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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.114 Coimbra dez. 2017

 

RECENSÃO

Downey, Anthony (org.) (2015), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 469 pp.

 

Paula Sequeiros

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal paulasequeiros@ces.uc.pt

 

 

 

Promessa e responsabilidade pelo amanhã são palavras-chave na introdução assinada por Anthony Downey a esta coletânea, citando Mal d’archive de Jacques Derrida:

(A) questão do arquivo não é (…) uma questão do passado. Não é a questão de um conceito de que disporíamos ou não disporíamos já sobre o passado, um conceito arquivável de arquivo. É uma questão do futuro, a questão do futuro mesmo, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade pelo amanhã.1 (Derrida apud Downey, 2015: 13)2

A questão de que parte este livro é, por sua vez, como definir a relação entre arte contemporânea e arquivo, centrando-se na dupla configuração dos arquivos enquanto fontes primárias e enquanto dispositivos estruturantes que apresentam facetas sociais, políticas, culturais, do poder do Estado e da soberania.

A abordagem que escolhi para a recensão dirige-se à compreensão de como o arquivo pode ser construído alternativamente – denominado radical, ativista, contestatário, dissonante. Usarei para os variados casos o último termo, cunhado neste título. Entendo que a faceta mais original deste livro é a adoção das perspetivas de pessoas implicadas nesse trabalho de arquivamento. Nos casos apresentados, essas pessoas são criadoras artísticas, escritoras, investigadoras, jornalistas, professoras, não especialistas em arquivo. Enquanto umas recorreram a fundos pré-existentes, outras constituíram-nos, confrontadas com vazios documentais ou com destruições intencionais e colaterais associadas a conflitos, ou ainda para preservar o arquivo criado no decurso dos seus próprios projetos de intervenção artística.

A extensa coletânea merece uma leitura atenta do texto, eventualmente mais atenta ainda às imagens e ao modo como são inseridas e apresentadas numa cuidada e simples gramática bilingue palavra-imagem. Se a perspetiva de conceção da coletânea é incomum, se a narrativa textual seduz tanto como surpreende – uma linguagem fluente, simultaneamente quotidiana e de crítica estética, técnica, política – o livro é pontuado por finas reflexões a partir de testemunhos coletivos: o que são arquivos “fora do lugar” nos mapas da dominação, e arquivos “fora do tempo” ou, talvez melhor, trabalhados para responder a um outro tempo (Downey, 2015: 20).3

Os 17 relatados e as 34 autorias incorporadas partem do chamado Médio Oriente, mas também do Norte de África (Iraque, Israel, Líbano, Afeganistão, Síria, Jordânia, Turquia, Paquistão, Palestina, Tunísia, Argélia, Marrocos, Egito). A coletânea resulta, segundo o organizador, da vontade de dar uma resposta à crescente cultura visual aí registada e à contraditória condição de um conhecimento que, sendo crescente, se revela compartimentado, proporcionando assim visões limitadas sobre o mundo.

Referir-me-ei, de seguida, a algumas das contribuições da coletânea recenseada que atraíram mais a minha atenção.

Boa parte dos projetos são baseados em fotografia; o vídeo e o cinema em película figuram aqui também. O cartaz político é analisado na sua dupla vertente de material (primário) efémero e de elemento artístico (secundário) reutilizado na fotografia e no filme (Denes, 2015: 64-78).4

A dissonância advém do facto de estes arquivos não se inscreverem na pauta de programas ou desígnios dos poderes instituídos. São antes coleções e arranjos organizativos alternativos, frequentes intervenções ex post facto, que resultam da iniciativa sobretudo de artistas e ativistas, jornalistas – individualmente ou em coletivos –, marcados pela ocasionalidade, por uma organização difusa e dinâmica, pela adversidade da existência e da resistência, e por intencionalidades de um arquivamento em devir. Neste cenário a história não é vista a entrar, ela esteve sempre presente: contingente, flui.

Podem os arquivos estar associados a imagens quotidianas de uma paz ou acalmia social que já foi (Ryzova, 2015: 234-250;5 Cugusi, 2015: 261-351),6 de registos familiares e de estúdios fotográficos (Dabrowska, 2015: 309-330),7 de arte pública e propaganda dos vencedores (Jafri, 2015: 189-193),8 de ações de arte militante (Denes, 2015: 64-78),9 de arqueologia aérea de zonas de extermínio (Cugusi, 2015: 261-351)10 de protestos e exposições ou debates denunciando a opressão racial e colonial (Sela, 2015: 79-89;11 Elias, 2015: 215-231)12 ou de género (Mannes-Abbott, 2015: 109-193).13

Em comum, os vários projetos denotam o sentido da urgência na constituição de um arquivo e o imperativo político e ético de combate ao esquecimento e à rasura. Em comum, uma multi-localidade e uma pluri-contemporaneidade em diferenças que invocam a semelhança. A agulha nestes espaços é atraída pelas ressonâncias do futuro, pelas emergências do presente. A sua matéria são os quotidianos de pequenas ou grandes (des)venturas, as linguagens assumem o desejo e o sonho. A desafeição vai para o orientalismo, a nostalgia, o mito, a inação. Sussan Babaie escreve: “arquivar e enquadrar historicamente” são “instrumentos para fazer arte” (Babaie, 2015: 259).14 Ocorreria chamar-lhes instrumentos para fazer ciência, também.

