Introdução
A osteoporose (OP) caracteriza-se por diminuição da massa óssea (DMO) e deterioração da microarquitetura do osso, conduzindo ao aumento do risco de fratura, principal consequência clínica desta doença.1 Trata-se da doença óssea metabólica mais frequente, com uma prevalência estimada na idade adulta em Portugal de 10,2% (17,0% mulheres, 2,6% homens), segundo o estudo EpiReumaPt. 1 Como consequência da diminuição dos níveis de estrogénios circulantes, a mulher sofre uma aceleração da DMO no período pós-menopáusico. 2
O objetivo do tratamento da OP é a prevenção de fraturas por fragilidade óssea, sendo este risco influenciado por fatores clínicos e ambientais, para além da DMO. Segundo as recomendações da Sociedade Portuguesa de Reumatologia para o tratamento da OP (Tabela 1), o início de terapêutica farmacológica não se baseia apenas no diagnóstico de OP, mas com o risco absoluto de fratura calculado com a ferramenta FRAX@PORT, validada para a população portuguesa, e história pessoal de fraturas após um mecanismo de baixo impacto. 3-4
As principais medidas não farmacológicas indicadas na gestão da OP são: alimentação equilibrada, exposição solar adequada, exercício físico regular, cessação tabágica e abstinência alcoólica. Em relação à suplementação de cálcio, apenas está indicada se o aporte diário na dieta for inferior a 1000-1200 mg/dia. 3 A suplementação com vitamina D (800-2000 UI/dia ou equivalente) deve ser considerada em pacientes com níveis de 25-hidroxivitamina D inferiores a 30 ng/ml. Quanto ao tratamento farmacológico, os bifosfonatos são considerados o tratamento de primeira linha, sendo necessário considerar o ácido zolendrónico intravenoso ou denosumab subcutâneo em casos de intolerância oral, má absorção ou não adesão à terapêutica. 3
A OP é reconhecidamente subtratada, tanto a nível nacional como internacional. 5-9 Da perpetiva do utente, estudos apontam para a falta de valorização e reconhecimento das complicações da osteoporose, ao contrário do que acontece para outras doenças silenciosas, como a hipertensão ou a diabetes, e pela presença/receio de efeitos secundários que levam ao abandono da terapêutica. A comunidade médica partilha as mesmas razões acrescidas da falta de familiarização e conhecimento na gestão das medicações antiosteoporóticas. 9-10 O médico de família está numa posição privilegiada para a implementação de terapêutica antiosteoporótica, sendo o principal agente de medicina preventiva no Serviço Nacional de Saúde, acompanhando o doente nas diferentes fases de vida.
O presente trabalho teve como objetivo determinar a inércia terapêutica na OP nas mulheres pós-menopáusicas da USF Garcia de Orta (GO) e avaliar a associação entre a idade dos utentes, o valor de T-score da densitometria, o valor de FRAX e a inércia terapêutica antiosteoporótica.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional, analítico e transversal na USF GO, pertencente ao Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) do Porto Ocidental. A população do estudo correspondeu aos utentes frequentadores inscritos na USF GO. Foram estabelecidos como critérios de inclusão: mulheres com idade compreendida entre os 55 e os 85 anos com o diagnóstico de OP (ICPC2 - L95) ou fraturas (ICPC2 - L72-76) na lista de problemas em 20/janeiro de 2022. Foram excluídos utentes sem teleconsulta ou consulta presencial na USF após fratura de fragilidade, os que sofreram fraturas decorrentes de um traumatismo de alto impacto ou desconhecido e utentes que, como consequência da fratura, tenham ficado com dependência moderada a alta.
Da lista de utentes que cumpriam os critérios de inclusão foi selecionada uma amostra aleatória simples, utilizando o website random.org ® , após cálculo do tamanho amostral determinado para uma frequência hipotética desconhecida de 50%, alfa de 5% e uma precisão de 4% (n=242 utentes).
Os dados foram recolhidos em março/2023 pelos respetivos médicos de família, através da consulta dos processos clínicos eletrónicos na plataforma informática SClínico®. Posteriormente os dados foram codificados e registados numa base de dados eletrónica, não permitindo a identificação dos pacientes e assegurando o anonimato e a confidencialidade de toda informação recolhida.
