Considerações iniciais
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)1 é a lei brasileira que define que adolescentes julgados por terem cometido um ato infracional2 devem receber sanções de caráter educativo, chamadas de medidas socioeducativas. Mas recorrentes notícias sobre o sistema socioeducativo3 brasileiro indicam que as instituições direcionadas ao/à adolescente rotulado/a como “em conflito com a lei” estão muito distantes de qualquer ideal reabilitador. As circunstâncias de superlotação e precariedade que marcam o sistema socioeducativo fortalecem grupos que defendem que questões de gênero e sexualidade devem ser encaradas de forma secundária (D’Angelo e Garay Hernández, 2017), já que haveria direitos “mais urgentes” para atender nesse contexto. Este artigo almeja trazer elementos para problematizar esses discursos, bem como alguns não-ditos generificados, isto é, relativos às relações de gênero existentes na rotina de centros de internação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE)4, instituição responsável pela execução da medida socioeducativa de internação5 no estado do Rio de Janeiro. Chamamos de “não-ditos” aquelas expressões que não são assumidas como generificadas, como se nossos/as interlocutores/as não estivessem falando sobre gênero. No entanto, nossa análise demonstrará que não se trata apenas de normas imparciais de conduta, mas de expectativas de gênero que não são vistas como tais pelos atores da medida socioeducativa de internação. Tais expressões revelam que nada precisa ser explicitado sobre gênero para que os atores compreendam a necessidade de se comportarem de modo a reforçar as expectativas de gênero colocadas. Tais reiterações e não-ditos generificados são fundamentais para a compreensão das interações cotidianas da instituição, mas não são vistos como relevantes pelos atores que habitam o espaço socioeducativo.
Para tanto, colocaremos em diálogo os resultados de duas pesquisas empíricas,6 que sob diferentes perspectivas detectaram a existência de uma masculinidade modelar que atravessa discursos e práticas nos centros de internação do Rio de Janeiro. A força dessas reiterações e não-ditos está justamente na maneira imperceptível com que são encarados, e assim dimensões de gênero são naturalizadas e, portanto, consideradas parte a-histórica da instituição. Destarte, este artigo articulará resultados da pesquisa para a tese em psicologia social de Jimena de Garay Hernández (2018)7 com as discussões propostas pela pesquisa para a tese em sociologia de Juliana Vinuto (2020).8
O primeiro caso (Garay Hernández, 2018) trata de cartografia feminista em uma unidade masculina de internação do DEGASE sendo que a autora, a partir de uma pesquisa-intervenção, realizou, de 2014 a 2017, entrevistas, atividades em grupo e cursos com 163 jovens privados de liberdade e 50 profissionais para compreender os dispositivos de gênero e sexualidade de maneira a pensar como estes organizam a disciplina e o controle no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que sofrem resistências e produzem singularidades.
Já o segundo trabalho (Vinuto, 2020) se refere a uma pesquisa de campo realizada entre 2016 e 2019 em duas unidades de internação do DEGASE, sendo uma masculina e outra feminina, com foco nos agentes socioeducativos, profissionais responsáveis pela segurança de adolescentes e servidores/as. O objetivo desta pesquisa foi o de compreender como esses profissionais se orientavam a partir de duas demandas vistas por eles como contraditórias, a segurança e a socioeducação, e se baseou em: materiais jornalísticos sobre o DEGASE, materiais bibliográficos e institucionais produzidos pelo e sobre o mesmo ou ainda materiais disponibilizados em sites e redes sociais desse Departamento e do seu sindicato; entrevistas semiestruturadas com 20 agentes socioeducativos (homens e mulheres)9; eventos e cursos oferecidos pelo DEGASE aos seus profissionais; diversas conversas informais com agentes socioeducativos em situações diversas, todas elas anotadas em diário de campo; eventos organizados pelo Poder Judiciário e pelo Poder Legislativo sobre o Departamento, como audiências públicas ou debates da Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro.
A partir de diferentes perspectivas e com ênfases diversas, tais pesquisas se debruçaram sobre as regras implícitas das masculinidades valorizadas no espaço da internação. Nas relações entre homens, Welzer-Lang (2001) ressalta a centralidade de lugares monogenerificados, considerados exclusivos para homens, o que estruturaria o masculino de modo a inculcar a ideia de que, para ser um (verdadeiro) homem, deve-se combater os aspectos que podem associá-los às mulheres. Esses espaços são chamados pelo autor de “casa-dos-homens” e são centrais sobretudo na adolescência, momento em que a homossociabilidade se fortalece e faz com que os meninos aprendam modelos de comportamento das gerações precedentes. Mas há também outras casas-dos-homens como “os cafés, os clubes, até mesmo as vezes a prisão, onde é necessário sempre se distinguir dos fracos, das femeazinhas, dos ‘veados’, ou seja, daqueles que podem ser considerados como não-homens” (ibidem: 465).
