Introdução
As doenças respiratórias crónicas, como a asma, a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) e a síndroma de apneia obstrutiva do sono (SAOS), constituem das principais causas de morbilidade e mortalidade em Portugal.1
Segundo o Programa Nacional para as Doenças Respiratórias estima-se que a prevalência de SAOS nos adultos se aproxime de 20%.2 Nesta patologia ocorrem episódios de apneias e hipopneias, secundários ao colapso da via aérea superior durante o sono, comprometendo a saúde e qualidade de vida dos doentes. (3
A ventiloterapia por pressão positiva domiciliária (continuous positive airway pressure - CPAP) constitui o tratamento de eleição da SAOS. (3-4 Trata-se de uma terapêutica com eficácia comprovada na reversão das alterações neuropsicológicas e cardiovasculares da doença e, portanto, com impacto importante na melhoria da qualidade de vida dos doentes. (3
Os doentes com SAOS sob ventiloterapia necessitam de acompanhamento médico regular para monitorização da eficácia e adesão à terapêutica. (5 Sabe-se também que quando estabilizados, após alta da consulta específica de patologia do sono, estes doentes devem manter o seguimento em contexto de cuidados de saúde primários (CSP), (6 estando recomendada uma consulta de monitorização de periodicidade, no mínimo, anual. (4-5
Assim, a Direção-Geral da Saúde (DGS) recomenda que em consultas de seguimento de SAOS nos CSP seja feita avaliação clínica dos doentes, com apoio de relatório de ventiloterapia emitido pela empresa fornecedora de cuidados respiratórios domiciliários (CRD). (4 Desta forma, o médico de família deve voltar a referenciar para centros especializados em medicina do sono os casos em que se verifique terapêutica inadequada/ineficaz (e.g., hipersonolência diurna, não adesão à terapêutica, efeitos secundários de difícil correção, entre outros). (4,6
Apesar de a SAOS ser uma problemática frequente nos CSP, ainda existem algumas dificuldades na gestão destes doentes, como: lacunas de conhecimento científico, dificuldades na orientação de problemas relacionados com a terapêutica e desinformação dos utentes relativamente à sua doença. (7-8 Acresce também o facto de que nem sempre os fornecedores de CRD oferecem o acompanhamento regular dos seus utentes. (7
Para além disso, com o início da pandemia COVID-19, as atividades desempenhadas pelos médicos sofreram alterações que podem ter afetado o seguimento de doentes com patologias crónicas, como a SAOS. (9
Neste sentido, na Unidade de Saúde Familiar (USF) em estudo constatou-se que o seguimento de doentes com SAOS estaria a ser deficitário. A equipa identificou a necessidade de intervenção no sentido de melhorar a qualidade do seguimento de doentes com SAOS na USF, tendo sido criadas estratégias para implementar um ciclo de melhoria da qualidade.
O presente estudo pretende avaliar a eficácia das estratégias definidas para melhorar o seguimento, na USF, de doentes com SAOS sob ventiloterapia e sem acompanhamento em consulta específica hospitalar, através da realização de consulta de monitorização clínica e interpretação de relatório de ventiloterapia.
Métodos
Desenvolveu-se um estudo quasi-experimental, com avaliação pré e pós intervenção.
Definiu-se como outcome principal a melhoria do seguimento de doentes com SAOS sob ventiloterapia e sem acompanhamento em consulta específica hospitalar na USF em estudo, através da realização de consulta de monitorização clínica e interpretação de relatório de ventiloterapia. Definiu-se como outcome secundário o número de referenciações hospitalares por terapêutica ineficaz/baixa adesão realizadas após a intervenção.
Após discussão em reunião médica foram estabelecidas como metas: uma taxa de consultas de seguimento de pelo menos 20%, bem como uma taxa de interpretação de relatórios de ventiloterapia igual ou superior a 20%.
Considerou-se que foi realizada consulta de seguimento/monitorização clínica de SAOS sempre que verificado e cumprido integralmente o registo informático de consulta (Figura 1). Considerou-se interpretação de relatório de ventiloterapia sempre que verificado registo, em processo informático, dos parâmetros de adesão e eficácia do relatório. Assim, a avaliação dos outcomes do estudo foi feita através da análise do registo informático de consulta (de acordo com o seguimento preconizado pela DGS, norma de orientação clínica n.º 022/2014, atualizada em 20164 e sistematizado na Figura 1), registo informático de interpretação de relatório de ventiloterapia e referenciações hospitalares.
