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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.110 Coimbra set. 2016

https://doi.org/10.4000/rccs.6352 

ARTIGO

Anos 80: Happenings poéticos na ‘era do estilo’

The 1980s: Poetry Happenings in the Portuguese ‘Style Era’

Années 80: Happenings poétiques durant l’‘ère du style’

 

Sandra Guerreiro Dias

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Rua Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal sandra.cgd@gmail.com

 

RESUMO

Este estudo revisita uma década charneira da contemporaneidade nacional ainda em larga medida por estudar: os anos 80. Analisando algumas caraterísticas da mudança estética em curso na ressaca disfórica da revolução de 1974, identifica-se e sublinha-se a importância da arte da performance e da poesia experimental neste ciclo de transição. Recorre-se a um conjunto de happenings poéticos realizados por Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Fernando Aguiar e Alberto Pimenta, neste período, de modo a enunciar as especificidades de uma fenomenologia estética, volante e celebratória que estas experiências artísticas protagonizam.

Palavras-chave: anos 80, arte performativa, happening, mudança cultural, poesia experimental

 

ABSTRACT

This study revisits a sandwich decade in Portugal’s contemporary history – the 1980s – which is still largely to be explored. The importance of the performing arts and experimental poetry within this transition period is identified and highlighted through the analysis of some of the aesthetic changes that took place during the “dysphoric hangover” following the 1974 Carnation Revolution. The analysis centers around a series of poetry happenings organized at the time by Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Fernando Aguiar, and Alberto Pimenta. The aim is to describe the specificities of the volatile and celebratory aesthetic phenomenology characterizing these artistic experiments.

Keywords: cultural change, eighties, experimental poetry, happening, performative art

 

RESUMÉ

Cette étude revisite une décennie charnière da la contemporanéité portugaise qui reste encore, en large mesure, à étudier: les années 80. En analysant quelques caractéristiques du changement esthétique en cours dans le ressac dysphorique de la révolution de 1974, nous identifions et soulignons l’importance de l’art de la performance et de la poésie expérimentale durant ce cycle de transition. Nous faisons appel à un ensemble de happenings poétiques réalisés par Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Fernando Aguiar et Alberto Pimenta, durant cette période, en sorte à énoncer les spécificités d’une phénoménologie esthétique, volante et célébratoire que reflètent ces expériences artistiques.

Mots-clés: années 80, art de la performance, changement culturel, happening, poésie expérimentale

 

A linguagem é a produção de um corpo finito. Hatherly (1988: 79)

A expressão do luto e desencanto associados ao fim do ciclo revolucionário marca intensamente a produção cultural da década de 1980 em Portugal.1 Russell Jacoby alerta no entanto para a necessidade de se pensar a utopia, como aspiração revolucionária, para além da sua “dimensão sombria”, já que esta dificilmente conta a história toda (Jacoby, 1999: 171).2 A abertura do campo artístico português, nomeadamente das artes visuais3 à transvanguarda italiana, ao pós concetualismo e minimalismo europeu e norte­americano protagoniza, por outro lado, uma rutura cultural sem precedentes na cultura portuguesa recente, fenómeno que, uns anos mais tarde, terá levado Eduardo Paz Barroso a concluir que apenas na década de 1980 se deu no país a verdadeira “revolução cultural” (Barroso et al., 2006: 98).

Esta renovação festiva das linguagens estéticas por contraste com aquela conjuntura distópica leva a questionar o vazio deixado pela ação e reflexão político-social. São paradigmáticas, neste sentido, as seguintes palavras de Ernesto de Sousa a propósito de “Alternativa Zero”, exposição realizada em 1977 que marca este momento de viragem das artes para uma atitude eclética de renovação da experiência estética:4 “Começar. Paraíso. Perdido? Paraíso reencontrado. […] Desejo de. Atravessaremos estes desertos, enfrentaremos as espadas de fogo? Não sei, não sabemos. Mas há outro caminho?” (Sousa, 1997a: 237).

O caso da arte da performance, que teve uma presença expressiva naquele evento5 e que conhece forte expansão em Portugal na década de 1980, nomeadamente com os Festivais Internacionais de Arte Viva de Almada, o ciclo “Performarte” em Torres Vedras, as Bienais Internacionais de Cerveira, o ACARTE, na Fundação Calouste Gulbenkian, bem como um conjunto de eventos de poesia e performance,6 e que tem nos poetas experimentais alguns dos seus principais protagonistas e impulsionadores, fornece, deste ponto de vista, pistas relevantes que contrariam a ideia do desencanto em sentido lato, constituindo um caso de estudo de grande relevância para a perceção das idiossincrasias desta década.

O presente artigo propõe­se observar e pensar algumas caraterísticas desta transição, sublinhando a importância da arte da performance e da poesia experimental nesta abertura e renovação estética. Recorre-se a um conjunto de happenings poéticos, de E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly, Alberto Pimenta e Fernando Aguiar, a título ilustrativo, por forma a concretizar o argumento supramencionado. Note-se que estes artistas figuram aqui apenas como protótipo de uma revolução artística em curso nesta década e ainda em certa medida por estudar. Pese embora a existência de alguns estudos, está por elaborar uma abordagem estruturante e comparada do fenómeno artístico neste período.7 Este ensaio pretende ser um contributo neste sentido.