Ao sermos mulheres feministas pesquisando uma casa-dos-homens, tanto a relação homens/mulheres quanto a relação homens/homens impactou nossas possibilidades de pesquisa. A partir da leitura de feministas que frisam a articulação entre vários marcadores sociais da diferença (Butler, 2003; hooks, 2004; Viveros Vigoya, 2002), observamos que as dinâmicas de opressão são atravessadas por inúmeras dimensões, como raça, classe, geração e território. Portanto, a análise da nossa presença nesse espaço sempre levou em conta que, apesar das relações entre homens e mulheres estarem marcadas pela subordinação das segundas, não éramos apenas mulheres sobre as quais os homens interlocutores da pesquisa exerciam poder; éramos, em contraponto com os jovens, adultas e livres (pois não estávamos privadas de liberdade), e em contraponto com muitos/as agentes, pertencentes a uma instituição acadêmica prestigiada. Esses e outros elementos da nossa posição no tecido social complexificavam nossas ações durante a pesquisa de campo, e por isso nos distanciamos da crença na existência de “sujeitos exclusivamente dominados, como as mulheres, ou exclusivamente dominantes, como os homens” (Viveros Vigoya, 2018: 23). Um dos efeitos dessas intrincadas relações foi a oportunidade de aprofundar a compreensão sobre homens enquanto sujeitos generificados e que sentem necessidade de atender às normas de gênero específicas do contexto de privação de liberdade, sobretudo no que se refere à obrigatoriedade de uma performatividade violenta.
Ao acessar esse espaço de homossociabilidade masculina cujas performances demonstram aversão ao feminino, pudemos acessar discursos e práticas que complexificam normas de gênero. Ao entender tais normas como relacionais, foi possível compreender que estas oprimem todos/as aqueles/as tidos/as como fora da norma. O objetivo aqui é pensar de maneira intersecional e em uma chave feminista, a fim de compreender como nossas vidas são organizadas em torno de questões de gênero (Kimmel e Messner, 1989), produzindo não apenas trajetórias individuais, mas também políticas institucionais implícitas que perpetuam a violência machista. Assim, foi possível perceber como a construção do masculino num contexto já masculinizante é, ao mesmo tempo, submissão ao modelo hegemônico de masculinidade (Connel e Messerschmidt, 2013) e obtenção de privilégios a partir dessa submissão, já que garante as credenciais masculinas necessárias na construção de um “sujeito-homem”, ou um “homem com postura”, expressões sobre as quais nos debruçaremos. Desconsiderar esses modelos de masculinidade apenas porque não são assumidos como norma historicamente construída, “significa elevar o sujeito masculino ao estatuto universal, levando à produção de teorias que não só são parciais, mas que mascaram a sua parcialidade através de reivindicações de universalidade” (Wadley, 2010: 38).10
1. Estudos sobre masculinidades
Segundo Francisco Aguayo e Marcos Nascimento (2016), os estudos sobre masculinidades na América Latina começaram a se consolidar nos últimos anos da década de 1990, momento em que os homens passaram também a ser entendidos enquanto objeto de reflexão e análise. Uma premissa importante destes estudos é que, para romper o paradigma de iniquidade baseada no gênero, é necessário também considerar os homens enquanto seres generificados.
Para Mara Viveros Vigoya, considerar os homens enquanto atores sociais dotados (e produtores) de especificidades de gênero “subverte uma ordem social na qual só as mulheres têm sido marcadas pela diferença” (Viveros Vigoya, 2002: 42). A autora também aponta que as primeiras a embarcarem nesses estudos na América Latina foram mulheres feministas, e menciona algumas, tais como: Ondina Fachel, na sua pesquisa sobre gaúchos brasileiros em 1989; Magaly Pineda, na sua pesquisa sobre homens e poder na República Dominicana em 1991; Teresa Valdés e Sonia Montecino, nas pesquisas sobre masculinidades no Chile desde 1995; Norma Fuller, no seu estudo sobre identidades masculinas de homens de classe média no Peru em 1997; entre outras. Para Rosely Costa (2002: 219), o movimento feminista, “ao discutir as formas de relações de poder entre homens e mulheres, e ao promover mudanças experimentadas por homens e mulheres, colaborou para o surgimento de várias formas de questionamento sobre a masculinidade”. No entanto, análises críticas do percurso desses estudos têm apontado um escasso diálogo com os feminismos e o movimento de mulheres (Aguayo e Nascimento, 2016), o que tem resultado em proposições que, ao se debruçarem na chamada “crise da masculinidade”, tendem a vitimizar os homens (Nascimento, 2007) e a reivindicar uma flexibilização dos papéis de gênero, ao invés de priorizar mudanças nas dinâmicas de poder nas quais mulheres são oprimidas e violentadas (Costa, 2002). Desta forma, as pesquisas sobre masculinidades que partem de uma perspectiva feminista buscam justamente explorar, entender e transformar essas dinâmicas, compreendendo os mecanismos de manutenção das normas de gênero.
Dito isso, as masculinidades são entendidas como “configurações de práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário social particular” (Connell, 2013: 250). Miguel Vale de Almeida (1996: 163) aponta que “a masculinidade não é a mera formulação cultural de um dado natural; e que a sua definição, aquisição e manutenção constitui um processo social frágil, vigiado, auto-vigiado e disputado”. Assim como este autor, nos referimos a um universo concreto, onde discursos sobre masculinidades circulam e são agenciados em uma série de normas, corpos e práticas. Nesse processo, as relações se definem no fluxo da ação e do patrulhamento dos pares masculinos (Nascimento, 2011).
