann-Whitney (género e internato) e Kruskal-Wallis (escalões etários). Em todos os testes foi utilizado o nível de significância de p≤0,01 por definição da equipa autoral.
Para o Grupo 7 fez-se o exercício de inverter as pontuações originais (recolhidas em escala de insatisfação) para mais fácil comparabilidade, ou seja, em escalas iguais e com o mesmo sentido; transformou-se o quatro em um, o três em dois, o dois em três e o um em quatro.
A análise estatística foi realizada com o programa informático de análise estatística IBM SPSS statistics 27.
Foi calculado o tamanho da amostra para o número total de médicos a partir das estimativas realistas do Colégio da Especialidade de MGF da Ordem dos Médicos e da Direção Nacional da APMGF, situando o número de médicos em 5.500, com uma margem de erro de 5% e um intervalo de confiança de 90%, utilizando-se a metodologia disponível em http://www.raosoft.com/samplesize.html. O tamanho da amostra foi calculado como n=258.
Indicador de satisfação
Foi adotado um procedimento de normalização das pontuações e usada a técnica da média ponderada para agregar num indicador o nível de satisfação de cada inquirido quanto ao exercício da profissão. Este indicador traduz a autoavaliação de caráter global que cada médico faz dos vários fatores em função das suas respostas aos vários grupos, assumindo que todos contam na avaliação do exercício da profissão, podendo a importância (peso) de cada família de fatores ser distinta. No cálculo do índice, de modo a obterem-se valores numa escala adimensional 0-1 (ou 0-100%) normalizou-se a escala original comum 1-4 para aquele intervalo. Nos fatores de satisfação, o valor quatro corresponde a 100%, enquanto nos fatores de insatisfação (grupo G7) se inverteu a mesma de modo que o valor mais favorável (menor insatisfação), que era o inicial da escala original (1), correspondesse a 100%.
Para normalizar as pontuações (colocá-las todas na mesma escala de satisfação), se o fator era de satisfação dividia-se a diferença entre a pontuação e o valor mínimo da respetiva escala pela amplitude da escala; se o fator fosse de insatisfação dividia-se a diferença entre o máximo da escala e a pontuação pela amplitude da escala, invertendo-se assim também o sentido da escala. Neste caso, para as escalas originais usadas em todos os fatores o valor mínimo era um e o máximo quatro.
Esta técnica de normalização permitiu obter para cada inquérito um valor agregado de todas as suas pontuações através de uma função de síntese (a média ponderada) que, reunindo as pontuações de todos os fatores afetadas das respetivas importâncias (pesos), traduziu o valor da satisfação de cada inquirido. Tendo os pesos sido recolhidos numa escala de dez valores discretos (1-10), estes também foram normalizados para a escala 0-100% para que a sua soma totalizasse 100% (para o que se realizou a divisão de cada peso pela soma de todos os pesos do inquérito). Assim, os pesos representaram (em percentagem) a importância relativa que cada inquirido deu a cada grupo de fatores.
Considerações éticas
Foram obtidos pareceres positivos da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Centro e das Direções da Associação Portuguesa de Médicos de Medicina Geral e Familiar e do Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos. Foram obtidas as necessárias autorizações dos autores para a utilização de material já publicado.
Resultados
Na fase de adaptação e validação, o teste alfa e Cronbach revelou um valor de 0,755, o teste F um valor de p<0,001 e o coeficiente de correlação intra-classe o de 0,465.
Amostra
Foram obtidos 343 questionários, frequência de 6,2% completamente preenchidos, sendo 105 (30,6%) de internos da especialidade e, destes, 79 eram do género feminino (75,2%). Por escalão etário, o mais representado foi o dos 31-40 anos com n=140 (40,8%), seguindo-se o de idade ≤30 anos com n=82 (23,9%) e o de idades entre 41 e 50 anos com n=53 (15,5%). Não se verificou diferença significativa em função do género quanto a ser interno de especialidade ou especialista (p=0,103, U de Mann-Whitney) e quanto ao grupo etário verificou-se diferença na distribuição por género (p=0,001, Kruskal-Wallis), mais representado o feminino nos grupos etários até aos 60 anos - Tabela 2.