A partir do software MIM@UF® obteve-se a listagem de utentes que, em 2019, tinham diagnóstico de perturbação do sono (P06, de acordo com o sistema de classificação ICPC-2). Através da consulta de registos clínicos, com recurso aos programas SClínico® e PEM®, selecionaram-se os doentes com SAOS sob ventiloterapia e sem seguimento atual em consulta hospitalar por apneia do sono.
Foram incluídos os doentes com idade igual ou superior a 18 anos, com o diagnóstico de perturbação do sono (P06, de acordo com o sistema de classificação ICPC-2), com SAOS, sob ventiloterapia.
Foram excluídos utentes com diagnóstico de perturbação do sono (P06, de acordo com o sistema de classificação ICPC-2) por patologias como insónia, sonambulismo ou qualquer outra perturbação do sono que não seja apneia do sono. Foram ainda excluídos os utentes seguidos em consulta anual de patologia do sono.
Foi criado um documento modelo para auxiliar os utentes na solicitação de relatório de ventiloterapia à empresa fornecedora de CRD. Este documento foi entregue pela equipa multiprofissional da USF em contexto de consulta presencial, contacto não presencial (em papel ou via e-mail), pedido/entrega de guias de tratamento ou deslocação à USF por outros motivos.
Para além do documento referido, aquando do desenho do estudo foi criado também um guião para seguimento de utentes com SAOS nos CSP; um folheto informativo para entregar aos utentes e um recordatório sobre o seguimento dos doentes com SAOS para cada gabinete clínico para apoio da equipa médica.
Todos os documentos enumerados anteriormente, bem como os documentos de apoio intitulados Formulário de seguimento de utentes com SAOS (anexo III da norma de orientação clínica já referida) (4 e questionário Epworth, (10 ficaram acessíveis em formato digital em pasta informática partilhada com todos os profissionais da USF.
Foi ainda desenvolvido um procedimento de atuação para otimizar o pedido e receção de relatórios por parte da equipa administrativa. Definiu-se que em todos os contactos presenciais do utente para pedido/entrega de guias de tratamento referentes a ventiloterapia era também entregue pela equipa administrativa o Documento Modelo para Solicitação de Relatório de Ventiloterapia e um folheto informativo sobre SAOS. Nas situações em que a guia de ventiloterapia foi enviada de forma desmaterializada estipulou-se a realização do pedido de relatório por correio eletrónico. Aquando da receção dos relatórios, a equipa administrativa procedia ao agendamento de contacto não presencial para registo pelo médico no processo do doente e posterior arquivo no dossier Apneia do Sono, criado para o efeito e disponível no secretariado clínico da USF.
Foram ainda realizadas sessões formativas dirigidas a toda a equipa multiprofissional da USF, que consistiram na apresentação sucinta de evidência atual sobre a temática e implementação de medidas corretivas e educacionais, perfazendo uma carga horária total de cerca de 120 minutos.
Estudou-se a variável qualitativa sexo e as variáveis quantitativas idade, número de relatórios interpretados, número de consultas de seguimento realizadas e número de referenciações hospitalares efetuadas por terapêutica ineficaz. A variação dos relatórios interpretados e consultas realizadas foi avaliada tendo em conta as suas frequências relativas em cada um dos períodos estudados.
Numa primeira avaliação, correspondente ao período compreendido entre janeiro e dezembro/2019 (fase pré-intervenção) foram interpretados dez relatórios de ventiloterapia, não se tendo verificado a realização de consultas de seguimento de utentes com SAOS (Figura 1). Reconheceu-se, por isso, necessidade de intervenção no sentido de melhorar a qualidade do seguimento de doentes com SAOS na USF.
A segunda avaliação correspondeu ao período compreendido entre janeiro e dezembro/2021, durante o qual foi monitorizado e incentivado o cumprimento das estratégias de melhoria. Neste período, as consultas de seguimento de SAOS (com avaliação clínica dos doentes e integração dos resultados do relatório - Figura 1) foram realizadas de forma programada ou de forma oportunista em contexto de consultas previamente agendadas por outros motivos (e.g., consulta de vigilância de diabetes mellitus ou hipertensão arterial).
Para garantir a confidencialidade e anonimato dos utentes, a recolha dos dados foi realizada por médicos da USF não pertencentes à equipa de investigação. Foi criada uma base de dados em ficheiro Microsoft Excel® para registo de interpretação de relatório, realização de consulta e referenciações hospitalares. Cada utente teve a atribuição de um código, garantindo-se a confidencialidade. Assegurou-se, assim, que os investigadores apenas tiveram acesso a dados anonimizados. Os resultados foram apresentados na USF sem utilização de elementos identificativos dos utentes.
O protocolo do estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Centro e ratificado pelo Coordenador da USF em estudo.