A noção de masculinidades aqui trabalhada se refere a modelos que se atualizam constantemente em práticas concretas, que estão em disputa e que se afirmam em relações de poder (Costa, 2002). São interdependentes, múltiplas, e com efeitos performativamente produzidos e impostos por práticas reguladoras da coerência do gênero, o que nos faz pensá-las na perspectiva de Judith Butler (2003). Assim, as performatividades masculinas são repertórios que se instituem nos corpos, enquanto inteligíveis através das normas de gênero, em códigos, regras morais e reiterações que as cristalizam em modelos de masculinidades, mas que não são fixas nem universais, mas políticas, históricas e intersecionais.
A partir das discussões apresentadas aqui, discorreremos sobre alguns não-ditos de gênero. Durante nossas pesquisas observamos a existência de um dever-ser, expresso em piadas, apelidos, procedimentos, entre outros, a partir do qual se referem as normas de gênero sem nomeá-las como tais e, principalmente, sem levar em consideração seus efeitos na trajetória de vida dos jovens e dos profissionais do DEGASE, na organização do cotidiano das unidades e na própria política da socioeducação. Nossas discussões se deterão sobretudo em duas expressões que, de diferentes maneiras, expressam os não-ditos aos quais nos referimos, já que falam sobre gênero mas sem dizê-lo diretamente: a demanda colocada aos adolescentes para serem “sujeito-homem”, e aquela direcionada aos agentes socioeducativos que os obriga a “ter postura”. Justamente por não serem verbalmente expressos nem impostos em protocolos, esses não-ditos apresentam convergências e se corporificam a partir da reiteração. Como afirma Butler (2003), essa reiteração tão necessária para a impressão de estabilidade de gênero revela normas implícitas que o tornam inteligível:
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. A genealogia política das ontologias do gênero, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero, desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas várias forças que policiam a aparência social do gênero. (Butler, 2003: 69)
Por isso é importante pensar que os atos são performativos e produzem o efeito de uma substância interna, mas são apenas “fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos” (Butler, 2003: 235). A reiteração das normas de gênero não são apenas repetições, mas também novas experiências, ainda que em uma estrutura de significados já estabelecidos. O aspecto de coesão que pressupõe uma essência decorre dessa repetição constante, indo além das representações canônicas que legitimam binarismos, retirando-o das definições que os naturalizam. Assim, é possível observar o caráter material do gênero a partir de ações performativas.
Como afirma Butler, ser homem ou mulher é um constante processo, uma prática discursiva contínua, e ainda que pareça cristalizado em algumas formas estáveis, são práticas insistentes que podem ser contestadas por outros grupos. Por isso, há a necessidade de reiterações, que por sua vez criam um ambiente de patrulhamento (Kimmel, 2005). Ao olhar para tais patrulhamentos, vemos “hierarquias e disputas internas ao masculino que, ao serem investigadas, podem evitar essencializações e generalizações sobre os homens, além de prescrições universais de comportamento” (Restier, 2019: 24-25). Nas próximas páginas iremos analisar expressões que revelam tais hierarquias e disputas existentes entre diferentes homens em centros de internação do Rio de Janeiro, o que ajudará a dimensionar o caráter generificado de ações tidas como a norma que não precisa ser dita na privação de liberdade.
2. Entre o “sujeito-homem” e o “tudo é questão de postura”: normas e práticas masculinas na medida socioeducativa de internação
O negócio aqui, é fogo aqui na cadeia, sabe? (Bernardo, 18 anos, negro)
Acho complicado [mulher trabalhar em unidade masculina]... Isso é uma cadeia, vamos dizer assim, ninguém chama, mas é. E é um negócio meio machista, bem machista. Tanto que tem até, sem citar nomes, casos de colegas nossos, tipo, não muito firmes, vamos falar assim, que não trabalham na galeria. Fica esquisito. É complicado. (Agente socioeducativo masculino, centro de internação masculino, junho de 2016)
No primeiro apontamento, Bernardo sinaliza a especificidade da intensidade das relações dentro da unidade socioeducativa, que produz e exige estratégias de existência diferentes das vivenciadas fora da instituição. Conforme apontado tanto por jovens como por profissionais, o confinamento deixa os corpos e as relações tensos na política do cotidiano, ainda mais nas condições de superlotação e precariedade das unidades. Nestas condições, as normas e práticas relacionadas ao gênero ganham especificidades, o que faz com que este poderoso dispositivo se atualize como forte instrumento da engrenagem institucional.