Pontuações para os fatores
Analisando a distribuição das pontuações obtidas para os fatores de avaliação observou-se que nos grupos G1 a G5 (a maior parte dos fatores de satisfação) e no G7 (insatisfação) a maior frequência de respostas foi «Concordo» e «Concordo totalmente» - Tabela 3. No grupo G6 (fatores de satisfação relativos a equilíbrio pessoal) observam-se mais respostas com a avaliação 2 (Discordo), para as questões G6.2 a G6.4 (reconhecimento da sociedade, da comunidade médica e por parte da administração) e também respostas de avaliação 1 (Discordo totalmente) nas questões G6.4 e G6.5 (salário adequado). Ou seja, para o grupo G6 as pontuações mais frequentes baixam para o nível 2, exceto na questão G6.1 (segurança no emprego).
Quanto às médias agregadas das pontuações por grupos de respostas verificaram-se três níveis de valores (em escala de satisfação): grupos G1-G5 (3,32 a 3,72), G6 (2,13) e G7 (1,64) - Figura 1. Nos seis grupos de fatores de satisfação (G1 a G6), o valor médio global foi de 3,29, sendo a média mais baixa a do grupo G6 - «Fatores p/ equilíbrio pessoal» - com 2,13. A média agregada das pontuações do subconjunto de grupos G1-G5 (3,52) é superior em 1,39 à média das pontuações de G6.
No grupo G7 - «Fatores de insatisfação» -, a média das pontuações é de 3,36 na escala de insatisfação, sendo média global elevada e correspondendo a 1,64 em escala inversa e comparável (Figura 1).
Quanto às médias individuais das pontuações para cada um dos 30 fatores, já com as pontuações do Grupo G7 em escala de satisfação, observou-se que:
O valor máximo nos fatores de satisfação (3,83) foi atribuído a «Ver quem o procura como uma pessoa e não só como um “doente”»;
O valor mínimo nos fatores de satisfação (1,74) foi atribuído a «Sente que a MGF tem o devido reconhecimento por parte da administração (pública ou privada)», seguido de «Sente que a MGF tem salário adequado ao esforço que realiza e ao que produz» (1,76);
O valor máximo (quanto maior melhor) nos fatores de insatisfação foi atribuído a «A empatia é algo muito difícil de conseguir por fatores externos a si» (2,64) e o valor mínimo foi para «A carga de trabalho burocrático é demasiada» (1,14), seguido de «O volume de trabalho clínico é muito elevado» (1,31) e de «A pressão mental é excessiva» (1,49).
Segundo a Tabela 4, a utilização dos testes não-paramétricos U de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis verificou diferenças significativas por género para «Ver quem o procura como uma pessoa e não só como um “doente”» (p=0,007) e «Perceber a influência do contexto nos problemas da pessoa» (p=0,004). Por condição de interno/especialista: «Segurança profissional (estabilidade do emprego)» (p<0,001) e, por grupo etário, para «Segurança profissional (estabilidade do emprego)» (p<0,001), «O devido reconhecimento da sociedade» (p<0,001), «O devido reconhecimento da comunidade médica» (p=0,003), «O devido reconhecimento por parte da administração (pública ou privada)» (p<0,001), «Salário adequado ao esforço que realiza e ao que produz» (p<0,001), «A pressão mental é excessiva» (p=0,010) e «A carga de trabalho burocrático é demasiada» (p=0,001).
Indicador de satisfação
O peso atribuído a cada Grupo de fatores, de 1 a 10 em escala numérica, foi avaliado pela pergunta Importância de cada um dos grupos acima para uma avaliação do exercício da profissão: a importância que atribuiria a cada grupo de aspetos anteriores numa avaliação global do exercício da profissão e revelou os resultados constantes da Tabela 5, em que se verifica que os valores mais baixos são atribuídos a «Fatores de insatisfação», «Ensinar e aprender», «Competências especiais requeridas» e «Fatores p/ equilíbrio pessoal», por ordem ascendente.
Existindo 2.401 valores de pesos recolhidos (343 inquiridos × 7 grupos), o peso 10 é o mais atribuído no geral (1.059 vezes, 44,11%), cabendo a frequência absoluta máxima ao grupo G4 - Relações médico-paciente - em 206 dos 343 questionários. O peso 9 é o segundo mais atribuído (619 vezes, 25,78%). Os pesos 9 e 10 em conjunto representam 69,89% do total, totalizando os pesos 8, 9, 10, em conjunto, 87,30% das atribuições.