Para esta análise convoca-se as chaves teóricas dos estudos de teatro e performance do dramaturgo chileno Mauricio Barría Jara, pela contiguidade das suas propostas com a especificidade da arte da performance portuguesa, no particular enfoque dado por este autor ao corpo e à palavra na relação com a performance crítica dos modelos culturais emergentes. Tem-se em conta, nomeadamente, os seguintes elementos delimitadores deste tipo de arte, de acordo com aquele teórico: os intervenientes são elementos deslocalizados, isto é, provenientes de áreas artísticas que não das artes performativas tradicionais; na ação estética, privilegia-se o processo, através do corpo, em detrimento do objeto; teoriza-se o evento e a perceção, questionando os limites entre as diferentes áreas artísticas, espetáculo e público; questiona-se os meios mediáticos pelo seu uso e reconcetualização; confronta-se a não linearidade narrativa com a disposição em série e em cena (Jara, 2011b). A arte da performance é por isso fragmentária e descontínua, não representativa, pondo em perspetiva usos estéticos, processos e narrativas.

O happening, por seu turno, constitui uma subcategoria específica da arte da performance, partilhando aquelas caraterísticas. A apropriação portuguesa do modelo tradicional de happening de Allan Kaprow8 deriva numa sua expansão e variação, resultando muito mais como mecanismo performativo que explora sobremaneira a improvisação, a experimentação e o efeito surpresa.9

 

“Não há happenings inocentes”

Nos finais do século xx a ideia de utopia mudou. Na “era da completa incerteza” (Hobsbawm, 2000: 44) na qual desagua o “fim épico das épicas fábulas” (Eagleton, 2004: 45), a resposta a este desencanto generalizado por parte da arte parece ser a de um relativismo ideológico e estético posto em cena, firmando deslocamentos epistemológicos de fundo, como defende Paul Greenhalgh:

Todos nós celebramos confiantemente a nossa falta de confiança sobre as coisas: de repente, parece, nenhum de nós saberia dizer o que era bonito ou duradouro; ou, se pensássemos que sim, nenhum de nós estaria preparado para dizê-lo. Ultimamente, […] revelador […] é, sem sombra de dúvida, a disseminação massiva dos atuais produtos numa espécie de cena, e o reconhecimento geral de que tudo isto tem a ver com um novo movimento. (Greenhalgh, 2011: 283)

Privilegiando-se a experiência estética em torno da celebração daquilo que Renato Cohen, referindo-se a esta década, viria a designar de “alegre pesadelo” (Cohen, 2011: 150),10 perspetivando ironicamente a “dramaturgia do abismo” (Rancière, 2010: 10) e desmistificando as grandes narrativas (Lyotard, 1979), a arte do último quartel do século xx propõe­se repensar a história para além do seu anunciado fim (Fukuyama, 1999 [1992]).

Em Portugal, os anos 80 também se confrontam com este “tempo só de silêncio” (Sousa, 1998: 22) ou de “deserto que cresce” (Coelho, 1997: 50), tendo a sua expressão num grau zero do momento artístico português que tudo põe em causa e procura experimentar como resposta. Este experimentalismo radical tem na “Alternativa Zero” – realizada em 1977, no rescaldo de um intenso e convulsivo período de transição democrática na Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém, que arderia uns anos mais tarde – o seu momento catalisador, como explica Ernesto de Sousa, curador do encontro:

Un mot un point. As palavras vanguarda começar. Absolutamente começar. Absolutamente novo absolutamente começar rotura. E até as palavras aparentemente gastas arte cultura. Ou a sua contestação semântica anticultura antiarte. E a palavra alternativa. […] Depois falaremos do zero. […] A consciência […] de que o verdadeiro começar é uma distância e o paradise now uma utopia para já. (Sousa, 1997a: 235­236)

Esta afirmação contém em si diversas pistas, ainda que ambíguas, sobre uma alternativa difícil de enunciar, mais experimental do que em si um posicionamento definido, mas claramente inauguradora de uma vontade e uma conjuntura festiva11 que se adivinharia para a década seguinte, os anos 80. Uma década que, pode dizer-se, constitui ela própria uma espécie de happening na história portuguesa recente. Como afirmaria e reconheceria mais tarde José Gil: “[...] finalmente o ecletismo dos anos 80 escondia processos e fluxos de que ainda hoje é difícil adivinhar todo o alcance” (Gil, 1998: 45). De facto, os anos 80 figuram no debate da historiografia contemporânea como uma década estética e política profusamente eclética e plural. Se por um lado se assiste a uma cultura de demarcação indiferente relativamente ao marxismo (Eagleton, 2004: 43), por outro, a “era do estilo” (Adamson e Pavitt, 2011) na ressaca do fim das ideologias (Bell, 2000 [1960]) parece alinhar-se com um conjunto de práticas simultaneamente utópicas, críticas e experimentais, delineando a emancipação para uma pós-vanguarda niilista.

Em Portugal, o refluxo de uma revolução mais política do que cultural, a abertura tardia ao pós-modernismo e a “reivindicação do artístico” (Baía et al., 2012: 19) não deixam de trazer ao de cima uma euforia cultural de dois tipos: de demonstração de “cultura acumulada”, que preenchem agora o vazio deixado pela luta política, e elaborações de um “mero presente” ou “moda assumida” (Coelho, 1988a: 266-267). Outros estudos dão conta dos anos 80 como o tempo da confluência pacífica “na lógica do puro espetáculo” (Ribeiro, 1986: 23), simultaneamente entre o luto e a festa (Baía et al., 2012).

Pese embora a indefinição ontológica deste ciclo de transição, é possível aferir acerca da existência de um fenómeno de efervescência e intervenção cultural que, fazendo convergir áreas e vontades artísticas de campos distintos, desde a moda ao rock e à dança, passando pelas artes visuais, se propõe celebrar uma utopia sem tempo que o de apenas começar. Como se pode ler no catálogo de “Alternativa Zero”: “É abrir no saber que a prepara o vazio que a transfigura. […] E assim saberemos que alguma coisa de nós começa a ser neste exato aqui” (Coelho, 1997: 57).