O estudo não implicou qualquer custo para o ACeS, não interferiu com o funcionamento regular da unidade nem prejudicou a qualidade dos serviços prestados.
Resultados
Em dezembro/2019, a USF em estudo tinha 578 utentes com o diagnóstico de perturbação do sono, sendo que 247 apresentavam apneia do sono sob CPAP. Destes, 212 doentes cumpriam os critérios de inclusão, a maioria era do sexo masculino (n=162; 76,89%), com uma média de idades de 62,29 anos.
Tanto em 2019 como em 2021 foi utilizada a mesma população de utentes, não tendo havido alteração no número total de doentes a incluir (e.g., por falecimento, alteração de Unidade de Saúde Familiar, entre outros). Contudo, não foi feita atualização da listagem de utentes com alta de consulta hospitalar e que, portanto, poderão ter passado a carecer de acompanhamento nos CSP.
Na primeira avaliação, fase pré-intervenção, correspondente ao ano de 2019, foram interpretados dez relatórios de ventiloterapia (4,72%) na USF (Tabela 1). Nesta fase não se verificou a realização de consultas de seguimento de doentes com apneia do sono, conforme preconizado, nem foram feitas referenciações hospitalares por terapêutica ineficaz/baixa adesão.
Em 2021 foi obtida, na USF, uma taxa de interpretação de relatórios de ventiloterapia de 25,47% (n=54) e uma taxa de consultas de seguimento de 15,09% (n=32) (Tabela 1). Neste período foram ainda realizadas cinco referenciações hospitalares para nova avaliação de SAOS em consulta específica de cuidados de saúde secundários (CSS).
Assim, em 2021 conseguiram-se atingir resultados superiores ao estabelecido como meta no que se refere à interpretação de relatórios de ventiloterapia e verificou-se a realização de referenciações hospitalares por terapêutica inadequada. A meta definida para consultas de seguimento de doentes com SAOS na USF, em 2021, não foi atingida.
Discussão
A SAOS afeta preferencialmente indivíduos do sexo masculino e de meia-idade, (3 algo que parece ir ao encontro dos resultados obtidos na presente investigação.
Na USF em estudo foram analisadas as variáveis sexo, idade, número de relatórios interpretados, número de consultas de seguimento realizadas e número de referenciações hospitalares efetuadas por terapêutica ineficaz, constatando-se que o seguimento de doentes com SAOS sob ventiloterapia se encontrava deficitário.
Em 2019 não se verificou seguimento adequado destes doentes na unidade. De facto, a literatura indica que a SAOS é uma patologia comummente encontrada na prática clínica em medicina geral e familiar, mas nem sempre os médicos de família se encontram familiarizados com o seu adequado seguimento. (8
Em 2021 conseguiram-se atingir resultados superiores ao estabelecido como meta no que se refere à interpretação de relatórios de ventiloterapia. O reconhecimento do problema pela equipa multiprofissional da USF, bem como o recurso a medidas de fácil implementação, parece, assim, ter contribuído para os resultados obtidos.
Contudo, em 2021, a meta definida para consultas de seguimento de doentes com SAOS na USF não foi atingida, algo que em parte poderá ser justificado pelo contexto de pandemia COVID-19 e pelas barreiras por ela trazidas. Apesar disso, as estratégias utilizadas foram sendo adaptadas à realidade da USF, verificando-se o envolvimento de toda a equipa multiprofissional.
Neste sentido, muitas consultas de seguimento foram frequentemente realizadas no decurso de consultas programadas para acompanhamento de outras patologias, evitando a hiperutilização de cuidados de saúde e duplicação de vindas à USF por parte dos utentes. De acordo com a literatura sabe-se que as comorbilidades mais frequentes nos doentes com SAOS são a obesidade, a hipertensão arterial e a diabetes mellitus, (3 pelo que frequentemente os utentes foram avaliados na USF aquando de consultas programadas para vigilância destas patologias.
Apesar de não ter sido atingida a meta proposta para consultas de seguimento, a referenciação hospitalar de utentes com terapêutica inadequada durante o ano de 2021 poderá traduzir-se numa melhoria da qualidade de prescrição de CRD e, consequentemente, em ganhos de saúde para estes utentes. Em Portugal, um dos objetivos do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias passa pela melhoria da qualidade da prescrição e da utilização de CRD. (11 Assim, com o presente estudo, de um modo progressivo, o pedido de relatórios de ventiloterapia e seu registo no processo clínico foi sendo incrementado como rotina na USF, contribuindo para a eventual melhoria dos cuidados prestados.