O género feminino deu significativamente maior peso aos grupos G1 - Médico MGF como pessoa (p<0,001), G2 - Competências especiais requeridas (p=0,002); G3 - Organização do trabalho (p=0,001) e G6 - Fatores p/ equilíbrio pessoal (p=0,005). Verificou-se também ser significativamente diferente a resposta segundo o grupo etário para os Grupos 3 - Organização do trabalho (p=0,004) e 6 - Fatores p/ equilíbrio pessoal (p=0,007), os mais jovens pontuando mais intensamente. Em função de ser interno ou especialista não se identificaram diferenças.
O indicador de satisfação para todos os 343 casos teve uma média de 68,9% ± 11,0%, com um mínimo de 32,0%, um máximo de 92,1% e uma mediana de 69,7%. Por género não se verificaram diferenças significativas (p=0,442), sendo em média de 68,1% ± 12,0% e de 69,2% ± 10,5%, respetivamente, para o homem e a mulher. Por lugar na carreira, o interno de especialidade teve uma média de 68,9% ± 10,6% e o especialista de 69,8% ± 11,1% (p=0,945). Por grupos etários verificou-se não haver diferença significativa (p=0,011), sendo o índice de valor mais elevado nos grupos etários mais idosos (Tabela 6).
Discussão
Era objetivo deste trabalho conhecer a avaliação do exercício de fatores associados à satisfação com a profissão por médicos de MGF, considerando aspetos vários de satisfação e de insatisfação, nomeadamente questões da esfera pessoal, competências especiais requeridas, organização do trabalho, relações médico-paciente, ensino e aprendizagem, equilíbrio pessoal e fatores de insatisfação.
Quanto aos fatores de satisfação verificou-se ser a MGF gratificante do ponto de vista pessoal, com boa autossatisfação traduzida pelas médias dos grupos G1 a G5 (entre 3,31 e 3,72 na escala 1-4). Contudo, obtiveram-se respostas com pontuações baixas (média global de 2,13) no que respeita ao grupo G6 - Fatores p/ equilíbrio pessoal -, tendo sido identificados com valores negativos nesse grupo quatro fatores, que se enumeram do mais para o menos penalizante, como:
Reconhecimento por parte da administração pública ou privada (G6.4)
Salário adequado ao esforço que realiza e ao que produz (G6.5)
O devido reconhecimento da sociedade (G6.2)
O devido reconhecimento da comunidade médica (G6.3)
Constata-se também estarem os fatores pessoais de satisfação (grupos G1 a G5) bastante longe das pontuações médias do grupo G7 de fatores de insatisfação (3,52 e 1,64, respetivamente, numa escala 1 a 4).
No que respeita à segurança profissional/estabilidade do emprego (G6.1), os internos revelam resultados diferentes dos especialistas (pontuações médias de G6.1: internos=2,85, especialistas=3,31, p<0,001), não parecendo os internos ver a MGF como potenciador de estabilidade laboral, talvez por haver dificuldade crescente em conseguirem uma vaga no local pretendido, os concursos serem irregulares, levando cada vez mais profissionais a optar pelo trabalho no sistema privado, com todas as incertezas e remuneração e ainda pelas condições estruturais de trabalho, que serão diferentes entre unidades formadoras em MGF face às não formadoras.
Atendendo às respostas obtidas para as questões G2.2 («Ver quem o procura como uma pessoa» e «Perceber a influência do contexto nos problemas da pessoa») parece haver uma significativa preocupação das mulheres em ver o doente como uma pessoa e perceber o seu contexto. Levanta-se, como hipótese, uma maior valorização pela mulher da questão relacional humana do trabalho e a sensação de maior ligação ao sentido de missão que a MGF acarreta. Na literatura é reconhecido estarem as mulheres médicas de MGF mais sensibilizadas à procura de entendimento com o doente.22 A mulher MGF parece dar maior importância à especialidade, atribuindo valores mais elevados aos pesos associados a diversas famílias de fatores (média geral superior à dos homens em 0,30 pontos na escala 1-10), sendo essa diferença mais notória nos grupos «Médico MGF como pessoa» (G1), «Competências especiais requeridas» (G2), «Organização do trabalho» (G3), «Ensinar e aprender» (G5) e «Fatores p/ equilíbrio pessoal» (G6).