E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly participaram nesta celebração, apresentando neste evento respetivamente os happenings “Não há sinais inocentes” (1976) e a instalação-happening “Poema d’entro” (1976). A participação de Ana Hatherly é particularmente demonstrativa deste projeto, consistindo a instalação da autora num conjunto de cartazes brancos, rasgados e iluminados por projetores de luzes intermitentes. Estes despojos aludem aos velhos cartazes de Abril agora decrépitos nas ruas de Lisboa, podendo ler-se aqui a metáfora da utopia dilacerada, gesto político e expressão desencantada de uma “Geração do vazio” (Sousa, 1997b: 272), desapossada que ficou dos seus ideais. Mas que, ainda assim, se permite recomeçar interessando não mais que esse gesto: o processo. Esta intervenção teve um segundo momento no happening “Rotura” levado a cabo por Ana Hatherly na Galeria Quadrum, em Lisboa, no mesmo ano. Nesta intervenção a autora rasga, com um objeto cortante, um amontoado de painéis brancos suspensos pelo teto e igualmente iluminados, subindo e descendo de um escadote à medida que o seu corpo acompanha o movimento de laceração deste vazio físico e emblemático. Levada ao palco pelo seu corpo, esta ação surge na continuidade do projeto “Poema d’entro”, colocando-se aqui em cena ela própria a autora-corpo e objeto e assumindo-se como a “operadora estética”12 da destruição daqueles cartazes vazios e do questionamento de um sistema cultural e político.

Os happenings dos poetas experimentais propõem, no entanto, mais do que um questionamento, a cocriação entre autoria, corpo, objeto, tempo, espaço e audiência, tudo uma só ocorrência breve e efémera, ativadora dos significados da performance hic et nunc, isto é, na própria realização. Estas ações poéticas aproximam-se assim das propostas de Erika Fisher-Lichte sobre a cultura como performance enquanto “nova estética”, conceção que salienta as suas caraterísticas específicas de “acontecimento”, isto é, em que “o modo específico de experiência” é “uma forma particular de experiência liminar” (Fischer-Lichte, 2005: 74).

Estas duas intervenções de Ana Hatherly compõem uma ação-discurso poético-performativa que se realiza por intermédio de um silêncio radical que explora um “efeito de desaparecimento” (Jara, 2011a: 116),13 que rasga e destrói o que resta de uma revolução para em seu lugar anunciar e exibir um vazio histórico de onde se pretende recomeçar, sendo este o acontecimento e a ação sublimadora da sua intervenção. Recomeça-se, no entanto, e apenas nesse espaço de “algures” que é o “espaço de significação”, o corpo em si, lugar fenomenológico e material da linguagem, como a própria autora explica, concretizando que este espaço, aqui pensado como um todo, no conjunto do “acontecimento” da intervenção, mais não é do que:

[…] o espaço da invenção, o espaço de significação dos seres e das coisas que se cobre de círculos afins, círculos cuja afinidade deriva da sua coincidência, mesmo acidental, enquanto o ‘acidente’ deriva da sua coincidência essencial que é a de se encontrarem dentro dum mesmo espaço – o espaço duma língua, o espaço cultural, o espaço da memória. (Hatherly, 1979: 49)

E. M. de Melo e Castro, por seu turno, levou a cabo o happening “Não há sinais inocentes”. Distribuindo pela galeria um conjunto de 30 sinais de trânsito de madeira pintados de branco, o poeta discursou em seguida brevemente num altifalante, convidando o público à interação com a sua instalação, pedindo-lhe que, dando forma às suas utopias criativas, pintasse e espalhasse pela sala os objetos em cena. Note-se que este happening teve lugar sem o conhecimento do organizador, o que acentuaria o gesto surpresa: a improvisação e pathos de choque que carateriza esta forma de arte e, já agora, a obra do autor. A integração improvisada destes elementos no espaço cénico da exposição resultou numa ação colaborativa, vivencial e experimental entre o público e os restantes artistas participantes na exposição, uma vez que estes objetos foram dispostos um pouco por toda a galeria14 em ambiente de festa e diversão. Neste caso, os sinais de trânsito podem ser entendidos como sinais e palavras de ordem e ação que delineiam caminhos alternativos para uma utopia construída por todos ou, pelo menos, de incentivo à abertura e, sobretudo, descoberta desse caminho.

As duas tendências convergentes nestas intervenções, a do desencanto de par com a abertura da pesquisa artística a um universo estético festivo de experiências estéticas provenientes do concetualismo e das artes visuais e performativas, têm aqui a sua base numa reflexão radical sobre a linguagem que, aliás, vinha há muito sendo desenvolvida tanto pelos poetas experimentais como pelo surrealismo e pelo modernismo, mais especificamente o futurismo.15 No que respeita a este contexto em particular da literatura no pós-25 de Abril e nomeadamente no período que se lhe seguirá, a década de 1980, há diferenças substanciais de fundo entre a poesia experimental e a restante tradição lírica e pessoana que cumpre aqui sucintamente assinalar.

A par da expressão daquilo que Prado Coelho designa de “fim provisório” (Coelho, 1988b: 132) identificável na “exploração de novas formas de lirismo” que articulam a crise das utopias e o colapso “de versões-mundo ontologicamente fortes” (Martelo, 2004: 243), como alguns trabalhos sobre a literatura deste período mencionam, estes poetas da tradição experimental, concreta e visual16 articulam um momento zero da história da literatura (que se vinha desenhando desde Orpheu), da utopia e da arte em experiências estéticas que procuram dar continuidade a um constante questionamento e uma recriação crítica do paradigma poético no sentido de uma sua intermedialidade. A este propósito são particularmente ilustrativas as seguintes palavras de E. M. de Melo e Castro publicadas aquando da exposição itinerante “Poemografias”,17 organizada por Fernando Aguiar e Silvestre Pestana nesta década:

Vivemos e viveremos no vazio. E a nossa vida ficará cada vez mais cheia de nada. Não já o nada existencial de Sartre, na angústia procurando um novo humanismo. […] / Agora trata-se do nada do modelo linguístico, que fica para além do ‘grau zero da escrita’ de Barthes, este ainda uma forma de estilo. É o nada da fala que por todos os meios se comunica, cada vez mais eficazmente. Agora o nada é o dito numa forma linguística nula, isto é, sem teor de informação e apenas com modismos de formulação. (Melo e Castro, 1985: 137)

Demarcando-se das tendências líricas e finisseculares da restante poesia, os poetas experimentais procuram numa outra conceção de arte e poesia em diálogo com a body art, a escultura, a pintura e os novos meios tecnológicos, a apropriação crítica daqueles modelos de linguagem. Reformulando-os numa intermedialidade de expansão semiótica que explora um território de linguagens estéticas em intervenção permanente hic at nunc contra os modelos linguísticos tradicionais, esta ação discursiva procura traduzir-se numa “materialização desmistificadora desse vazio da comunicação” (ibidem: 138), explorando o código poético como instalação e acontecimento. Veja-se a sistematização proposta por Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro sobre a poesia experimental deste período:

A década de 80 […] vem exigir da poesia um modelo interactivo que vá além do limitado campo de ação das palavras e das imagens para ensaiar a utilização associada e integrada de outros códigos e de outras dimensões sensoriais. O poema passa a construir-se cada vez mais com objetos do quotidiano, adquirindo uma tridimensionalidade percepcionável sobretudo no espaço da instalação. (Sousa e Ribeiro, 2004: 39)

As manifestações estéticas de poesia-ação, poesia viva, escultura viva, happening, intervenção de rua, videopoesia, poesia visual e performance, nas quais se inclui o trabalho de Ana Hatherly, Alberto Pimenta, Fernando Aguiar e Melo e Castro, entre outros, constituem o laboratório estético e celebratório daquilo que este último designou na altura de “gesto concreto” da “utopia do presente”, materializando “em códigos visuais comunicáveis” aquilo “que é improvável e invisível: a comunicação” (Melo e Castro, 1985: 138). Assim, a experiência artística do corpo e da linguagem em interação com a escultura, a body art, a pintura e as tecnologias emergentes (televisão, vídeo, computador, eletrografia, entre outras) exploram o espaço poético metaforizado e materializado em experiências de linguagem levadas ao palco. Este que pode ser a rua, o computador, a galeria, os meios de comunicação social ou ainda a própria planografia. O elemento relevante e catalisador desta experiência parece ser, em qualquer um destes cenários, a “tensão cénica” do corpo (Jara, 2011b: 12), nomeadamente da palavra e da voz tornada objeto e processo de linguagem que potencializa a semioticidade discursiva do corpo por oposição às formas convencionais do discurso representado.

Assim, o operador estético de demarcação deste contexto cultural e político desencantado é aqui a performance poética, o corpo em cena que se traduz num modelo de experiência estética radical porque “indeterminado, em permanente desterritorialização” que permite desvelar aquele “simulacro” (ibidem: 15), a mera representação, da construção artística e cultural. Para estes autores, trata-se da palavra transformada em corpo que diz − “O dizer do poético é o dizer do tudo. / O ver do poético é o ver total” (Melo e Castro, 1985: 138) − como dispositivo cénico que se mostra e vê, nomeia e reinventa a história, a poesia e a utopia.

Esta nomeação do corpo que, mais do que propor, explora novas modulações da mediação, do estilo e, de uma forma mais abrangente, do próprio conceito de linguagem, comporta a metaexploração daquilo que Edward Lucie-Smith, referindo-se à arte da década de 1980, designou por uma “estética do meio” e do estilo (Lucie-Smith, 1990). Por outro lado, esta parece ir ao encontro também do conceito de “pós-modernismo de resistência” proposto por Hal Foster, assim definido pelo autor:

Um pós-modernismo de resistência surge pois como contra-prática não apenas à cultura oficial do modernismo mas também contra a ‘falsa normatividade’ de um pós-modernismo reacionário. Em oposição (mas não apenas em oposição), um pós-modernismo resistente tem como objetivo uma desconstrução crítica da tradição, não um pastiche das pop-formas ou pseudo-formas históricas, que implica a crítica às suas origens, não um retorno. Em resumo, este procura questionar ao invés de se apropriar de códigos culturais, pesquisar em vez de firmar filiações políticas ou sociais. (Foster, 1983: xii)

Enquanto prática interdisciplinar de linguagem, crítica da representação que se apropria analiticamente dos códigos culturais e históricos, explorando de certa maneira também uma estética da paródia, conforme a aceção de Linda Hutcheon,18 a arte da performance parece consignar aquilo que Richard Schechner concetualizou como espaço total e liminar esvaziado19 que opera entre paradigmas, categorias, tempos e identidades (Schechner, 1983). A cena torna-se assim, pela reconfiguração estética das suas definições liminares, o espaço não simbólico, vazio total e operativo da utopia dilacerada que é o próprio corpo em cena − o centro cénico e distópico onde se acumula a narrativa e Zeitgeist do “fim dos tempos”, da falência das utopias libertárias e portanto de acumulação da “crise permanente” (Noack, 1983: 67). Conforme explica Paul Noack, quando se fala de “revolução” na segunda metade do século xx, não se trata já de “revolução” na sua aceção marxista, mas de um confronto com a “crise permanente”, que por sua vez dá lugar a “novas crises” sucessivas que tomam o lugar da “grande revolução” enquanto motriz de mudança social (ibidem: 71).