Essa intensidade é orientada por estratégias semelhantes àquelas existentes fora do espaço socioeducativo, devido à porosidade de seus muros, perceptível, por exemplo, nas regras das fações.11 Isso fica evidente no segundo trecho de entrevista indicado na abertura desta seção, na qual o agente socioeducativo indica que para exercer sua função é necessário ser “firme”, e que mulheres e homens “não muito firmes” não deveriam atuar no espaço onde ficam os alojamentos dos adolescentes. Este argumento indica uma norma de gênero central no mundo do trabalho, no qual “a virilidade é associada ao trabalho pesado, penoso, sujo, insalubre, algumas vezes perigoso, trabalho que requer coragem e determinação, enquanto que a feminilidade é associada ao trabalho leve, fácil, limpo, que exige paciência e minúcia” (Hirata, 1995: 43). Em um centro de internação, tal compreensão binária e biologizante é a base do argumento de que o trabalho de segurança é realizado de maneira mais eficiente por indivíduos lidos como masculinos, pois características tidas como masculinas facilitariam a implementação de ordem e de disciplina (Vinuto et al., 2017).
Os termos que intitulam esta seção, “sujeito-homem” e “questão de postura”, apareceram recorrentemente nas pesquisas aqui articuladas. A segunda autora se deteve sobretudo no segundo termo, que foi mobilizado principalmente pelos agentes socioeducativos (Vinuto, 2020), enquanto que a primeira autora se debruçou sobre a primeira expressão, utilizada especialmente pelos adolescentes internados (Garay Hernández, 2018). Apesar de despontarem em conversas de grupos diversos de homens, são termos reiterados em um mesmo contexto de privação de liberdade. Por não terem significados óbvios para nós, foi possível interrogar os significados desses termos - causando certo estranhamento nos interlocutores por supostamente ser algo autoevidente -, mas que posteriormente se mostraram bons dispositivos para compreender as regras tácitas de gênero. Apesar de cada termo ser mobilizado por diferentes grupos, há semelhanças nas regras implícitas que as orientam. Elas funcionam como analisadores das performatividades masculinas em processo, no momento em que suas definições são múltiplas e atreladas umas às outras.
A expressão “sujeito-homem” foi enunciada em várias falas dos jovens, e, ao serem questionados nas entrevistas, notamos a existência de uma polissemia que nos possibilitou perceber a complexidade da produção de masculinidades dos jovens, em permanente relação com outros homens e mulheres. Observamos, por exemplo, que para alguns ser “sujeito-homem” tem relação com a “ostentação”, ou seja, a demonstração dos recursos financeiros aos quais se teve acesso através do crime e o decorrente acesso ao poder e às mulheres, como apontado novamente por Bernardo: “tem mulher também que vem na boca de fumo pra vender o corpo em troca de droga, dinheiro, e ali, filha, o cara quê, vai fazer o quê, cara, vai pegar a mulher. Nós somos homem, somos sujeito, somos isso tudo, isso acontece”.
Outros elementos aparecem quando esses jovens explicam o que é ser sujeito-homem, tais como a capacidade de evitar situações de violência, a relação com superiores e a reafirmação da autonomia, o sacrifício pelo grupo, a heterossexualidade e a relevância da honestidade, que vão se entrelaçando, encontrando não só pontos em comum, mas também contradições e acusações. Nesse sentido, há a categoria de respeito ou de honra (Almeida, 1996; Cecchetto et al., 2016), muitas vezes acionada como um valor que se dá de forma relacional e opera através das performatividades e relações de poder, de diferenciação e de dominação. Nessa lógica, o homem é ao mesmo tempo ameaça, controle e contenção da violência e da sexualidade. Alguns exemplos aparecem nas seguintes falas:
Tem outros que acha que ser “sujeito-homem” é tu já, como, como, tu já dar troca de tiro, mas também respeitar o Mano, o Mano é o dono da boca, que tá na frente da favela. (Carlos, 17 anos, negro)
Sujeito-homem é um cara que arca com suas consequências. Independente dele estar fazendo essas coisas [se relacionar sexualmente com outros homens], como tu fez uma coisa, tu não vai jogar pra cima de ninguém, tu vai se assumir, bancar o bagulho[12]. (Emiliano, 19 anos, negro)
Retomando a tensão colocada na última fala, é interessante observar de que forma Emiliano consegue manter o status de “sujeito-homem” mesmo estando envolvido amorosa e sexualmente com outro homem, pois ele comunicou a decisão de assumir o relacionamento ao seu superior no tráfico. É relevante, assim, observar de que forma a masculinidade do “bandido”, categoria que ele reivindica, se constitui como uma complexa gramática, no momento em que ela incorpora, modifica, exacerba e se contrapõe a outros modelos de masculinidade. Ao mesmo tempo, vemos afirmações como as de Israel (18 anos, negro): “Tipo, tu não vai comer... não vai fazer sexo com outro homem, isso não é sujeito-homem”. Quando perguntado se existia essa regra no tráfico, ele confirmou, da mesma forma em que apontou que bater em mulher que “vacila” - que é infiel - também faz parte das regras da fação. Parece importante indagar qual seria a relevância para as fações do modo que esses jovens e suas companheiras vivem suas vidas sexuais e amorosas, o que revela a importância do exercício de poder entre essas organizações e quem as compõe. No entanto, também é interessante perceber que, mesmo que a expressão “sujeito-homem” e as normas que esta carrega estejam atreladas ao tráfico de drogas, elas fazem parte de um campo mais amplo de relações de gênero, poder e autonomia, como apontado por Jesus (17 anos, negro): “antes de eu ser ‘bandido’, eu sou ‘sujeito-homem’”.
