Introdução
O modo como os jovens constroem o seu conhecimento sobre o mundo e sobre si próprios nas sociedades contemporâneas, marcadas por processos de internacionalização, transnacionalização e globalização, é extremamente complexo. A perspetiva de que estes reproduziriam representações incorporadas na família, comunidade ou classe social torna-se questionável à luz das transformações que atravessam o mundo, entre as quais a expansão dos sistemas de ensino, a disseminação das tecnologias de informação e de comunicação, as dinâmicas culturais juvenis ou as reconfigurações das estruturas sociais e profissionais. Sem anular a importância da socialização primária, a incorporação de linguagens, valores e representações a partir de diferentes contextos é evidente, o que pode suscitar conflitos nos próprios indivíduos e nas instituições, mas potencia também o trabalho reflexivo.
No presente artigo procuramos contribuir para este debate, num primeiro momento, através de uma revisão da literatura, na qual se articulam diferentes contributos sociológicos sobre o conceito de socialização, com especial atenção para estudos recentes e que têm vindo a alargar o nosso entendimento deste processo. Apresentamos em seguida uma análise de histórias de vida de quatro jovens das classes dominantes em Lisboa, focando-nos no modo como experiências de socialização de índole assumidamente internacional têm vindo a ser privilegiadas enquanto estratégias de distinção cultural e projeção laboral, frequentemente impulsionadas pelas famílias e tomando o sistema educativo como plataforma de estruturação e legitimação.
1. Revisão da literatura
O conceito de socialização encontra-se na génese do pensamento sociológico, como é possível constatar pela sua relevância em estudos pioneiros de diferentes correntes teóricas. O estrutural funcionalismo enfatizou a relevância da incorporação de valores e normas para a integração e coesão social enquanto antídoto para os conflitos, os comportamentos desviantes e a anomia (Parsons & Bales, 1955). Na perspetiva construtivista, a socialização é um elemento fundamental da ação humana, de produção de um conhecimento social da realidade, da constituição dos sujeitos e dos coletivos (Berger & Luckmann, 1998).
A partir dos anos 1970, o conceito foi perdendo fulgor na investigação sociológica, associado a paradigmas estruturalistas e funcionalistas que se encontravam sob forte crítica e preterido por perspetivas mais focadas na agência, na reflexividade e na racionalidade dos agentes. Se nunca deixou de conhecer desenvolvimentos, sobretudo em âmbitos mais especializados como a sociologia da educação ou do trabalho (Dubar, 2015; Dubet & Martuccelli, 1996; Grigorowitschs, 2008), o conceito conheceu uma revitalização nos últimos anos, através de quadros teóricos e metodológicos mais sofisticados. Como notam Guhin et al. (2021), a socialização tem ressurgido pelo seu potencial heurístico para a compreensão dos processos socio-históricos, em particular de (re)produção das desigualdades sociais, bem como pela capacidade que providencia para o diálogo com outros campos do conhecimento, como a antropologia, a psicologia ou as neurociências.
O nosso trabalho tem-se inscrito nesta linha (e.g. Abrantes, 2011), desde logo reconhecendo como a socialização é um processo interativo e indissociável do processo de individualização, no sentido em que indivíduo e sociedade se constroem mutuamente (Elias, 1994). Partimos igualmente da ideia de que uma grande parte deste processo ocorre de forma prática e quotidiana, escapando à consciência dos indivíduos através da formação de um habitus e da concomitante inscrição em campos específicos de relações de poder (Bourdieu, 1979, 1987). Não negligenciamos, ainda, o potencial emocional, criativo, reflexivo e biográfico dos sujeitos, na mobilização de diferentes repertórios de ação, bem como na (re)construção de identidades e narrativas a partir de múltiplas interações e integrações desde a primeira infância e ao longo da vida (Corsaro, 2015; Hoerning & Alheit, 1995; Lahire, 2002). Tal como nota Dubar (2015), é útil distinguir uma socialização mais imediata, reportando-se ao contexto específico em que cada sujeito interage, de uma outra socialização, de cariz biográfico, que procura construir um corpo estável de conhecimentos sobre si próprio e sobre o mundo, capaz de interligar e transcender os quadros de interação. Tal como sistematizou mais recentemente Lahire (2015), a “fabricação social dos indivíduos” tem de ser investigada em detalhe nos vários quadros, modalidades, tempos e efeitos que a (re)configuram nas sociedades contemporâneas, assim como na relação dinâmica entre eles.