 

Fenomenologias poéticas do corpo-espetáculo

A arte da performance poética portuguesa pode ser analisada e situada neste enquadramento teórico, visto reinventar a linguagem poética operando pela crise do estilo e da forma estética recriada numa linguagem própria: a corporal-performativa. Nesta medida, a arte da performance destes poetas pode também ser entendida como um tipo de “pós-modernismo utópico”, na medida em que se situa para além da própria utopia marcada historicamente, consignando um “movimento de cultura e dos textos para além das categorias binárias” (Kaplan, 1993: 13-14),20 tornado ele próprio, corpo, o espetáculo de uma fenomenologia estética.

Propondo “novas perspetivas entre a letra e o sentido” (Melo e Castro, 1985: 139) este modelo de arte poética propõe-se também incorporar os processos de mediação tecnológica emergentes neste período em Portugal por intermédio de uma sua “performance frágil e esquiva” (Auslander, 1992: 31), isto é, denunciando a sua própria vulnerabilidade. Operando pela “lógica da visibilidade” (Jara, 2011a: 116), mostrando o corpo amplamente exibido em detrimento da representação, sem reprodução (porque não se permite representar) mas incorporando-a, explora-se uma ontologia do performativo que não se limita a representar o representado mas sim a suspendê-lo, como o dramaturgo chileno explicita:

Tanto o teatro como a performance trabalham na desmontagem da representação concebida como imagem, e o dispositivo preferencial, ainda que não exclusivo, seria precisamente o corpo. O corpo como quiasma, como experiência, como carne ou nervo, o corpo seria pois uma das figuras estáticas da subjetividade, que produziria na ação e como ação (sucesso), o desvelar das tecnologias que conformam a subjetividade, enquanto que desvelaria a fatalidade que constitui o corpo (o nosso próprio corpo) como experiência sempre em fuga, nunca disponível (a menos que este seja submetido à ordem da coisificação). (ibidem: 112)

Explorando-se uma dimensão cénica infrateatral entre ecrã, palco e corpo, arte, palavra e vida, vídeo, poesia e performance, Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Fernando Aguiar e Alberto Pimenta, entre outros, propõem a ampliação do projeto artístico, social e político explorando, por intermédio do corpo, a palavra-poesia como cena e processo de mediação estética que celebra o vazio histórico de linguagem, isto é, o “zero da mensagem” (Melo e Castro, 1985: 138).

A arte da performance é assim simultaneamente “modo de inscrição textual no corpo” (Jones e Stephenson, 1999: 2) e produção de significados que têm lugar no engajamento do performer no espaço e lugar específicos. Esta experiência do ritual, materialização e desterritorialização da linguagem é explorada de forma paradigmática pelo poeta Fernando Aguiar, um dos principais impulsionadores deste tipo de performance durante a década de 1980. Este autor leva à cena o texto, sendo o corpo o próprio dispositivo arquivístico e medial, aqui a memória em palco, o corpo presente como repositório e operador estético da história, numa análise que se empresta de Paul Connerton para quem o passado é transmitido através da performance e de rituais corporais (Connerton, 1989: 4). O próprio poeta afirma o seguinte: “mas entre o nada e o tudo é que o conceito se move […] é que a presença se apresenta. é que o presente se exprime. Texto” (Aguiar, 2001: 67).

Fernando Aguiar apresentou durante a década de 1980 um sem número de intervenções e happenings poéticos, entre estes: “Escrevo o que está dentro de mim” (“Alternativa 3”, Almada, 1983), “Segurança Interna” (“IV Bienal de Vila Nova de Cerveira”, 1984), “Ponto-Ação” (“Quinzena Performance-Arte”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986), “A Escada de Pedra” (“1.º Festival Internacional de Poesia Viva”, Figueira da Foz, 1987), entre muitas outras. Em todas elas, o corpo é o palco, a materialidade da manifestação experimental do “artor”21 que liberta a linguagem, aqui o objeto estético em cena, das suas formas e meios de expressão convencionais, nomeadamente a planografia. Explorando um tipo de arte poética corporal que conjuga com as categorias mais tradicionais de espetáculo (a publicação de folhetos; a exploração de uma cenografia de palco; a gravação e registo em fotografias das intervenções, etc.) Fernando Aguiar opera uma descodificação e reconcetualização plástica do código linguístico pela própria performance do corpo que combina com uma pesquisa plástica da linguagem, explorando diferentes meios: o som, o projetor, o vídeo, a música, a arte postal, a instalação, os próprios elementos naturais da paisagem, as artes plásticas, a collage, entre muitas outras técnicas. No entanto, é a conversão narrativa em ação estética, isto é, encenada pelo próprio corpo no palco, pelo poeta, que mais expressão tem neste autor. A arte é aqui em si a performance, o happening poético-corporal como mediação do código linguístico, sem a procura de um sentido determinado que apenas o da metarreflexão da experiência estética e da ação das palavras ao vivo. Estas colocam em cena aquilo que Maurício Barria Jara designa por “ostensibilidade de uma experiência que a execução de uma ação ao vivo pressupõe gerar nesse momento determinado”, chamando a atenção, porque colocados frente a frente, “artor”, audiência e “os mecanismos de perceção (e receção)” (Jara, 2011b: 15).