Do arquivo não emana história – nem arte –, as narrativas têm de ser construídas a partir do trabalho de seleção e interpretação dos seus fundos, em diversos momentos e por diversos agentes sociais. Daí que, de forma irónica e quantas vezes, mesmo os arquivos coloniais, construídos para legitimação e glorificação do poder opressor, possam alimentar contra-narrativas emancipatórias, alterada a finalidade do uso e a perspetiva de interpretação (Sela, 2015: 79-89).15

A efemeridade das culturas e das realizações humanas, corporizadas em grupos sociais e situadas em regiões singulares, é abordada na sua sobreposição à perenidade dos ritmos arquivísticos. Imagens, de um passado muito recente, de edifícios e paisagens urbanas usam-se para convocar os conflitos que os fizeram desaparecer, ao arrepio do mercado da nostalgia (Ryzova, 2015: 232-248).16 A ansiedade hermenêutica no trabalho no arquivo e para o arquivo pode encontrar terreno na análise das imagens de arqueologia aérea capturadas por um drone: sem um traço de vida, a paisagem torna-se abstrata até ao ininteligível, perturbadoramente atraente; vazia de quem a tenha vivido, que significado se lhe atribuirá agora ou futuramente?

O espectro e as sombras são conceitos recorrentes nas contribuições coligidas, o sentido desses termos não decorre da aceitação de determinismos ou inevitabilidades, decorre antes das permanências do passado que perpassam o arquivo e nele assomam a espaços. Nestes arquivos dissonantes reflete-se sobre o presente imaginando as possibilidades do porvir que dentro dele se vão gerando (Mannes-Abbott, 2015: 124).17 Importa preservá-lo como manancial para gerações futuras. Importa que o arquivo se mantenha aberto, que o fluir da história alimente a sede das questões: “O espectro sedutor do arquivo imaginado não deve impedir-nos de ter em conta a materialidade específica, a dinâmica do labor e as estruturas de poder dos arquivos reais” (Ghani, 2015: 43-63).18

Os arquivos dissonantes desta coletânea, arquivos do imaginário, obras inacabadas ou em reescrita, talvez “mais companhia do que ocupação” (Samaha, 2015: 445-448),19 não se delimitam, com as arestas das certezas inabaláveis. Não usam a linguagem do romantismo nem da ingenuidade, celebram as realizações como segmentos de processos. Não abrem mão da promessa – questionar a democracia, a emancipação – e da responsabilidade pelo amanhã – reflexão e compromisso. A busca de uma linguagem própria, fora dos círculos dos grandes média, e de termos endónimos para nomear eventos e classificar itens noticiosos e artísticos – posteriormente arquivísticos – (Holert, 2015: 92-108)20 é um tópico assinável neste livro.

De entre algumas linhas orientadoras de redação coletiva para orientar arquivos dissonantes, As 10 teses do Arquivo publicadas pelo Pad.ma (Public Access Digital Media Archive), referidas frequentemente no livro, são claramente estimulantes. Note-se que o termo “emergência” se usa nas Teses de forma polissémica, na expressão “estado de emergência” – o da imposição e o do desejo –, ou ainda para designar o que é emergente na história e o que é inadiável. “O arquivo não é cena de redenção”,21 diz num dos seus pontos:

Haja a imaginação do arquivamento de se resgatar desta política da redenção, terá de permitir uma contingência radical do comum. Terá de se comprometer com ‘formas de vida’ que vão além do olhar totalizante do estado, bem como do seu redentor outro. A contingência radical reconhece as possibilidades de surpresa no arquivo e na possibilidade de uma descida ao comum suspender as urgentes pretensões da emergência.

 

NOTAS

1 Todas as traduções presentes no texto são da responsabilidade da autora.

2 Downey, Anthony (2015), Contingency, Dissonance and Performativity, 30 de maio. Consultado a 30.07.2017, em http://www.anthonydowney.com/2015/05/30/contingency-dissonance-and-performativity-critical-archives-and-knowledge-production-in-contemporary-art-2/.

3 Ver nota anterior.

4 Denes, Nick (2015), “Measures of Stillness and Movement: The Poster in Cinema of the Palestinian Revolution”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 64‑78

5 Ryzova, Lucie (2015), “I Have the Picture: The Making of Photographic Heritage in Contemporary Egypt”, in Anthony Downey (org.) , Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 234‑250.

6 Cugusi, Laura (2015), “Arab Digital Expression Foundation”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 261‑351.

7 Dabrowska, Ania (2015), “Drift/Resolution (from Lebanese Archive), 2013‑14”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 309‑330.

8 Jafri, Maryam (2015), “Independence Days, 2009-ongoing”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 189‑193.

9 Ver nota n.º 4.

10 Ver nota n.º 6.

11 Sela, Rona (2015), “Rethinking National Archives in Colonial Countries and Zones of Conflict: The Israeli‑Palestinian Conflict and Israel’s National Photography Archives as a Case Study”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 79‑89.

12 Elias, Chad (2015), “The Museum Past the Surpassing Disaster: Walid Raad’s Projective Futures”, in Anthony Downey, (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 215‑231.

13 Mannes‑Abbott, Guy (2015), “This is Tomorrow: On Emily Jacir’s Art of Assembling Radically Generative Archives”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 109‑193.

14 Babaie, Sussan (2015), “The Global in the Local”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 251‑260.

15 Ver nota n.º 11.

16 Ver nota n.º 5.

17 Ver nota n.º 13.

18 Ghani, Mariam (2015), “‘What We Left Unfnished’: The Artist and the Archive”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 43‑63.

19 Samaha, Lucien (2015), “Interview with Walid Raad”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 445‑448.

20 Holbert, Tom (2015), “Coming to Terms”, in Anthony Downey (org.), Dissonant Archives. Contemporary Visual Culture and Competing Narratives in the Middle East. London: I. B. Tauris, 92‑108.

21 Tese n.º 4, consultada a 30.07.2017, em https://pad.ma/documents/OH.

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