Por sua vez, o termo “ter postura”, mobilizado pelos agentes socioeducativos, se refere sobretudo a uma orientação de conduta pertinente ao local de trabalho. Não se trata de uma regra estritamente operacional, mas também moral e fortemente generificada que envolve diversas dimensões. Muitos entrevistados, quando questionados sobre o significado do termo, inicialmente hesitavam, riam ou gaguejavam, mas acabavam por apresentar como resposta elementos como coragem e combatividade, em que a interdição de diálogo e de empatia era vista como benéfica para o disciplinamento do adolescente e para a manutenção da ordem na unidade.
Mas nem todos os agentes socioeducativos detêm as mesmas ferramentas para demonstrar que “têm postura”. Aqueles que desejam interagir com os adolescentes, criando um vínculo afetivo a partir de uma postura aberta ao diálogo, são considerados como profissionais que detêm uma imagem ineficiente para demonstrar aos demais colegas de trabalho que também “têm postura”. Assim, a possibilidade de “ter postura” vincula-se, mesmo que de maneira despercebida, ao que é considerado um comportamento modelar masculino. Por isso, mulheres são vistas como naturalmente distantes dessas características e, portanto, têm mais dificuldade em performar a “postura” adequada. Isso fica particularmente ilustrado no trecho abaixo:
A figura masculina impõe força, eles [os adolescentes internados] acham que toda mulher é frágil. Se um homem der um grito eles vão se assustar, e se a gente der um grito vão dizer que é histérica. Mas aí é o que eu te falei, tudo é questão de postura. (Agente socioeducativa feminina, centro de internação feminino, junho de 2016)
Vemos aqui que nem todos os/as agentes produzem o mesmo resultado se agirem de modo agressivo, pois enquanto que os homens conseguem projetar a ideia de controle, as mulheres são consideradas histéricas. Isto é, mulheres enfrentam mais dificuldades em agir com postura perante os adolescentes, já que a imagem masculina basta para personificar uma autoridade coercitiva. Processo semelhante ocorre com as/os profissionais mais alinhadas/os à socioeducação, inclusive os homens. Por exemplo, os agentes que se esforçam em estabelecer uma relação menos hierárquica com os adolescentes são tidos como aqueles que “não têm postura”, sendo considerados femininos por supostamente serem “emotivos” ou “covardes”. Assim, a demanda por “ter postura” desqualifica o que é tido como feminino, inclusive as tentativas de atuação alinhadas à educação, tidas como desarrazoadas em um contexto no qual a exigência por ordem e controle é central.
Outra dimensão generificada pode ser vista no trecho de entrevista que se segue:
Mas assim, tudo é questão de postura. Desde que se tenha postura acho que não faz diferença [ser um agente socioeducativo heterossexual ou homossexual]. Se tiver uma postura firme com eles, saber colocar o adolescente no lugar dele, na condição dele de socioeducando, aí eu acho que não difere se é homossexual ou heterossexual. Não vai fazer diferença nenhuma, é tudo uma questão de ter postura mesmo. (Agente socioeducativo masculino, centro de internação masculino, março de 2016)
Aqui vemos um agente socioeducativo que explica que a orientação sexual desses profissionais não é um impeditivo para o exercício da função, “desde que” saibam colocar” o adolescente no “lugar” dele. Vemos que gênero e sexualidade parecem dimensões secundárias nos centros de internação, mas são demandas centrais para a para a manutenção de uma imagem de profissional confiável, competente e corajoso/a: “saber colocar o adolescente no lugar dele” parece algo objetivo, mas há expectativas diferenciadas sobre a possibilidade de homens e mulheres conseguirem fazer isso.
Grande parte desses profissionais sentem que devem corporificar controle, hierarquia e autoridade frente à performatividade dos adolescentes. Isso fica nítido nas movimentações dos adolescentes para a realização de atividades, momento no qual usualmente há um grupo deles acompanhados de um ou dois agentes socioeducativos, com os primeiros sempre com as mãos para trás das costas e a cabeça baixa, sendo esta uma posição vista como forma de prevenção de conflitos (Vinuto, 2020). Porém, essa relação de forças é constantemente interpelada, seja nas constantes ameaças de represálias que seriam realizadas contra os agentes após a desinternação dos adolescentes, nas tentativas ou na realização de fugas e rebeliões, ou ainda nos questionamentos diretos ou indiretos por parte dos jovens a esses profissionais.
As demandas por “ter postura” e para ser “sujeito-homem” são complexas e multifacetadas, mas o diálogo entre as duas referidas pesquisas permitiu verificar a agressividade como atributo exemplar em ambos os contextos. Desse modo, observou-se certo papel legitimador na agressividade, que permite a positivação de algo que, em outros contextos, poderia ser criticado ou ainda tido como a razão da opressão de profissionais e adolescentes. Isso ocorre porque, ao mobilizar elementos que ressaltam o imperativo da agressividade, esses diferentes homens fortalecem estereótipos relacionados com a existência de uma natureza violenta: os agentes socioeducativos passam a ser todos tidos como torturadores, enquanto todos os adolescentes são vistos como bandidos cruéis. Vale destacar que muitos deles subjetivam essas expectativas e passam a se definir com base nelas.