Tome-se como exemplo a intervenção “Ato Concreto” que teve lugar na Casa de Serralves, então Museu Nacional de Arte Moderna no Porto, no âmbito do “Ciclo de Poesia Viva” em 1987. Nesta intervenção, o corpo do poeta enquanto operador estético simula os mecanismos de reconcetualização da linguagem. Dispondo freneticamente letras e conjuntos de palavras em telas e panos estampados, reescrevendo e compondo grafias como desenhos numa trama e textura, o poeta desvela e intervém na descodificação dos processos de informação da sociedade hipermediatizada, recriando-os. Levando à cena o ato de (de)compor e recriar significados linguísticos através de materialidades visuais plásticas, esta ação-processo propôs-se, como refere o poeta: “combater e pôr em causa o excesso das palavras, na nossa crença nas palavras, pelo seu excesso existente na nossa linguagem” (Aguiar, 2001: 35). Assim, mediando o código linguístico através da ação direta do corpo como reconfigurador estético, o autor procura patentear os limites da linguagem e comunicação, tornando-a, ao mesmo tempo, interativa e um acontecimento partilhado, passível de modulação e recriação, como o próprio descreve:

A intervenção direta do poeta, ao usar o corpo como veículo de transmissão poética e como manipulador de referentes em cena vem, pela primeira vez, tornar a poesia verdadeiramente interativa a todos os níveis. Quer no aspeto de conceitos, [como de] materiais, técnicas e suportes – porque simultaneamente podem ser utilizados […] os diapositivos, o gravador, o computador ou o vídeo. (ibidem: 39)

Por outro lado, a conversão do corpo em tempo opera a suspensão temporária do simulacro, expondo as categorias à sua contradição. Exibindo-se o próprio ser simulado, a performance pode tornar-se “dispositivo de produção de liminaridade” (Jara, 2011b: 16), como em Alberto Pimenta. O mesmo poeta que defende que “toda a arte do passado está à espera de sair do círculo vicioso do concetual-imagem ou do concetual-palavra, para se animar de todos os cinco sentidos […] que são o percurso principal do nosso corpo nesta vida” (Pimenta, 1990: 283).

Metaforizando sobre a “sociedade do espetáculo” de Guy Debord (2002 [1967]), Alberto Pimenta leva o corpo à cena precisamente para especular sobre a “noção de espetacularidade” (Jara 2011a: 113-114), como considera Jara ser essa a função da arte da performance. Nos vários atos poéticos que realizou nesta década, este poeta procura tornar­ se ele próprio o “espetáculo”, figurando o corpo como experiência radical, reservatório pantomímico das contradições do sistema. Oscilando entre uma estética adorniana e o anarquismo de Max Stirner, a estética de Alberto Pimenta operacionaliza uma conceção de linguagem poética como reduto final da utopia, aqui o próprio corpo-linguagem representado performativamente no palco-arte da vida, numa aceção poético-fluxiana22 de arte e linguagem de que o autor se aproxima. Isto é, colocando-se em palco o ‘desnudamento’ total de si e do corpo, o objeto e ação, materializa-se o sistema exposto, colocando-se em cena, habitualmente a rua, as tensões e contradições das categorias políticas, sociais, artísticas do seu tempo. Numa alusão a este seu conceito de arte que designa por “o inconciliável”, em que é “impossível distinguir entre representação e representado” (Pimenta, 1988b: 147), veja-se o seguinte relato de uma notícia de jornal de um ato poético em que o próprio corpo do poeta é posto à venda:

Era um embrulho muito bem embrulhado em serapilheira de plástico, atado com cordas e sentado num banquinho. O embrulho tinha um cartaz que dizia ‘Homem vende-se. Trata: Divisão de Recursos Humanos do Estado.’ […] Foi-se pôr a uma esquina da Igreja dos Mártires às cinco e meia da tarde.’ […]; às sete e meia […] atirou com a serapilheira e eclipsou-se do local. (P., 1991)

Aqui o corpo à venda pode ser entendido como o corpo “sintoma da história” (Jara 2010: 104) tomado como ação direta, pois como o próprio Alberto Pimenta defende, a “performance como comunicação do corpo […] [só] atinge a sua dimensão no momento do risco” (apud Leal, 2005: 8). Como se pode depreender da ação anterior, este risco é assumido também neste poeta por intermédio da sátira, no sentido de Arthur Pollard, ou seja, enquanto arte do “puro gozo” da crítica e do risco, mas também pelo entusiasmo e pela festa das palavras (Pollard, 1987: 1). O “sátiro maior da república” (Paes, 1988), como Pimenta ficou conhecido na imprensa da época, explora em palco, caves, galerias, passeios, salas ou na rua, o “radical uso dos corpos viventes” (Jara, 2011a: 116), vivenciando essa festa dos sentidos burlesca na aceção de Guy Scarpetta, isto é, a festa entendida como a irrupção de um momento sem licença, de estilo e puro “jogo do prazer para nada”, de inversões hierárquicas e transgressão de interditos através do erotismo, da poesia e do riso (Scarpetta, 1988: 145). Veja-se a este propósito, exemplificativo ainda, o seguinte excerto do libreto da performance “Esta peça é sua, estime-a”, intervenção apresentada em 1988 por Alberto Pimenta em conjunto com António Pocinho, Maria Emília Castanheira e Rui Zink no “II Encontro Nacional de Intervenção e Performance”, na Amadora:

Luzes. Diante de 3 suportes de partitura, os (inter)venientes esfalfam-se por transmitir um texto que por outro lado (off) está em decomposição fono-musical. Como nos encontramos em pleno estado de circo (cultural), há ainda uma personagem invisível… […] Ao meio, em cima dum estrado, Alberto Pimenta incita à função. (Pimenta, 1988a: 48)

