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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.133 Coimbra mar. 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.4000/11pr0 

Editorial

Nas margens do 25 de Abril: os futuros do passado. Uma introdução

1 Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, anacsantos@ces.uc.pt, amcarvalho@ces.uc.pt, cfrade@ces.uc.pt, fernandofontes@ces.uc.pt, jomendes@ces.uc.pt, madalena@ces.uc.pt, pilmvieira@gmail.com, raquelribeiro@ces.uc.pt, tmarques@ces.uc.pt

2 Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, rfreire@fe.uc.pt

3 Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, mic@fl.uc.pt

4 Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, madalena.alarcao@uc.pt


O processo revolucionário encetado pelo 25 de Abril de 1974 surgiu no contexto de uma sociedade esgotada por 48 anos de ditadura e por 13 anos de guerras coloniais. Com a Revolução, esse cansaço foi suplantado por uma explosão social, que se notou no imediato com o aplauso aos militares vitoriosos e, mais tarde, com a grande festa de unificação popular do 1.º de Maio. Emergiram no espaço público não só os chamados “velhos” movimentos sociais, assentes na afirmação de uma identidade de classe, como outras movimentações norteadas pelos princípios de democracia participativa e por valores pós-materialistas que se associaram, assim, ao processo de modernização socioeconómica do país (Estanque, 1999).

Ao longo das décadas que se seguiram à Revolução, Portugal enfrentou inúmeros desafios e celebrou muitas conquistas. Durante o período que medeia entre o 25 de Abril de 1974 e a aprovação da Constituição da República Portuguesa, em abril de 1976, foi possível desmantelar o Estado Novo, garantir liberdades individuais, colocar um ponto final às guerras coloniais e construir uma nova sociedade sobre os escombros do regime ditatorial. Assente no lema dos três “D”, a governação política e o espaço público democratizaram-se, permitindo maior liberdade no exercício da cidadania; descolonizou-se a ideia e a prática de um projeto imperial; e buscou-se um desenvolvimento tendente à melhoria das condições de vida e da dignidade da população. Tudo isto em articulação com novas configurações dos protestos e das movimentações populares, das relações de trabalho, das relações de género, das práticas culturais, da vida pública e privada. Nesse sentido, Abril não derrubou apenas um regime autoritário, mas deu também início a uma jornada contínua em direção à construção de uma sociedade mais justa, igualitária, aberta e democrática.

Na compreensão do Portugal democrático de hoje é incontornável repensar a Revolução de Abril e as suas promessas. Esta reflexão faz-se por referência à história e à memória social, incluindo o que Pierre Nora chamou lugares de memória (Nora, 1984, 1986, 1992). O 25 de Abril convoca, na sociedade portuguesa, a ideia de um país mais livre, justo e solidário que, da esquerda à direita, independentemente da posição diante da Constituição de 1976, “programas e orçamentos jamais ousaram afastar” (Bebiano, 2012, p. 15). Mas esta compreensão faz-se, também, por alusão ao esquecimento e ao silenciamento, pelo que importa pensar criticamente as ruturas e tensões criadas, as permanências e as mudanças, as vozes ecoadas e silenciadas, as velhas e novas injustiças sociais. Torna-se, pois, crucial refletir sobre a promessa do projeto democrático. Fruto da pressão crescente dos movimentos sociais e da luta política, o pós-25 de Abril caracterizou-se por uma convivência marcada por vários embates entre modelos mais tradicionais e conceções radicais de democracia, baseadas na participação popular, nas organizações de base e em comissões livremente eleitas (Nunes & Serra, 2002). Tais embates indiciavam que, para se tornar uma promessa cumprida, o projeto democrático português poderia ser um projeto inacabado e carente de outros impulsos.

Importa refletir, também, sobre os avanços e retrocessos em áreas fundamentais da cidadania, como a educação, a saúde, a justiça, os direitos sociais, as relações de trabalho, a habitação, as relações de género, entre outras, onde a transição democrática potenciou um progresso notável e que, 50 anos depois, necessitam de um compromisso renovado. Em suma, parece fundamental examinar “políticas da memória” em articulação com “políticas de silêncio”, “através das quais se constroem e ativam versões seletivas do ocorrido” (Cardina, 2016, p. 33).