Quanto aos fatores de insatisfação (G7), os resultados obtidos revelam médias elevadas, traduzidas nas pontuações obtidas (média de 3,36 na escala de insatisfação 1-4, equivalente a média de 1,64 em escala de satisfação 1-4). Os aspetos deste grupo com que os inquiridos se mostraram mais insatisfeitos (enumerados do mais para o menos penalizante), endereçam os seguintes fatores (Figura 1):
Carga de trabalho burocrático (G7.6)
Volume de trabalho clínico (G7.1)
Pressão mental excessiva (G7.2)
Gestão de muitas situações com complexidade elevada (G7.3)
Necessidade de corresponder às expectativas dos casos por fatores externos a si (G7.4)
A carga excessiva de trabalho burocrático (G7.6) é vista como ligeiramente menor a partir dos 50 anos, devendo agora este aspeto ser estudado.
Dados de estudos portugueses anteriores, seja restritos ao nível regional9 seja ao nível do centro de saúde,12 confirmam existirem diversos fatores associados a uma maior insatisfação profissional, como: horas de trabalho excessivas,9 vencimento,9,12 falta de reconhecimento pela sua dedicação ao trabalho;9 estes aspetos estão em consonância com o presente estudo (e.g., os fatores G7.1 e G7.6, G6.5 e G6.4). De modo semelhante, estudos realizados noutros países concluem serem muito importantes para a insatisfação profissional as questões de falta de reconhecimento pela dedicação ao trabalho e a insuficiência da remuneração salarial. 23
Para o presente estudo foi proposto e calculado um índice de satisfação individual (0-100%) baseado numa média ponderada das respetivas pontuações. Verifica-se que os médicos de MGF ao valorizarem os grupos de fatores apresentados com valores elevados dos pesos (a média destes é de 8,91 na escala 1-10, totalizando 87,30% o conjunto dos valores 8, 9 e 10) consideram-nas todas, em geral, muito importantes para a avaliação do exercício da profissão (e que o questionário terá sido bem estruturado, pois não se pode dizer que algum grupo de questões tenha sido considerado despiciendo para fins de uma avaliação holística).
Para o índice de satisfação individual obteve-se um valor médio global de 68,9%. Verificou-se um valor um pouco superior para o género feminino (69,2%). O escalão etário 50-60 anos apresentou a média mais elevada (74,9%), talvez por pertencerem a uma geração que participou em reformas do Sistema de Saúde Português (classificado pela Organização Mundial da Saúde, em 2000, como o 12.o melhor entre 191 países) e dos cuidados de saúde primários24 e, por isso, se sintam mais motivados. Internos de especialidade e especialistas em MGF não diferiram entre si e ficaram na média global encontrada.
O índice de satisfação agora verificado implica o estudo de intervenções nas condições do exercício da profissão, com posterior reaplicação deste instrumento para conhecimento da efetividade destas intervenções.
Vários estudos têm constatado diversos motivos de insatisfação e de satisfação associados ao exercício da MGF, mas realizados em contextos regionais9 ou de internato da especialidade10 e com resultados concordantes com os do presente estudo. Também a nível internacional outros estudos apuraram resultados semelhantes. 3,7
Na Europa, e segundo Le Floch, 2 foram encontrados fatores positivos comuns para a satisfação dos médicos de MGF na prática clínica, como a importância da relação médico-paciente, as atividades de ensino e aprendizagem, a prática do ensino clínico na educação médica inicial, o forte apoio social das escolas, as ati-vidades de lazer, a qualidade de vida satisfatória no ambiente residencial e, claro, a importância de um rendimento adequado à sua pesada carga de trabalho. Segundo estudos da OCDE, 21 em vários países, desde 2010, a remuneração das outras especialidades aumentou mais rapidamente do que a de MGF, aumentando assim a diferença de salários, sendo este um forte motivo de penalização da satisfação, constatado também na presente investigação. Os resultados referem ainda uma ligação da satisfação dos médicos de família às relações humanas, competências específicas, relação com pacientes e comunidade social.
Os estudos citados referem, em geral, com base em inquéritos, componentes de satisfação e/ou de insatisfação no exercício da profissão. A informação recolhida cinge-se aos aspetos parciais de cada investigação. Destacam-se Le Floch e colaboradores, 2 que apresentam a investigação mais abrangente, mas destinada essencialmente a identificar um vasto conjunto de fatores de satisfação, servindo-se de um inquérito feito em vários países (não chegaram a construir um inquérito com tais fatores para recolha e análise de dados).