Na próxima seção discorreremos sobre os efeitos desse contexto no qual a agressividade torna-se elemento central nos modelos prestigiados de masculinidade, produzindo disputas e polarizações.
3. Vagabundos, vermes, bandidos, pão doce, linha dura… múltiplas rotulações e a produção cotidiana de polarizações
Escuta uma coisa, vocês mulheres têm aqui uma visão. Nós menino que tamos aqui dentro, é outra visão, totalmente diferente. Que estamos uuuurrrrhh, como aquele nervosismo total. E os cara “vamo logo”! (Israel, 18 anos, negro)
Nessa fala Israel afirma que a unidade socioeducativa é um mundo exclusivo que só os homens conhecem, vivenciam, disputam e sofrem, uma casa-dos-homens que produz, reifica e transforma performatividades masculinas, tais como “meninos” e “caras”. “Os cara”, que ele logo depois sinalizou serem os agentes socioeducativos, constituem um grupo oposto aos jovens, que exerce autoridade, dá ordens, mas que também disputa performatividades, gerando o que Israel identifica como nervosismo, que foi nomeado em outros momentos de “neurose” - que, segundo Carla Mattos (2016), pode ser entendida como um conflito ancorado numa polarização violenta. Assim, estar “nervoso” ou “neurótico” significa estar ansioso, à espera, compreendendo a ameaça mas com uma possibilidade de resposta, de reação e, portanto, de participação no jogo masculino de poderes, do qual “vocês mulheres” não têm uma visão precisa. Como sinalizado por um agente socioeducativo, “para sobreviver no DEGASE, tem que ser homem”.
Segundo Helen dos Santos e Henrique Nardi (2014: 932), no contexto da prisão, “para sobreviver, os homens necessitam reiterar uma masculinidade que se fortalece a partir de relações conflituosas e hierárquicas”. De forma semelhante, as unidades socioeducativas masculinas se constituem como uma instituição onde, para sobreviver e ser respeitado, é necessário acionar certas performatividades masculinas. Tanto a demanda por “ter postura” quanto a imposição em ser “sujeito-homem” ilustram a centralidade da agressividade nos centros de internação. Em um contexto de precariedade, privação de liberdade e superlotação, a competitividade pelo alinhamento a modelos mais valorizados de “ser homem” torna-se ainda mais dramática, e aqui a agressividade é vista como um talento individual que almeja a superioridade nas relações institucionais. Mas apesar dessa tentativa de alinhamento ao que é hegemônico em termos de masculinidade, a agressividade não acarreta nada além de um “privilégio subordinado” (Custódio, 2019: 147), já que não pode reorganizar a estrutura econômica ou racial na qual esses sujeitos estão inseridos. Afinal de contas, trata-se em grande parte de homens negros oriundos das classes populares, uns presos e outros ocupando posições profissionais desprestigiadas. Dessa forma, a agressividade torna-se uma maneira de remediar a posição desprestigiada que esses sujeitos ocupam na sociedade mais ampla, mas sua positivação não acarreta benefícios estruturais.
As expressões “sujeito-homem” e “ter postura” indicam um dever-ser masculino que, ao serem articuladas com dimensões de classe, raça, geração, entre outros, permitem perceber disputas tanto intragrupos - por exemplo, entre diferentes jovens ou diferentes agentes socioeducativos - como entre grupos diversos, isto é, entre adolescentes internados e profissionais. Em todos os casos há uma lógica de oposição entre uma atitude definida como certa e as demais formas de atuação tidas como necessariamente erradas. Estes termos se orientam por uma masculinidade modelar, nos quais há especificidades que revelam como as regras e moralidades impostas se diferenciam dependendo do grupo de homens, além de demostrarem tensões entre o que é regulado, reforçado e justificado por eles mesmos. Podemos pensar nas disputas entre essas performatividades em um campo tenso de regulações, transgressões e contestações que atuam ao mesmo tempo, sem se suprimirem.
Como já apontamos, a relação entre os agentes socioeducativos e os jovens costuma ser bastante travada, pois dependendo do momento político, da fação à qual os jovens pertencem e do ritmo do alojamento - ou seja, de quão apegados estão às regras das fações -, os jovens são ou não autorizados a falar com os agentes para além do necessário - regra que inclusive vimos por escrito em um alojamento e já foi tema de reportagens13 -, estando proibidas trocas de contato físico, afeto e palavras, sob ameaça de retaliações. Alguns agentes relataram tentar quebrar estes comportamentos, especialmente nos encontros individuais com os jovens. Por sua vez, alguns jovens apontaram que conseguem abraçar o papo de alguns agentes, dependendo se estão sozinhos, do clima da unidade e da postura do agente. É interessante como a postura aparece novamente, desde outro ponto de vista, mas novamente atrelada às relações entre os homens.