As variáveis analisadas foram: sexo, idade, índice de massa corporal (IMC), número de fraturas de fragilidade, local de fratura de fragilidade, resultado de FRAX®PORT, valor de T-score da coluna lombar e do colo do fémur, prescrição de medicação antiosteoporótica e tipo de medicação antiosteoporótica. Para o cálculo do FRAX®PORT foram também analisadas as seguintes variáveis: história de pais com fratura da anca, tabagismo ativo, diagnóstico de artrite reumatoide, consumo diário de três ou mais unidades de álcool por dia (≥30 g/dia ou ≥200 g/semana), exposição a glucocorticoides por via oral atual ou passada (durante >3 meses a uma dose ≥5 mg de prednisolona ou equivalente), presença de doença associada a OP secundária (diabetes tipo 1, osteogénese imperfeita em adultos, hipertiroidismo de longa data não tratado, hipogonadismo ou menopausa precoce (<45 anos), desnutrição crónica ou má absorção e doença hepática crónica).
A inércia terapêutica foi definida, segundo as recomendações da Sociedade Portuguesa de Reumatologia (2018), como: ausência de introdução de medicação antiosteoporótica no primeiro ano após uma fratura de fragilidade da anca, sintomática da vértebra ou duas fraturas de fragilidade independentemente do local; ausência de introdução de medicação antiosteoporótica em doentes de alto risco através do cálculo do FRAX®Port (sem densitometria ≥11% para fratura major e ≥3% para fratura da anca, com densitometria ≥9,5% fratura major e ≥2,5% para fratura da anca). 3
A análise descritiva e inferencial dos dados obtidos foi realizada utilizando o programa informático Statistical Package for the Social Sciences (SPSS®). Para análise estatística descritiva foram calculadas as frequências absolutas e relativas para as variáveis qualitativas e as medidas de dispersão e de tendência central para as variáveis quantitativas. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi usado para testar a normalidade da distribuição das variáveis quantitativas.
De forma a verificar a associação entre a idade dos utentes, o valor de T-score da densitometria e o valor de FRAX com inércia terapêutica antiosteoporótica foi utilizado o teste t para amostras independentes ou teste Mann-Whitney (para variáveis não paramétricas). Também foi utilizado o teste Qui-quadrado para verificar a associação de presença de fratura com inércia terapêutica. Para atribuição de significado estatístico considerou-se alfa de 5%.
Obteve-se parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Norte.
Resultados
A amostra final incluiu 217 utentes, após aplicação dos critérios de exclusão, com uma mediana de idades de 73 anos. Da amostra, 72,4% utentes estavam sob tratamento antiosteoporótico, sendo os bifosfonatos o tratamento mais utilizado (Tabela 2). Verificou-se inércia terapêutica em 17,5% (n=38) das utentes. Houve um total de 40 fraturas em 36 utentes, descritas na Tabela 3. Quando analisado apenas o grupo das utentes codificadas com fraturas verificou-se uma inércia terapêutica de 48,6% (n=18) e uma associação com significado estatístico entre os dois grupos (p<0,001).
A mediana de idade das doentes foi superior no grupo da inércia terapêutica, com significado estatístico (p<0,008) (Tabela 4). De forma semelhante, o valor de FRAX@Port para fratura osteoporótica major (p<0,001) e fratura da anca (p<0,001), calculado para toda a amostra, foi superior no grupo da inércia terapêutica com significado estatístico (Tabela 4). Da amostra obtida, 57,6% (n=125) tinham registo de osteodensitometria com valores de T-score prévios à iniciação de terapêutica antiosteoporótica. Não foi encontrada diferença estatisticamente significativa dos valores de T-score da coluna lombar (p=0,30) e do colo do fémur (p=0,83) entre o grupo da inércia e não inércia terapêutica (Tabela 4).
Discussão
No presente estudo foi apurada inércia terapêutica baixa nas mulheres pós-menopáusicas diagnosticadas com OP na USF GO, o que demonstra a proatividade da equipa médica na introdução de medicação aquando de um novo diagnóstico de OP. A bibliografia aponta para inércia terapêutica alta após uma fratura de fragilidade osteoporótica, tanto a nível nacional como internacional. 5-7 Apesar dos resultados da investigação serem mais otimistas em relação à bibliografia disponível, a inércia terapêutica apresenta um incremento de cerca de 30% quando avaliado apenas o grupo de mulheres com OP complicada por fratura. Assim, é relevante a apresentação dos resultados à equipa de saúde da USF GO, no sentido de os sensibilizar para a temática, melhorando a prestação de cuidados.