No presente estudo foram identificados fatores quer de satisfação (inspirados no trabalho de Le Floch e colaboradores) 2 quer de insatisfação. Uma inovação introduzida foi uma metodologia para cálculo de um índice de satisfação individual a partir dos dados de cada inquérito. O conhecimento assim gerado, assente nos resultados descritos e analisados a partir das respostas individuais, permite perceber a avaliação que os médicos de MGF fazem do exercício da sua atividade profissional, identificando as vertentes de intervenção, de modo a melhorar a satisfação com o exercício da profissão evitando constrangimentos individuais.
Estes resultados de um estudo exploratório devem ser cuidadosamente lidos por eventuais viéses de resposta da amostra, pois esta não é aleatória, podendo estar sobrerepresentados os limites da satisfação e da insatisfação. E, em simultâneo, a época de realização coincidente com a pandemia COVID-19. No entanto, julga-se haver interesse na criação de uma métrica que permita a avaliação de intervenções a realizar para a eventual melhoria.
Será interessante o estudo esta temática por áreas geográficas do país e tipo de unidade de trabalho, revendo os resultados após as intervenções julgadas necessárias.
A antiga Lei de Bases da Saúde (Lei n.o 48/90, de 24 de agosto) preconizava a recolha de informação sobre o nível de satisfação dos profissionais (Capítulo III - Base XXX) como um critério de avaliação periódica do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Revogada pela Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, esta refere no seu Anexo - Base 22 (Organização e funcionamento do Serviço Nacional de Saúde): o funcionamento do SNS sustenta-se numa força de trabalho planeada e organizada … devendo ser garantidas condições e ambientes de trabalho promotores de satisfação e desenvolvimento profissionais e da conciliação da vida profissional, pessoal e familiar. O instrumento aqui proposto, que leva ao cálculo de um índice de satisfação, poderia tornar-se útil neste contexto.
Conclusão
Foi possível construir, validar e aplicar um instrumento complexo de avaliação da satisfação com prática da MGF.
Para os fatores de satisfação, o grupo das questões relativas a Fatores para equilíbrio pessoal apresenta as pontuações mais baixas, tendo a questão Segurança profissional (estabilidade do emprego) uma pontuação mais elevada, revelando que apenas essa segurança contribui para o equilíbrio pessoal.
Os médicos internos de especialidade não pensam a MGF como potenciador de estabilidade laboral.
O equilíbrio pessoal parece aumentar com a idade.
Os maiores de 50 anos consideram a carga burocrática como ligeiramente menor.
As mulheres médicas demonstram níveis de satisfação superiores, em média, para todos os grupos de questões, demonstrando maior preocupação em ver o doente como uma pessoa e perceber o seu contexto.
O índice de satisfação, na escala 0-100%, obteve valor médio de 68,9%, sendo mais elevado no género feminino (69,2%) que no masculino (68,1%). Por escalão etário, o índice de satisfação é mais elevado no escalão 51-60 anos (74,9%) e mais baixo no escalão 31-40 anos (67,1%). Os médicos internos de especialidade notam-no em 68,9%.
Quanto às importâncias relativas dos fatores aqui considerados, traduzidas por pesos, os grupos de fatores foram considerados, em geral, muito importantes com média de 8,91 pontos na escala 1-10.
Assim, o médico de MGF parece gostar do que faz, mas não encontra na profissão o equilíbrio pessoal que desejaria, identificando fatores fortes de insatisfação, como a carga de trabalho burocrático, o volume de trabalho clínico, a pressão mental excessiva, a gestão de muitas tarefas complexas, o salário inadequado ao esforço despendido, a falta de reconhecimento do seu trabalho pela administração pública ou privada, sociedade e as outras especialidades.
Estando o diagnóstico feito, resta agora perceber o porquê do estado das coisas.
Contributo dos autores
Conceptualização, TJC e LMS; metodologia, TJC, IRS e LMS; software, TJC; validação, TJC, IRS e LMS; análise formal, TJC, IRS e LMS; investigação, TJC, IRS e LMS; gestão de dados, TJC, IRS e LMS; redação do draft original, TJC, IRS e LMS; revisão e validação do texto final, TJC, NJ, IRS e LMS; visualização, TJC, NJ, IRS e LMS; supervisão, IRS e LMS; administração do projeto, TJC, NJ, IRS e LMS. Aquisição de financiamento: trabalho integralmente realizado com fundos dos autores.