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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.114 Coimbra dez. 2017
RECENSÃO
Library of Congress (2017), The Card Catalog: Books, Cards, and Literary Treasures. San Francisco: Chronicle Books, 224 pp.
Paula Sequeiros
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal paulasequeiros@ces.uc.pt
Ao primeiro olhar se vê um livro com dupla leitura: a do objeto gráfico, cativantemente desenhado e ilustrado; a da história da catalogação na Biblioteca do Congresso (BC), Estados Unidos da América (EUA), das fichas ao mobiliário que encerrava ordenadamente, até ao catálogo digital. As inúmeras imagens de rostos e capas de livros e das suas autoras e autores, das fichas com anotações manuais sobre cada título, proporcionam apreço e reconhecimento de autorias e adicionam gozo visual e materialidade à leitura. A capa cartonada, num simulacro bibliófilo de manufatura, vem com um envelope colado no verso com a ficha fantasma de empréstimo – como livro em empréstimo há anos atrás – e uma cinta reproduzindo uma ficha manuscrita. As fotografias históricas, raramente disseminadas, do pessoal em tarefas de produção e manutenção do catálogo, as fotografias e os planos para ficheiros e outro mobiliário para as salas de consulta, de utensílios técnico-administrativos e ainda de visitantes no processo das suas pesquisas são particularmente interessantes.
The Card Catalog é publicado poucos meses depois da nomeação de Carla Hayden para diretora da BC – recordemos, a primeira mulher e pessoa negra a assumir o lugar – acompanhado de prefácio seu. O livro, como referirei, parece mostrar traços da nova e esperada postura institucional no que toca à diversidade na visibilidade autoral e à sensibilidade social.1 Recentemente, Hayden, ex-presidente da ALA, associação de profissionais de bibliotecas dos EUA, destacara-se ao opor-se ao acesso a dados sobre leitura nas bibliotecas por parte das autoridades e que o Patriot Act pretendia instituir. A nova diretora, a “primeira da era da Internet”,2 é ainda a primeira academicamente qualificada na área, sendo os anteriores detentores do cargo escritores e outros intelectuais. A nomeação aprovada pelo Congresso, antes vitalícia, foi limitada a dez anos. No prefácio, Hayden assume a responsabilidade que lhe toca na continuidade do labor da biblioteca criada em 1800, considerada a detentora da maior coleção bibliográfica do mundo e que inclui monografias, periódicos, mapas e registos sonoros. Destaca a centralidade da catalogação, operação pouco conhecida. Uma vez normalizada, com produção centralizada e logo distribuída em fichas, permite a partilha de património e racionalização de esforços a nível nacional, pelo que homenageia figuras marcantes na sua história: Robert Putnam – introdutor da ficha em cartão de dimensões normalizadas – e Henriette Avram – iniciadora do catálogo em linha. A introdução assinada pelo writer-editor da BC, Peter Devereaux, releva a atualidade do Catálogo Principal em Fichas pela profusão de notas manuscritas ímpares e dos índices secundários e pela acumulação sucessiva num sistema de ordem, relevando o catálogo em ficha como tecnologia antiga e persistente.
A História moderna desta forma de catalogação, antecedente da que viria a ser praticada na BC, é narrada em associação com o Iluminismo e a Revolução Francesa, tanto na criação de um meio universal, racional, de consulta e atualização rápidas – com as fichas intercaláveis –, como no estabelecimento em França de regras de catalogação uniforme para as bibliotecas confiscadas pelo Estado e para as universidades. Nesse momento os bibliotecários franceses recorreram às cartas de jogar – produto barato, de fácil obtenção, tamanho regular e versos em branco –, para fichar livros. Nesta sequência histórica, a então Library of the Two Houses of Congress em Washington confronta-se com o incêndio ateado pelo exército britânico em 1812, durante o ataque aos edifícios do Capitólio. O antigo presidente Thomas Jefferson, face aos fundos destruídos, oferece a sua coleção pessoal para venda, ato a que se opuseram muitos membros conservadores do Congresso pela “tendência estética, irreligiosa e imoral” neles impressa (p. 50). A coleção seria recebida já ordenada e com catálogo produzido por Jefferson, classificado segundo uma sistematização das ideias tomadas de Francis Bacon. Entre as autorias aí incluídas destacam-se, para além deste nome, outros como John Locke e Mary Wollstonecraft e o seu The Vindication of the Rights of Woman.
A par e passo são intercaladas imagens dos livros e dos catálogos mencionados. É de notar que a seleção inclui autorias de pessoas de vários géneros, raças e etnias, assim como títulos diversos em géneros literários e científicos, sobre diversos saberes e com distintas finalidades – do lazer ao ensino e à culinária –, para várias idades, dando o maior destaque ao romance e à poesia. Os romances populares vendidos a muito baixo preço, aí figuram também.