Dentro desta perspetiva lata temos prestado particular atenção à socialização dos jovens, no sentido de entender como estes (re)produzem as desigualdades sociais num mundo em acelerada transformação. É indesmentível que as gerações mais jovens passam hoje mais tempo nas instituições escolares, o que tem um impacto profundo no processo de construção (e democratização) dos conhecimentos e da reflexividade, tanto pela via direta da experiência escolar como pelas oportunidades de qualificação e de mobilidade social que esta promove (Abrantes, 2012; Caetano, 2015; Costa, 2012; Enguita, 2007; Kalmijn & Kraaykamp, 2007).
Contudo, vários estudos têm mostrado como, em combinações complexas entre socialização familiar, escolar e de pares, as crianças e jovens constroem, desde tenra idade, noções estruturadas do espaço social e da sua posição no seu interior, incluindo disposições e representações diferenciadas tendo em conta a sua classe social de pertença e, em alguns casos, de referência (Barbosa, 2007; Bayón & Saraví, 2019; Harvey, 2022; Reay, 2005). Estas pesquisas têm mostrado como estas noções têm um caráter fortemente moral e emocional, gerando afinidades e distâncias, ocorrendo mesmo em contextos escolares heterogéneos - embora surjam mais vincadas nos casos em que, por efeitos de segregação territorial ou de mercado educativo, a distribuição dos alunos por escolas e vias de ensino está fortemente associada à estrutura de classes (Bourdieu, 1989; Bowles & Gintis, 1977).
Com algumas variações entre instituições e entre áreas de estudo, o ensino superior tende a consolidar disposições de superioridade moral, mesmo que fundadas num aparente maior relativismo e tolerância (Broćić & Miles, 2021), bem como sentimentos de classe que correspondem, sobretudo, a aspirações e à perceção de que a formação permitirá realizá-las (Brimeyer et al., 2006; Kalmijn & Kraaykamp, 2007). No espectro oposto - e sem esquecer os complexos processos de mobilidade social ascendente através do sistema educativo (Roldão, 2015) - uma parte significativa dos jovens, sobretudo de condições sociais mais vulneráveis, é ainda marcada por percursos de insucesso e de abandono escolar. Inferiorizados pela escola e pelas classes dominantes, estes jovens não deixam de construir disposições práticas e representações reflexivas sobre a estrutura social e a posição que ocupam no seu interior, atravessadas pelo ressentimento, a revolta, o ceticismo, a evasão, a manipulação do estigma e a busca criativa de novas formas de integração nos interstícios das instituições formais e informais (Galland, 2022; Pinheiro, 2020; Saraví, 2009).
Neste contexto, importa ponderar como a globalização e a individualização têm vindo a ampliar tanto as oportunidades para a distinção e a excitação como os medos e inseguranças (Aarseth, 2018; Cicchelli & Octobre, 2019), o que é particularmente visível nas estratégias educativas das classes dominantes. A diversificação cada vez maior de “ofertas educativas” e a competição crescente pelo acesso aos segmentos mais favorecidos do sistema educativo, num contexto de itinerários (sociais e geográficos) de grande dinamismo e imprevisibilidade, têm tornado estes processos mais complexos, com variações importantes entre países (Çelik & Özdemir, 2022; Costa, 2012; Verhoeven et al., 2022; Waddling et al., 2019). Existem evidências de que os conhecimentos, valores e disposições que facilitam a integração e a distinção em contextos de vida e de trabalho transnacionais são hoje muito valorizados como via de mobilidade social (ou de manutenção de um estatuto privilegiado), o que alimenta a expansão acelerada de programas educativos internacionais. Alguns autores têm argumentado que estes processos são geradores de um “capital internacional”, mas permanece incerto em que consiste, qual o seu valor na inserção socioprofissional dos indivíduos e qual a sua autonomia face aos capitais económicos, culturais e sociais (Carlson & Schneickert, 2021; Krüger, 2022; Resnik, 2018; Wagner, 1998).
No presente artigo, o nosso contributo para este debate consiste na análise dos percursos e discursos de jovens que, em modalidades diferentes, tiveram experiências educativas orientadas para o desenvolvimento desse capital internacional. Partimos de duas investigações recentes, sediadas em Lisboa, em que os processos de socialização nas classes dominantes foram objeto de análise, uma com jovens que exercem advocacia em grandes sociedades de advogados e a outra com estudantes de escolas internacionais.