O convite à apresentação de artigos para este número da RCCS identificou oito eixos temáticos que, longe de esgotarem todas as tensões e complexidades encetadas pelo 25 de Abril de 1974, contribuem para uma reflexão crítica sobre o futuro das vivências passadas e presentes de Abril: democracia e direitos humanos; cidadania e direitos políticos, sociais e económicos; ordenamento do território; memória e cultura; igualdade de género e direitos da comunidade LGBTQIA+; proteção ambiental e direitos da natureza; racismo e pluriculturalidade; e a Revolução do 25 de Abril no contexto de outras revoluções.

Os artigos selecionados e avaliados para este número exploram os diálogos entre as promessas e conquistas do 25 de Abril, assim como os problemas e desafios que moldam atualmente a sociedade portuguesa.

O primeiro artigo deste número temático, da autoria de Manuel Loff, reflete sobre o modo como a Revolução portuguesa permanece um caso especial dos processos de democratização do século xx por representar uma rutura política e social com as estruturas vigentes, ao contrário de outras experiências assentes em transições negociadas, em que o poder autoritário nunca perdeu completamente o controlo do processo político. O autor analisa contextualmente a Revolução portuguesa tendo em conta quer os últimos 15 anos da ditadura salazarista (marcados pela guerra, migrações, urbanização, desruralização e feminização da esfera pública), quer o contexto da nova cultura política que, desde o final dos anos 1950, deu às esquerdas uma dinâmica nova. Esta análise serve como ponto de partida para a discussão da sistemática comparação entre a Revolução portuguesa e a Transição espanhola, medindo o peso de conceitos em regra usados para descrever uma e outra, como democratização, moderação, radicalidade, violência, paz, reconciliação, negociação e rutura.

No artigo de autoria de Joana Matias aborda-se a publicação do manifesto do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária (MAHR) no Diário de Lisboa a 13 de maio de 1974, e a sua condenação na intervenção televisiva do general Carlos Galvão de Melo a 27 de maio de 1974, como um ponto de inflexão nas continuidades pré e pós-revolução da história LGBTI+ em Portugal. A autora parte de uma análise histórica e crítica deste episódio, que teria ditado o fim da ação do MAHR e a rejeição da legitimidade das questões LGBTI+ no foro político. Com esta abordagem, Joana Matias vem desafiar a leitura de uma “incongruência” na Revolução, a de um conservadorismo face às questões de género e sexualidade.

José Soeiro apresenta, no seu artigo, uma análise da evolução da regulação sociojurídica do trabalho no pós-25 de Abril. Para isso, num primeiro momento, o autor recorre a fontes documentais, estatísticas, diplomas legais e bibliografia disponível, identificando transformações na estrutura do emprego e caracterizando seis períodos distintos, entre 1976 e 2022, do enquadramento normativo e político das relações laborais em Portugal. A análise destes períodos permite constatar que a atual regulação do trabalho é simultaneamente uma herança da Revolução - na medida em que alguns dos preceitos constitucionais consagrados desde 1976 surgiram como obstáculos a uma fragilização e precarização mais acentuadas do mundo do trabalho - e, também, uma rutura com o 25 de Abril - já que Portugal tem vivido, nos últimos 45 anos, um processo acentuado de desconstrução de enquadramentos protetores do estatuto do trabalho. Num segundo momento, e como sequência do olhar diacrónico anterior, são identificadas seis vias principais de fragilização do estatuto do trabalho na sociedade portuguesa do último meio século. O artigo conclui que esta dinâmica de fragilização traz inevitavelmente a necessidade de pensar a ação coletiva e a definição de políticas de “desprecarização”.