O facto de serem utilizadas todas as oportunidades de contacto com o doente para a sensibilização da necessidade de seguimento desta patologia, bem como a explicação das implicações da SAOS no controlo de comorbilidades associadas, poderá ter contribuído também para a educação para a saúde dos utentes.
Na verdade, poder-se-ão encontrar novas estratégias e caminhos para o seguimento destes doentes nos CSP. Nos últimos anos têm surgido novas formas de prestação de cuidados, como consultas médicas à distância. (9 O desenvolvimento tecnológico e o surgimento de software que permite acompanhar o tratamento dos doentes de forma não presencial, tanto pelos médicos como pelas empresas de CRD, poderá ser uma mais-valia no seguimento destes utentes. (9
A SAOS parece ser uma condição clínica ainda subdiagnosticada na população portuguesa. (3 Para além disso, uma vez diagnosticada, nem sempre os médicos conhecem o seu adequado seguimento. Assim, para atenuação desta problemática, poderia ser pertinente estreitar relações entre equipas hospitalares e CSP, abrindo portas para a melhoria dos cuidados prestados e melhor qualidade das referenciações para consulta específica de patologia do sono.7 Revela-se também importante a educação e sensibilização dos doentes para a importância da gestão da sua patologia. (7
Como limitação principal do presente estudo destaca-se a diferente acessibilidade e utilização dos cuidados de saúde por parte dos doentes do grupo estudado. Identifica-se também o período temporal em que este decorreu, dado que o contexto de pandemia poderá ter condicionado a procura de cuidados de saúde por parte dos utentes, bem como o tempo dedicado ao seguimento de patologias crónicas na USF, pela alocação de recursos ao combate da pandemia. Tentou-se colmatar estas limitações utilizando todas as oportunidades de contacto do doente com a USF para seguimento da patologia.
Para além disso, no decurso da implementação do estudo, a USF sofreu uma reorganização da sua equipa médica, facto que poderá ter condicionado os resultados obtidos, mas que se tentou ultrapassar através da realização de sessões formativas e colocação de material auxiliar de memória em cada gabinete.
Os registos clínicos constituem igualmente uma limitação ao estudo, dado que a sua carência dificulta a obtenção de informação, como a entrega de relatório de ventiloterapia, a adequação à terapêutica, a existência de sintomatologia, entre outras. A criação de um esquema de registo informático de consulta de seguimento de doentes com SAOS (Figura 1) ajudou a colmatar esta limitação.
Com o presente estudo identifica-se ainda a necessidade de atualização periódica da listagem de utentes com SAOS, com alta de consulta hospitalar e que, portanto, passam a carecer de acompanhamento nos CSP.
Por fim, a aplicação das estratégias numa única unidade limita a generalização dos resultados. Contudo, as estratégias utilizadas, pela sua simplicidade, poderão ser facilmente reproduzidas noutras unidades de saúde.
Conclusão
Com o presente estudo conseguiram-se atingir resultados superiores ao estabelecido como meta no que se refere à interpretação de relatórios de ventiloterapia.
Apesar da meta definida para consultas de seguimento de doentes com SAOS não ter sido atingida, o estudo promoveu a nova referenciação hospitalar de utentes com terapêutica inadequada e a implementação de uma estratégia de seguimento na USF, contribuindo para a melhoria dos cuidados prestados.
A utilização de metodologia simples e o envolvimento de toda a equipa multiprofissional da USF ajudou na otimização do seguimento de doentes com SAOS sob CPAP e poderá ter contribuído para a prevenção de acidentes e intercorrências relacionadas com terapêutica ineficaz ou inadequada, através da nova referenciação para consulta hospitalar de alguns doentes.
Com este estudo descrevem-se, assim, estratégias que poderão ser facilmente reproduzidas noutras unidades de saúde e que, portanto, poderão auxiliar as equipas de família no acompanhamento longitudinal e continuado dos seus doentes, numa perspetiva de promoção da saúde e prevenção da doença, maximizando os ganhos em saúde para o utente.
No futuro poder-se-á ainda pensar em novos caminhos para o seguimento destes utentes nos CSP, como a utilização de consulta não presencial, o desenvolvimento de software informático ou mesmo a criação de um processo assistencial integrado (PAI).
Contributo dos autores
Conceptualização, AA e SR; metodologia, AA, SR, CS e CSC; análise formal, AA e CSC; investigação, AA, BNG, AMS, TP, SR, CS e CSC; recursos, AA, BNG, AMS, TP e SR; redação do draft original, AA; revisão, validação e edição do texto final, AA, BNG, AMS, TP, SR, CS e CSC; visualização, AA; supervisão, CS e CSC; administração do projeto, AA e SR.