 Em E. M. de Melo e Castro, por seu turno, a crítica à saturação disfórica da situação de cultura como “gigantesco sistema de informação” (Auslander, 1992: 19) recorre aos meios tecnológicos. Neste caso, a utopia da tecnologia é a utopia da experimentação da linguagem e dos signos. O uso da técnica, nomeadamente o vídeo,23 que retoma as experiências dadaístas do princípio do século, explora aqui a dimensão lúdica e plástica das possibilidades generativas da linguagem e especificamente da poesia visual. Através de um “experimentalismo cinematográfico” (Fernandes, 2006: 17) que recorre ao vídeo e ao computador através da pesquisa de programação generativa, procura-se refletir sobre a (in)comunicabilidade dos meios, entre a arte, as artes visuais em sentido lato e a linguagem. O poeta reflete acerca de uma redefinição da situação comunicativa na “era da reprodutibilidade técnica” (W. Benjamin), recorrendo à performance da própria linguagem no ecrã e propondo a reinvenção/construção de uma nova sinestesia global da poesia, que integra os novos meios. Num texto escrito a propósito de “Signagens”, instalação multimédia de videopoemas em série criados entre 1985 e 1989 na Universidade Aberta de Lisboa, o autor explicita do seguinte modo a condição transformadora deste tipo de poesia: “os valores estéticos do vídeo são a íntima relação entre espaço e tempo, o ritmo, o movimento e as transformações da cor, todos apontando para uma poética da transformação” (Melo e Castro, 2006: 46). Neste caso, explora-se a “função performativa” (Jara, 2011b: 25) do vídeo que produz a “suspensão premeditada da matriz narrativa” (ibidem: 23) transitória como mecanismo generativo de poesia ou “metalinguagem” (Melo e Castro, 2006: 48) estética sobre a própria arte tecnológica, generativa, lúdica e interativa.

Em Ana Hatherly, para além dos happenings mencionados, a performance traduz-se ainda numa experiência da fala e do corpo que se cumpre em objetos-imagem. Conforme Maurício Barría Jara, a arte da performance também é a exibição e a intensidade da fala que nesta autora é explorada em objetos estéticos que questionam as condições diegéticas do relato e os elementos grafemáticos da cultura e do texto. É conhecido o seu projeto de documentação videográfica de iconografia de Abril, feita a partir da reprodução de alguns dos mais emblemáticos posters, murais, desenhos, pinturas e slogans, em “Revolução” (1975). Aqui o projeto de liberdade operacionaliza a “prática do espaço em branco” da fala, explorado por intermédio da interação com a imagem e processamento de “esvaziamento sintático” (Hatherly, 1981 [1975]: 82). Ou seja, os discursos políticos, manifestos e palavras de ordem em voz-off são acumulados ao trânsito esquizofrénico de murais e cartazes que por sua vez recriam outras palavras-imagem de ordem subentendidas que expõem as contradições ideológicas e estéticas daqueles discursos. Para Ana Hatherly, a utopia da linguagem parece ser assim a utopia do vazio sintagmático tornado imagem e caligrama, isto é, a poesia enquanto “constelação […] de possibilidades múltiplas” (ibidem: 77). Como experimentação do objeto estético – o corpo ele próprio é também “esvaziado” para se tornar procedimento e relato, ficção, pela fala, ou ausência dela, liberto da experiência da mediação, portanto símbolo de palavra reescrita e desenho, corpo que preenche o espaço vazio e se torna “interstício” no “continuum da representação” (Jara, 2010: 108).

Em suma, a arte da performance dos poetas experimentais leva à cena na década de 1980 as tautologias do desencanto na ressaca de Abril, tornando­ as movimento de cultura celebratório de uma experimentalidade intermedial. Na sua heterodoxia radical, experimental e concetual, estas experiências exploram um conjunto de paradigmas estéticos e poéticos que configuram uma fenomenologia estética da ação artística como happening efémero mas catalisador das condições históricas. Entre o “artor” como objeto artístico, a problematização do “espetáculo” pelo espetáculo da sátira e da palavra, a reconcetualização experimental do espetáculo da técnica pelo espetáculo semântico­ lúdico da poesia e do poema-ato, esta praxis plural de linguagem corporal operacionaliza uma efetiva abertura ritual do campo artístico ao ecletismo pós-moderno, nomeadamente à “pluralidade dos processos de produção de sentido” e ao “advento da transdisciplinaridade” (Melo, 1998: 34) como reação à falência dos sistemas teórico-estéticos totalizantes. Numa palavra, estes happenings poéticos constituem uma experiência emancipatória da arte portuguesa em permanente desterritorialização, afirmando-se como território de pesquisa histórica e happening festivo de linguagem que se propõe celebrar aqui e agora a “utopia do presente” (Melo e Castro, 1985: 138).

 

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Artigo recebido a 31.03.2015 Aprovado para publicação a 01.02.2016

 

NOTAS

1 No campo literário, é particularmente paradigmática a obra de Eduarda Dionísio (1979, 1984, 1987, 1993, 1994, 1999) e de João Martins Pereira (1983), entre outros.

2 O autor acrescenta: “A utopia não pode simplesmente saltar fora da história. Contudo, deve ir-se além dos seus mais imediatos prospetos ou do que render-se à sua razão de ser” (Jacoby, 1999: 180).

3 Segundo os seguintes estudos, entre outros: Baía et al., 2012; Melo, 1998; Gonçalves, 1993.

4 De acordo com Isabel Carlos, por exemplo, esta exposição é “fundadora de uma atitude frente à arte” (Carlos, 2008: 141).

5 Veja-se o seguinte estudo de Isabel Nogueira sobre este evento fundador da pós-modernidade portuguesa: Do pós-modernismo à exposição Alternativa Zero (2007).

6 Entre estes: “Dois Ciclos de Exposições: Novas Tendências na Arte Portuguesa – Poesia Visual Portuguesa” (1980), no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra; “PO.EX/80 – Exposição de Poesia Experimental Portuguesa” (1980), na Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém, em Lisboa; o “1.º Festival Internacional de Poesia Viva” (1987), na Figueira da Foz; a exposição “Retítulos” (1987), na Galeria Atelier 15, em Lisboa; e o ciclo “Outras Escritas Novos Suportes” (1988), no Museu de Setúbal – Convento de Jesus, entre outros.

7 A organização recente do colóquio “Quando foram os anos 80?” na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em abril de 2015, dá mostras de uma tendência e necessidade, por parte da história contemporânea, de se levar a cabo um estudo abrangente sobre esta época.