O artigo que se segue, de autoria de Pedro David Gomes, olha para a música angolana sob um prisma transnacional e enquanto instrumento de luta anticolonial para questionar as causas da não inclusão de músicos e intérpretes angolanos como cantores de Abril. Esse questionamento dá o mote para refletir sobre o não reconhecimento destes músicos na memória historiográfica do período que permeia a Revolução dos Cravos. Para tal, o autor aplicou uma metodologia qualitativa que passou pela pesquisa arquivística (dicionários e outras fontes escritas, visuais e audiovisuais) e a realização de entrevistas em Portugal e em Angola. Foram examinados os trajetos de quatro músicos angolanos e analisados registos e memórias sobre as suas práticas laborais, culturais e sociopolíticas; memórias de antigos ouvintes destes músicos; e conteúdos musicais, discursos e representações emanados de outros suportes de mediação. Os resultados, ancorados no estudo das memórias subalternas, permitem confrontar o pensamento eurocêntrico na narrativa da música de protesto em Portugal, contribuindo para uma história global das canções e dos cantores de Abril.

Luiza Lins, Júlia Alves Brasil e Rosa Cabecinhas abordam, no artigo seguinte, a memória social e os futuros do passado na visão da história da Revolução de jovens portugueses/as. Tendo como ponto de partida a convicção de que as representações sociais da história são importantes ingredientes para criar, manter e mudar a identidade de um povo e de que estas representações estão, frequentemente, envoltas em tensões, as autoras examinam as mudanças e as permanências na educação histórica em Portugal. A pesquisa empírica realizada pelas autoras passou pela realização de grupos focais com 167 estudantes do ensino secundário de escolas públicas situadas nas regiões Centro e Norte de Portugal. Os resultados evidenciam as dinâmicas entre lembranças e esquecimentos, bem como as tensões e as ambiguidades presentes na (re)construção da memória social - a partir da qual se constrói a ideia de “alma nacional” portuguesa - e das diferentes versões contadas da história. O estudo conclui que, considerando-se o papel central da memória social para a imaginação coletiva de futuros, é fundamental uma educação que potencie uma perspetiva crítica sobre o passado nacional e as suas relações com a possibilidade de construção de futuros alternativos.

O último artigo deste número temático apresenta uma descrição histórica, com base na análise documental e em duas entrevistas realizadas a Carlos Almada Contreiras, do 25 de Abril e da Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS). Em concreto, Irene Flunser Pimentel procura responder às seguintes questões: porque possibilitou a PIDE/DGS a eclosão do golpe militar em 25 de Abril de 1974? Quais foram os motivos para que a sede dessa polícia política não tivesse sido um dos primeiros alvos do Movimento das Forças Armadas (MFA) nessa data? Para responder a estas questões, a historiadora analisa uma cronologia de acontecimentos, marcada por vários atores, desde 1973, e por testemunhos convergentes e dissonantes. A autora conclui que, na discussão sobre se o 25 de Abril terá sido um golpe militar ou uma revolução, a participação da população ao lado do MFA, as mortes causadas pela DGS e a libertação de todos os presos políticos transformaram-no num processo revolucionário.

Referências bibliográficas

Bebiano, R. (2012). 25 de Abril. In CES, Dicionário das Crises e Alternativas (pp. 15-16). Almedina. [ Links ]

Cardina, M. (2016). Memórias amnésicas? Nação, discurso político e representações do passado colonial. Configurações, (17), 31-42. https://doi.org/10.4000/configuracoes.3281 [ Links ]

Estanque, E. (1999). Acção colectiva, comunidade e movimentos sociais: para um estudo dos movimentos de protesto público. Revista Crítica de Ciências Sociais, (55), 85-112. [ Links ]

Nora, P. (Ed.). (1984). Les lieux de mémoire. Tome I - La République. Gallimard. [ Links ]

Nora, P. (Ed.). (1986). Les lieux de mémoire. Tome II - La Nation. Gallimard. [ Links ]

Nora, P. (Ed.). (1992). Les lieux de mémoire. Tome III - Les France. Gallimard. [ Links ]

Nunes, J. A.; & Serra, N. (2002). “Casas decentes para o povo”: movimentos urbanos e emancipação em Portugal. In B. de S. Santos (Ed.), Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa (pp. 255-294). Civilização Brasileira. [ Links ]

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