A idade mais elevada no grupo da inércia terapêutica pode ser explicada por uma perceção do médico de família de que a esperança média de vida expectável pode não justificar a introdução de medicação antiosteoporótica. Um outro motivo plausível é a presença de multimorbilidade e polifarmácia nas faixas etárias superiores, o que limita o tempo e a disponibilidade na consulta para abordar a OP quando existem outros problemas de saúde que requerem atenção mais imediata. Neste aspeto, a bibliografia é discordante entre as diferentes fontes. 8,11
Contrariamente ao esperado, verificou-se maior inércia terapêutica nas mulheres com um valor superior no cálculo de risco de fratura através do FRAX@Port. Estes achados podem ser fundamentados pela utilização reduzida desta ferramenta de decisão na prática clínica diária, apesar do relatório SCOPE colocar Portugal em 8.º lugar a nível europeu em termos do número de sessões online na plataforma FRAX. 12 Um possível estudo subsequente será analisar a utilização da ferramenta FRAX pelos médicos dos utentes avaliados no presente estudo. O facto de o risco calculado no FRAX@Port aumentar com a idade e com a história prévia de fratura pode influenciar este resultado, uma vez que também se verificou que ocorre maior inércia terapêutica nestes grupos.
Os bifosfonatos orais foram os fármacos antiosteoporóticos mais utilizados, o que está de acordo com as recomendações e guidelines mais recentes. 3 O uso dos bifosfonatos está contraindicado em taxas de filtração glomerular <30 mL/min/1,73 m2; apesar de já existirem alternativas, não foi estudada a possibilidade desta contraindicação contribuir para os valores de inércia terapêutica.
Tendo em conta a escassez de dados semelhantes na literatura científica nacional, os resultados apresentados no presente estudo são de extrema relevância. Uma das possíveis limitações deste trabalho é o facto de se tratar de um estudo monocêntrico, o que dificulta a generalização dos resultados. Ademais, existe um viés de seleção, pois a amostra apenas contempla as utentes diagnosticadas e codificadas com OP, o que pode ter contribuído para uma subvalorização da inércia terapêutica. De facto, muitos estudos demonstram que um dos fatores que mais contribui para a inércia terapêutica na OP é o seu subdiagnóstico. 7,13
Outra das limitações do estudo foi o viés de informação, dado que os dados foram colhidos por consulta do processo clínico eletrónico. Alguns parâmetros, como a história familiar de fraturas da anca e o mecanismo de fratura, não estão facilmente disponíveis no SClínico® e verificou-se ausência dos valores de T-score em alguns registos. Este viés foi colmatado com a exclusão dos casos em que o mecanismo de fratura era desconhecido após avaliação dos registos do médico de família e do episódio no serviço de urgência. Pelo mesmo motivo foram incluídas apenas as mulheres a partir dos 55 anos, pelo facto de que a informação da idade da menopausa não está facilmente disponível e por vezes não é atualizada precocemente no SClínico®. Desta forma, garantiu-se, com grande probabilidade, que todas as mulheres da amostra se encontram na menopausa. A exclusão de utentes sem consulta presencial ou via telefónica após fatura e aquelas de que resultou dependência moderada a grave é fundamentada com a falta de oportunidade ou benefício clínico na introdução de medicação, não se podendo considerar situações de inércia terapêutica. A inércia terapêutica definida no estudo abrange a ausência de introdução de medicação antiosteoporótica nos doentes de alto risco ou no primeiro ano após fratura, sendo que outras dimensões como a duração do tratamento, a implementação do drug holiday dos bifosfonatos e a vigilância da eficiência do tratamento não foram avaliadas, o que pode representar uma limitação. Ainda assim, os resultados apresentados podem ser sobreponíveis à realidade noutras unidades de saúde e demonstram a necessidade de aumentar a formação nesta área, de forma a proporcionar os melhores cuidados aos utentes e reduzir a morbimortalidade associada a esta patologia.
Conclusão
O médico de família tem uma posição privilegiada na implementação de terapêutica antiosteoporótica e diminuição da inércia terapêutica. O tratamento da OP está a ser implementado adequadamente e segundo a evidência mais atual na maioria das mulheres diagnosticadas com esta doença na unidade estudada, traduzindo uma baixa inércia terapêutica. É necessária maior sensibilização das equipas de saúde para o tratamento da OP complicada de fratura e das mulheres em idade mais avançada.
Contributo dos autores
Conceptualização, MCS e CO; metodologia, MCS, NL e CO; análise formal, MCS, NL e CO; investigação, MCS, AC, CO, MH, AP, RC, MJG, IM, NL, HS e IB; redação do draft original, MCS, AC, CO, MH, AP, RC, MJG, IM, NL, HS e IB; revisão, edição e validação do texto final, MCS, CO, AC, NL e MH.