8 Embora o artista norte-americano considere que este tipo de arte surge precisamente contra a definição de arte, isto é como não arte, algumas caraterísticas podem ser delimitadas, a saber: o happening consiste num evento breve; é muito mais um “estado de espírito” do artista do que propriamente uma obra de arte; o happening não pode ser reproduzido nem repetido; resulta de um momento de privacidade do artista diante do público; no happening, o artista permite-se, acima de tudo, experimentar sem limites (Kaprow e Kelley, 1970: 25-26).

9 Esta sistematização faz parte de uma taxonomia mais ampla sobre a Arte da Performance Portuguesa (APP), desenvolvida na seguinte tese de doutoramento recentemente defendida: O corpo como texto: poesia, performance e experimentalismo nos anos 80 em Portugal (Dias, 2016).

10 Renato Cohen refere-se aqui especificamente ao mundo dos videoclipes que, como se sabe, conhece o seu boom nesta altura, nomeadamente com o aparecimento da MTV.

11 Note-se que se usa aqui o conceito de “festa” não no sentido estrito de festa socialista e “mística”, conforme teorizado por Ernesto de Sousa (apud Alves e Justo, 1998: 64-65), mas na imagem estrutural de uma condensação interdisciplinar (Calabrese, 1988 [1987]) que as tendências artísticas desta década, no seu conjunto, parecem protagonizar. Um dos exemplos mais paradigmáticos neste sentido são as “Manobras de Maio”, evento eclético que, realizando-se entre 1986 e 1988 na capital lisboeta, congregou moda, arte da performance, artes plásticas, música, instalação e fotografia, iconizando uma movida e atmosfera festiva representativa e específica do modus vivendi oitentista, como ilustra o seguinte testemunho de Eduarda Abbondanza, para quem as Manobras foram uma “espécie de Woodstock na área da moda em Portugal”, isto é, “um meeting point iniciático que representou um ensaio, uma das expressões de liberdade mais sofisticada depois do 25 de Abril. Foram importantíssimas na consciencialização de um movimento geracional. [...] Era uma plataforma livre, sem regras. [...] Tínhamos ideias, roupas, conceitos e muita vontade de mostrar o nosso trabalho. As pessoas encontravam-se nos mesmos sítios e havia uma vontade de fazer coisas e de multiplicar as participações em vários projetos. Os primeiros desfiles eram muito performativos e havia uma mistura enorme de gente e de projetos” (apud Gavinho, 2010: 48).

12 Conceito de Bruno Munari, introduzido em Portugal por Ernesto de Sousa.

13 “A performance induz na representação a produção de um evento, que se constitui desde o radical uso da presença de corpos viventes, o que provoca que o público espetador experimente um gasto, um consumo sem proveito. O efeito do desaparecimento não tem que ser entendido como a mera ausência de algo, mas como um efeito de disseminação e inapropriação da trama significante, mediante o qual atenta e resiste à política da eficácia fetichizada da imagem espetacular produzida para consumo” (Jara, 2011a: 116).

14 De acordo com testemunho recolhido pela autora em entrevista a Melo e Castro por correio eletrónico (12.04.2014).

15 Nomeadamente Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros e Raul Leal.

16 Juntamente com muitos outros, entre eles, António Barros, António Aragão, Abílio-José Santos, Antero de Alda, José-Alberto Marques, Salette Tavares, Silvestre Pestana.

17 A exposição decorreu ao longo do ano de 1985 e percorreu quatro cidades e galerias, Lisboa (Galeria Diferença), Torres Vedras (Galeria Nova), Évora (Galeria Municipal de Arte) e Coimbra (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra), tendo sido acompanhada de eventos de lançamento, tertúlias e intervenções levadas a cabo pelos autores da exposição (Aguiar e Pestana, 1985).

18 “A paródia, na maior parte da arte do século xx, é um modo maior de estruturação temática e formal, envolvendo aquilo que designei anteriormente por processos de modelação integrantes. Como tal, trata-se de uma das formas mais frequentemente adotadas pela autorreflexividade no nosso século. Assinala a interseção da criação e da recriação, da invenção e da crítica” (Hutcheon, 1989: 128).

19 “A teoria da performance, quando bem explorada, tem em conta tanto a condição de beleza como de vazio. Bem como a da negatividade, cheia do “Mu” japonês, a pausa plena, o vazio total, que o palco é tão totalmente. Porque, como referi, o palco é, em primeiro lugar, um espaço físico à espera de ser preenchido; e depois um espaço físico total. Mas ao mesmo tempo que este espaço está cheio, é preenchido por um vazio proporcional” (Schechner, 1983: 189).

20 Este tipo de pós-modernismo tem origem, conforme E. Ann Kaplan, no movimento feminista. A sua estrutura arquetípica é, no entanto, aplicável a outros fenómenos culturais, como aqui se propõe.

21 Usa-se aqui o conceito de artista-performer proposto por António Barros, também ele performer e poeta organizador de um dos mais importantes eventos de arte da performance realizados em Portugal, o ciclo “Projetos & Progestos”, que teve lugar em Coimbra entre 1980 e 1985. De acordo com este artista: “são premissas do artor: libertar a arte do artístico e libertar os objetos do quotidiano” (Barros, 2006: 109).

22 Reconhecimento ontológico da continuidade entre arte e vida como fluxo, na linha da tradição Fluxus de George Maciunas.

23 As primeiras experiências desta natureza do poeta datam de 1958, com o videopoema “Lírica do Objeto”, de 1967, o poema visual “Triangle-Quadriopen” e de 1968, “Roda Lume Fogo”. Mais tarde, na década de 1980, o poeta veio a desenvolver de forma consistente esta pesquisa da “poética dos meios e arte high-tech”, nome de uma exposição que organizou na Galeria Diferença em 1988 (Melo e Castro, 1988).

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