É importante considerar que Portugal e, em particular, a sua capital têm ocupado uma posição “semi-periférica” no sistema-mundo (Reis et al., 2023; Santos, 1985) marcada por uma “economia periférica” no contexto europeu (Reis, 2023), a qual se carateriza por múltiplos contrastes e interseções, dando origem a um espaço simultaneamente subordinado e dominante, funcionando como entreposto de negociação e mobilidade entre o Norte e o Sul. No contexto educativo e juvenil isto significa, por um lado, uma posição periférica face aos grandes sistemas e instituições da Europa e América do Norte, mas também uma posição dominante face aos sistemas e instituições do Sul, sobretudo dos países africanos de língua oficial portuguesa. Decorrendo a socialização dos jovens num contexto educativo, político e migratório cada vez mais próximo dos padrões europeus (Mauritti et al., 2019), o sistema de ensino português não deixa de refletir essa posição intermédia (e de mediação) num mercado educativo global, com um fluxo intenso de entradas e saídas. Também a nível interno tem-se assistido a uma busca crescente da distinção educativa, a qual tem estimulado o crescimento da oferta e da procura por escolas internacionais, com perfis diferenciados (Schippling et al., 2020). Por seu lado, a inserção laboral atual ocorre também num contexto de profundas mudanças do capitalismo à escala global, nas quais a financeirização da economia ganha particular destaque. Isto inclui alterações mesmo em áreas com uma longa tradição, como é o caso do surgimento de grandes sociedades de advogados que têm vindo a transformar um campo até recentemente entendido como uma profissão liberal (Abrantes & Santos, 2022; Santos, 2018).
A este propósito, vale a pena destacar a investigação desenvolvida por Chaves e Nunes (2011, 2012) com jovens advogados, revelando que se o acesso à formação na área do Direito se democratizou notavelmente nas últimas décadas, por outro lado, surgem novos mecanismos de distinção e seleção - tanto no percurso formativo como na inserção laboral - que mantêm uma forte relação com as classes sociais de origem. Assim, os capitais sociais e económicos surgem concentrados nos jovens advogados de origens sociais mais favorecidas, e integrados em médias e grandes sociedades dedicadas sobretudo à área comercial, financeira e transacional. É certo que a manutenção de uma representação ética profissional associada à atividade liberal evita ainda que esta hierarquização se torne hegemónica, pelo menos no plano simbólico e aspiracional. Porém, mesmo nesse plano, os autores encontram mudanças relevantes, entre as quais um enaltecimento da competência profissional associada a aspetos como o “saber estar” com os clientes, os conhecimentos especializados e a atualização/formação constante.
2. Projetos e casos biográficos
A presente análise tem por base dois projetos de investigação: um projeto intitulado “A internacionalização da educação das elites em Portugal: um estudo qualitativo sobre colégios internacionais na Grande Lisboa”, que decorreu entre 2016 e 2022, e um outro projeto denominado “Os advogados de negócios e as grandes sociedades: práticas, identidades e culturas” em curso entre 2014 e 2018, no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte). O primeiro incidiu sobre colégios internacionais localizados em Lisboa, incluindo uma análise aprofundada dos itinerários de 16 dos seus ex-estudantes, de idades compreendidas entre os 19 e os 21 anos, a quem foram realizadas duas entrevistas em anos subsequentes - uma de grupo e outra individual - focadas no seu percurso escolar, no papel da família e dos pares, assim como na transição para o ensino superior. No segundo projeto, dedicado às transições profissionais para a advocacia de negócios em Lisboa, foram elaboradas 19 histórias de vida de advogados com idades entre os 24 e os 34 anos, tendo por base os dados recolhidos em entrevista, para as quais foi desenhado um guião de entrevista organizado em torno da família, das sociabilidades, dos estilos de vida, do percurso escolar e da inserção laboral. A análise das entrevistas biográficas em ambos os projetos1 foi levada a cabo utilizando o método documentário de interpretação (Bohnsack, 2014), um método reconstrutivo que permite, por um lado, identificar a estrutura temática das entrevistas e, por outro, reconstruir o conhecimento implícito dos entrevistados.
Centramo-nos em quatro trajetórias biográficas de jovens das classes dominantes observadas no âmbito destes dois projetos, de modo a explorar o potencial do conceito de socialização no quadro de uma reflexão sobre desigualdades sociais no capitalismo global. Uma atenção especial é dedicada às fases de transição durante os percursos biográficos, as quais suscitam momentos críticos que estimulam processos de reflexão (Nico, 2011; Schippling & Abrantes, 2024). Tal como nota Lechner (2015), o trabalho biográfico está sempre enraizado nos momentos e contextos específicos em que ocorre, mas pode criar simultaneamente espaços de reflexividade e empoderamento, em que os indivíduos desenvolvem um pensamento e uma ação que os afirma como sujeitos para além dos condicionalismos estruturais e culturais em que decorrem as suas vidas. Neste sentido, as entrevistas procuraram constituir espaços abertos de reflexão e expressão dos jovens sobre as suas próprias experiências, sendo o trabalho de análise orientado para a reconstituição dessas narrativas nos seus próprios termos. É interessante notar como isto ocorreu de facto com os jovens das classes dominantes que entrevistámos, pois as interpelações dos autores deste artigo permitiu-lhes recuperar e reconstituir as suas experiências de vida à luz de referentes distintos daqueles que incorporaram, em grande medida, nas principais instituições em que a sua socialização ocorreu.