Tanto a celebração como as tentativas de controle ou de eliminação da masculinidade do bandido ilustram a relação entre vários modelos hegemônicos de masculinidade, sendo esta atravessada por disputas e questionamentos que complexificam a ideia de uma primazia, fazendo emergir conflitos que alteram o equilíbrio de forças entre os diferentes tipos de masculinidade. Como ressalta Osmundo Pinho, falar em masculinidade hegemônica não é falar de um modo absoluto de ser homem, já que um mesmo indivíduo ocupa posições subalternas ou superiores, a depender do contexto: “hegemônicos e subalternos não estão definidos essencialmente, mas sim como sujeitos políticos engajados em jogos de poder e dominação que ocorrem em contextos sociais estruturados, porém abertos à inovação” (2004: 65; itálicos no original).
De forma articulada com as acusações de classe, raça e geração que alguns termos carregam, tais como menor infrator, marginal e vagabundo, é interessante perceber de que forma essas acusações são acionadas nas disputas de masculinidades no cotidiano das unidades - principalmente entre jovens e agentes, entendidos enquanto opostos, mobilizando uma lógica de guerra. Destarte, a violência entre homens como expressão das relações de poder é um dos eixos centrais da produção de masculinidades (Kauffman, 1997).
Através da narrativa da escolha, isto é, da ideia de que jovens deliberadamente escolhem “fazer o mal” independentemente das condições históricas, políticas e culturais que produzem suas subjetividades, as problemáticas se individualizam e se propõe uma socioeducação que projete futuros homens trabalhadores, honrados, bons, de certa forma silenciados, como se não existisse possibilidade de subversão que não fosse violenta. Nesse contexto, os confrontos físicos e verbais entre jovens e agentes, assim como a constante possibilidade de estes acontecerem, foram relatados em ambas as pesquisas, incluindo uso de spray de pimenta e punições físicas por parte dos agentes, bem como rebeliões, fugas e agressões por parte dos jovens. Agentes relataram casos em que jovens querem botar moral nos agentes, enquanto jovens sinalizaram, muitas vezes de maneira sarcástica, que quando estivessem livres poderiam reagir às violências sofridas, como quando um adolescente disse que ia jogar futebol com a cabeça do agente quando fosse desinternado.
Aqui é importante apontar que, na linha argumentativa de que a segurança é a dimensão central do sistema socioeducativo, a violência é muitas vezes legitimada por parte dos/das agentes, pois eles/as a usam em uma perspectiva disciplinadora e de gestão de riscos. E quando ela é questionada, muitos deles/as a reivindicam, tal como sinalizado por um agente que relatou que uma psicóloga tinha orientado “que se um adolescente bater na nossa cara, a gente tinha que dar dois passos para trás”. Mas se isso acontecesse, o agente afirma: “Acabou, a gente perde a casa se fizermos isso”.
Mas nem todos os agentes agem da mesma forma. São conhecidas duas figuras como polos extremos da atuação entre agentes socioeducativos: os agentes truculentos ou linha dura e os agentes pão doce ou mamãezada. Os primeiros, identificados como pertencentes ao “antigo paradigma” antes da promulgação do ECA, parecem aderir à ideia de que uma performatividade violenta é necessária para a manutenção da ordem no espaço, mas também ocupando e reificando esse lugar tendo por base os seus próprios objetivos. Os segundos “tentam amaciar os meninos no diálogo”, produzindo alguns vínculos de confiança. Essas figuras se contrapõem, se complementam e se articulam em diversas relações com os jovens, com outros segmentos de profissionais e com as direções das unidades. Destarte, a relação entre agentes e jovens nem sempre é confrontativa, como apontado por um diretor de unidade, que sinalizou constantemente insistir com os jovens que “briga de fação tem que ficar fora da unidade, aqui são todos adolescentes”, “não importa se matou dois lá fora, aqui é adolescente”, “aqui não trabalhamos com vagabundo, vocês são sujeitos de direitos e têm que se comportar como tal”.
Como observado até aqui, não é possível discutir as características atuais dos centros de internação cariocas sem levar o aspecto de gênero em consideração. Apesar de nem sempre percebidas, expectativas de gênero são centrais nessa casa-dos-homens que, dada sua particularidade em ser privativa de liberdade, potencializa disputas em torno das masculinidades almejadas. Tal contexto tem inúmeras reverberações para fora dos muros das unidades do DEGASE. Uma das mais preocupantes, por atravancar ainda mais a dimensão educativa da medida de internação, são os inúmeros projetos de lei (PL), a nível estadual e federal, que autorizam porte de armas para agentes socioeducativos.14 O porte de armas para agentes socioeducativos, ainda que apenas fora do expediente de trabalho, descaracteriza o duplo objetivo sancionatório-educativo e o torna meramente punitivo (Vinuto e Duprez, 2019). Há inúmeros debates sobre o que é socioeducação, e todos eles passam pela centralidade do diálogo. Mas se o uso do armamento, mesmo que apenas a partir da ameaça, é tido como razoável, restringem-se ainda mais as possibilidades de interação com o adolescente internado.