Os episódios seguintes da história do catálogo são relatados na singularização dos protagonistas. É o caso de Melville Dewey, a quem é atribuído o projeto de interligar a BC, via descrição bibliográfica, com bibliotecas universitárias, de museus e públicas, projeto apoiado na adoção progressiva de tecnologias como a ficha normalizada, máquinas de escrever e dispositivos mecânicos das burocracias – numeradores e datadores, perfuradoras de cartões.
No virar de século, dada a constatada duplicação de esforços simultâneos nas várias bibliotecas do país e face a uma edição sempre crescente, a ALA encabeça a reivindicação de uma catalogação, já então minimamente industrializada dentro da BC, “universal em âmbito e nacional no serviço” (p. 110). Para tanto, a Biblioteca do Congresso, na pessoa de Putnam, assumiria tarefas de uma biblioteca nacional, produzindo central e mecanicamente fichas impressas para venda às demais bibliotecas do país. Na era Roosevelt, Dewey associara com otimismo este projeto unificador e racionalizador ao da Ferrovia do Pacífico, com longa implementação e relevância nacional idênticas. Essa prática atingiu o pico em 1969, a par da criação por Avram da norma MARC, destinada a catalogar de modo uniforme e informatizado, mantendo-se em vigor até 1997.
O abandono do catálogo analógico produz-se então na própria BC, uma das últimas instituições a adotar a MARC. A automatização prosseguiria, apoiada no discurso sobre “um esforço igualitário” (p. 146) que se deveria estender aos quatro pontos cardeais, e à qual se juntou um novo serviço de empréstimo interbibliotecário. Este último marcou a partir do século XX e de forma especial, segundo a BC, autora principal do livro, uma reconfiguração do papel da biblioteca nacional que ultrapassava os iniciais limites físicos mas também institucionais, para além do Congresso e do propósito de recolher a bibliografia nacional via depósito legal.
A mudança de edifício para um outro, especificamente concebido, acabaria por ser um imperativo colocado pela crescente coleção, mas substancialmente também pelos crescentes serviços de catalogação e catálogos. Em 1976, um terminal de computador era disponibilizado ao público para lhes aceder. Em 1980 o catálogo manual foi congelado, i.e., trancado. O “tesouro” das coleções, de que o catálogo seria chave de abertura confiável nas declarações do diretor inicial, viria a ser representado em 1975 como ameaça de soterramento pelo diretor Daniel J. Boorstin.
Contudo, e apesar de longa polémica sobre a sua conservação, ainda que congelado, a decisão final foi de não o destruir, até porque “a aparência de obsolescência pode ser enganadora” (p. 159).
The Card Catalog pode assim ser encarado como objeto estético de bibliofilia, o que ressalta à primeira vista. Constitui-se igualmente como sobrevoo por uma temática histórica de aparência aridamente burocrática, mas que neste livro encontra enquadramento e abordagem suscetíveis de despertarem interesse noutro tipo de público. Encerra ainda a possibilidade de ganhar repercussão numa perspetiva material da História das ideias ou na da disseminação e preservação da literatura e da ciência por intermediação de instituições tuteladas pelo Estado. Outro aspeto curioso é a abertura de pistas para acesso a edições originais, agora em linha.
O catálogo, enquanto produto tecnológico e do trabalho enquadrado por normas com alcance nacional e internacional, ganha uma leitura que enriquece a interpretação do papel de instituições culturais como esta biblioteca nacional. Mais ainda, assim se permite uma análise para além da custódia de documentos e que se estenda ao papel que a BC tem exercido na prescrição de procedimentos para o trabalho bibliográfico e no desenvolvimento de técnicas para e produção e preservação da memória. Ora se este papel tem tido efetivo alcance na normalização bibliotecária e na definição de boas práticas que têm sido replicadas a nível global, o que esta obra de alguma forma celebra, não deixa de o fazer com um posicionamento que reflete a atual preocupação por perspetivas alternativas e de diversidade.
NOTAS
1 Carlton, Amy (2017), “ACRL Closes with Carla Hayden”, American Libraries, 27 de março. Consultado a 30.07.2017, em https://americanlibrariesmagazine.org/blogs/the-scoop/acrl-conference-closes-with-carla-hayden/.
2 Meyer, Robinson (2016), “The Library of Congress Gets a History-Making New Leader”, The Atlantic, 13 de julho. Consultado a 14.07.2017, e https://www.theatlantic.com/technology/archive/2016/07/carla-hayden-is-librarian-of-congress/491267/.