Poder-se-ia antecipar uma reformulação simples dentro de uma linha de pesquisa consagrada, mas não o é. Poder-se-ia imaginar o acrescento de uma perspetiva, de novos dados, mas este livro também não o é. Publica, antes, investigação recente e esclarecedora sobre muitas questões relativas ao digital, nomeadamente sobre uns quantos mitos na área, dos quais destaco o da democratização que decorreria de mais acessos e das competências ou o da contaminação de práticas entre grupos sociais como consequência de mais formas de sociabilidade em rede. Comunica teoria e resultados que se foram consolidando entre as dez pessoas autoras que na obra se cruzam e dialogam, aponta para as mudanças na lectoescrita digital em períodos temporais que podem ir de uma a duas décadas. Esclarece sobre linhas de continuidade nesta investigação, aprofunda e expande com mais pesquisa.
O gosto e o incitamento a ler a coletânea1 recém-publicada virá da invocação do legado de autores como Olivier Donnat, Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron e Bernard Lahire para uma sociologia do livro, da leitura e da escrita - campos que em França têm vindo a ser cultivados com continuidade. Mas decorre sobretudo da teorização retrabalhada sobre a necessidade de cruzar o digital com as sociologias da leitura, da cultura e ainda com a da educação. Este é seguramente um dos aspetos mais fortes e cruciais da publicação. Atrativa também é a mudança na investigação do digital nos dias atuais, com enfoque não limitado à importância das práticas de apropriação de objetos leiturais mas que se expande no sentido de uma “sociologia do ordinário e das artes de fazer”,2 usando as palavras de Serge Proulx (p. 9). Sintomática desta visão é a inclusão de um capítulo sobre percursos no envolvimento e empenho de wikipedistas, os quais são colocados em relação com o percurso da regulamentação da própria Wikipédia. Ou, mais inesperado, um capítulo sobre a observação de práticas digitais musicais no festival Rencontres Trans Musicales de Rennes, onde uma apropriação cultural e convivial diversa é facilitada pelo uso dos ecrãs. Com ele se concretiza, de modo singular, um posicionamento para uma visão abrangente: a competição por atenção e pelo tempo de quem lê faz-se também por outras expressões do digital cultural, a serem tidas em consideração.
Da coletânea destaco alguns aspetos que poderão ser, senão surpresa, talvez chamamento a uma leitura integral.
A abrir, a “Introduction” cita e lembra Jean-Claude Passeron: a leitura mostra-se “como o mais engenhosamente polimorfo dos atos culturais” (p. 7). Segue e apresenta brevemente uma evolução nos dados estatísticos, desde 2000, referentes a acesso e uso do digital pela população total, à presença do sexo feminino e ainda à estratificação social das práticas adolescentes na Internet, da sua finalidade e intensificação ao longo do percurso escolar. Face ao alargamento do acesso à Internet, a “Introduction” lança um olhar crítico sobre o significado destes dados, tanto nas dimensões de classe como na de género, como também sobre as práticas culturais e educativas digitais. O alargamento não é equivalente a uma democratização. Expõe-se e concretiza-se como as desigualdades sociais no digital vão para além do acesso a equipamentos e conexões, ou mesmo do tempo empregue na Internet. Avança-se, por exemplo, que as crianças de meios populares não são socializadas cedo com as competências e disposições requeridas pelo digital, sobretudo em formas mais sofisticadas de leitura e escrita, pese embora o grande aumento no tempo que lhes é dedicado. A origem social permanece um marcador central.
No que toca à leitura de livros são sinalizadas grandes linhas de força, não antagónicas em geral, durante as duas décadas recentes. Por um lado, um decréscimo acentuado no número declarado de livros lidos pelos franceses em cada ano, denotando um enfraquecimento do valor do livro como símbolo de distinção e de legitimação social. Verifica-se que a leitura de livros baixou se comparada com o tempo dedicado a audiovisuais, em subida continuada. Entende-se que mudou não só o que é lido, mas as modalidades de leitura: lê-se menos linearmente, em progressão (romances); lê-se mais de forma fragmentada e tabular, em consulta (livros práticos, ensaios, livros de imagens) e associa-se estas mudanças às propiciações oferecidas por dispositivos móveis de leitura (portáteis, tablets, telefones, eReaders). Por outro lado, entre adolescentes e jovens adultos regista-se cada vez mais uma leitura acentuadamente cumulativa, feita através de vários modos e vários objetos de leitura, e ainda de diversas formas de provisão (bibliotecas, livrarias). Por fim, são as e os leitores intensivos que leem cada vez mais, livros incluídos, subida registada igualmente ao longo do percurso de vida dos mais novos.
Sinalizo a singularidade do primeiro capítulo, “Les pratiques numériques en milieu populaire”, em que Dominique Pasquier analisa formas de escrita e de leitura de pessoas com baixa escolaridade e provenientes de classes populares em regiões rurais e semi-rurais de França, para quem a Internet “é uma segunda escola” (p. 23). A informação que se procura muito tem diversas finalidades e dirige-se a assimetrias informacionais, a lacunas e insuficiências de serviços de caráter público e/ou de serviços à cidadania (ajudar filhos nos testes, falar com médicos, conhecer direitos laborais, saber experiências de terceiros em cuidados domiciliários ou jardins de infância). As buscas são um esforço de ressimetrização dessas relações sociais. Desta análise relevo também a profícua interligação estabelecida entre práticas e modalidades de leitura, convencionalmente categorizadas e mantidas separadas, tais como a interligação entre cultura cultivada e atividades de lazer e entretenimento, ou entre aprendizagens escolares e as proporcionadas por passatempos populares, os saberes da mão (cozinha, reparações de utensílios e da habitação, confeção de roupa). Entre estas destacam-se as aprendizagens por Facebook e Wikipédia, com meios escritos para os saberes especializados e com vídeos de voz-gesto e tutoriais para os saber-fazer, meios que propiciam uma relação ético-prática com o saber, na formulação de Bernard Lahire (p. 26).
Na conclusão do capítulo “Lire au format numérique. Vers de nouvelles pratiques de lecture?”, Françoise Paquienséguy sublinha o caráter complexo mas também heurístico dos estudos sobre a leitura digital. Não será certamente um contributo pequeno compreender, através deste livro, como em França as desigualdades sociais, culturais, educativas não se esbateram, podendo ter aumentado face a uma presença do digital mais alargada e notória na sociedade. Mais relevante será certamente perceber ao longo do livro, com casos e estudos longitudinais, com bibliografia orientadora, como as desigualdades de classe, território, género ou idade se manifestam em formas novas nas leituras e escritas digitais de grupos e indivíduos que, em tempos marcados pela privatização e pela individualização, viram as suas vidas em sociedade reconfiguradas.