Muitos agentes socioeducativos contrários ao porte de armas afirmam que apenas os profissionais que “não se garantem” ou os mais “linha dura” demandam armamento, já que seria mais fácil manter a ordem com a ameaça armada do que “eu vir igual a você, desarmada e tal, e te convencer de que aquele teu comportamento não é o comportamento adequado pra aquela situação” (Vinuto, 2020). Esta explicação traz elementos que demonstram como a arma - ou só a ameaça de a utilizar - tem o poder de encerrar o diálogo e subjugar o outro. Porém, independentemente dessas narrativas contrárias ao porte de arma construídas por muitos agentes socioeducativos, é necessário destacar que a sensação de medo é real e muitos profissionais demandam armamento em busca de maior sensação de segurança.
A demanda pelo porte de armas também é atravessada por dimensões simbólicas, como a própria naturalização de demandas generificadas no espaço socioeducativo. A arma é mais do que um objeto que pode reorganizar as relações de poder, sendo também um emblema (Bittner, 2017: 196), se revelando como um signo de virilidade (Cecchetto, 2004) e autoridade (Souza, 2005) que serve como ferramenta relevante na produção de uma imagem masculinizada (Santos, 2012). Em um contexto de casa-dos-homens, na qual a agressividade é característica central e onde há masculinidades modelares em enfrentamento, as associações decorrentes do uso da arma de fogo se tornam elementos relevantes na polarização entre agentes socioeducativos e adolescentes. Dessa forma, a arma acaba se tornando parte da indumentária masculinizante e securitária que abre mão da socioeducação em prol da lei e da ordem.
Somado a isso, o próprio porte de armas torna-se um elemento que produz a imagem de periculosidade que é atribuída ao adolescente internado (Vinuto, 2020) e confirma a masculinidade de ser “bandido”, reafirmada por alguns jovens. Como já dissemos, os adolescentes de fato ressaltam sua masculinidade de “bandido” a fim de fazer frente aos profissionais da instituição. Mas nesse mesmo movimento está a confirmação de que a única resposta do Estado tem sido reforçar essa masculinidade, não apresentando elementos que ofereçam outras possibilidades de vida a esses jovens.
Nesse sentido, verifica-se que demandas aparentemente objetivas e não generificadas, como “ter postura”, acarretam necessariamente uma atuação organizacional generificada, baseada no imperativo da segurança, o que torna “razoável” o porte de armas. E assim, procedimentos de segurança são vistos como trabalhos masculinos, enquanto a socioeducação é vista como trabalho e visão femininos e, como é tida como impossível, é duplamente marginalizada: porque é feminina em uma casa-dos-homens, e por ser vista como inadmissível em uma unidade superlotada que abriga adolescentes masculinos tidos como perigosos.
Considerações finais
Como expressamos ao longo do texto, em uma instituição na qual performatividades masculinas são recorrentemente reiteradas, elas vão estabelecendo acirradas disputas, mas também alianças, fluxos, cuidados e reciprocidades que revelam limites de pertencimento, reconhecimento e representatividade. Esse processo foi percebido especialmente em um curso de extensão sobre gênero e sexualidade oferecido a profissionais como parte da pesquisa-intervenção da primeira autora, onde apareceram importantes elementos para a análise das polarizações e coalizões estabelecidas nos não-ditos. O objetivo do curso era implementar o uso de preservativo na unidade, diante de um cenário de contágio de Infecções Sexualmente Transmissíveis; mas, nesse contexto, implementar o preservativo implicaria assumir institucionalmente que esses bandidos, menores de idade heterossexuais na casa-dos-homens, estavam se relacionando sexualmente entre si. Nesse processo, observamos gestos de apoio, de provocação e de cumplicidade entre agentes e jovens, que mobilizavam construções homofóbicas, evidenciando a heterossexualidade compulsória como um elemento de ambos os modelos de masculinidade, e estavam carregados de um cinismo viril que mais uma vez dava ideia que nós, pesquisadoras, não “entendíamos nada” do DEGASE, e que a implementação do preservativo seria inviável.
Por outro lado, a partir de metodologias participativas, o curso ofereceu a oportunidade para que alguns agentes socioeducativos interessados em modificar as relações e em garantir os direitos dos jovens se apropriassem de linguagens e perspectivas para se aproximarem dos adolescentes e conversar sobre situações relacionadas à sexualidade - tanto no sentido dos prazeres e da prevenção, quanto no da violência sexual vivenciada por alguns jovens -, diálogo até então considerado impossível.
Com este estudo - bem como com o vasto material de campo de ambas as pesquisas, parte do qual apresentamos aqui - vemos como o gênero se constitui enquanto dispositivo central para entender as interações cotidianas nas unidades socioeducativas. Em sua potência normativa, altamente naturalizada, o gênero materializa as tensões entre punição e educação, chegando em muitos momentos a violências e rivalidades irreconciliáveis e, portanto, a uma impossibilidade de efetivação da socioeducação. Essa tensão micropolítica está profundamente imbricada com políticas voltadas à educação, segurança, trabalho e saúde que atingem a população brasileira, especialmente aos setores aos quais pertencem os jovens que, pelas malhas da seletividade penal, acabam sendo os alvos prioritários da privação de liberdade como modo de controle social.