A escolha destes quatro casos teve que ver não só com a riqueza do material biográfico recolhido mas também pelo modo como esses representam diferentes segmentos das classes dominantes e diferentes modalidades de internacionalização, uma dimensão que, em ambos os projetos, se destacou por apresentar um forte potencial estruturante dos projetos e trajetos de socialização. Os casos selecionados representam, de uma forma exemplificativa, diferentes estruturas de capital internacional adquiridas por esses jovens ao longo dos seus processos de socialização, bem como a utilização de estratégias distintas para a sua aquisição e (re)produção. Neste âmbito, os casos não são tratados como tipos de socialização dos jovens, mas como exemplos variados para o trabalho biográfico relativo ao capital internacional.
Pedro2 representa o caso da internacionalização “clássica”, através da realização do ensino básico e secundário num colégio integrado no sistema educativo de um país mais central no sistema-mundo e, à data da entrevista, encontrava-se no 2.º ano do curso de Direito numa universidade em Lisboa. Lan é de origem chinesa e estava no seu 3.º ano de estudos na área de negócios numa universidade no Canadá, representando o caso de jovens oriundos de outros continentes que realizam os estudos secundários em Portugal, geralmente em escolas internacionais, como mediação para o Norte global. Rita e António eram advogados em início de carreira quando foram entrevistados, com experiências de internacionalização marcantes mas muito distintas: a primeira reflete o caso de jovens portugueses que vão realizar estudos universitários (frequentemente pós-graduações, mestrados ou doutoramentos) em países dominantes do sistema mundial; o segundo espelha a situação dos jovens das elites de países de língua portuguesa do Sul global que, tendo a família origens portuguesas, vêm realizar os estudos superiores em Portugal, frequentemente como estratégia de acesso ao mercado europeu.3
A nossa análise adota, primeiramente, uma perspetiva de (re)produção social das classes dominantes, centrando-se nas referências dos jovens ao nacional e/ou internacional no âmbito da socialização familiar. Em seguida, explora os efeitos do percurso escolar na socialização dos jovens. E, em terceiro lugar, aborda a relação reflexiva que os jovens constroem a partir dos processos de socialização nos diferentes quadros de interação que compõem a sua biografia.
2.1. O caso de Pedro
A família de Pedro tem uma relação afetiva forte com a cultura e língua francesas. Vários membros da família frequentaram a escola de Lisboa que está integrada no sistema educativo francês (e que aceita estudantes não franceses mediante o pagamento de propinas avultadas), incluindo Pedro e “os [s]eus irmãos todos e os [s]eus primos todos”. Essa ligação da família ao internacional - neste caso, através de uma escola francesa - opera como uma estratégia de reprodução social. A pertença a uma cultura cosmopolita dos herdeiros da burguesia (Louçã et al., 2014; Vieira, 2003) é uma forma de distinção que carateriza as estratégias de reprodução das elites portuguesas há já várias décadas.
Sim, eu acabei por ir para o liceu porque a minha mãe tinha andado lá e a minha tia também… A minha avó não, mas a minha bisavó tinha tido uma precetora francesa, por isso, tinha sido educada há muito na cultura francesa e falava francês muito bem, gostava muito de músicas francesas, de filmes franceses. (entrevista, 14 de maio de 2020)
A família de Pedro está ligada ao domínio jurídico, sendo a maioria dos seus membros advogados, pelo que a orientação para a faculdade de Direito mais antiga e reputada em Lisboa (na qual foram formados uma grande parte dos governantes do país no último século) se realizou de forma “natural”, em continuidade com o percurso de vários dos seus parentes mais próximos.
Pedro projeta a escola francesa que frequentou durante a sua escolaridade básica e secundária, em Lisboa, em contraste permanente com a imagem que tem do ensino público português. Afirma que o ensino português se baseia maioritariamente na memorização e reprodução dos conteúdos curriculares e tem falta de continuidade no processo de aprendizagem, ao invés da sua experiência na escola francesa: “[…] acabávamos por ter este avanço e porque tínhamos este hábito de estar sempre a estudar de maneira muito contínua” (entrevista, 14 de maio de 2020). Esses processos de socialização escolar são narrados como uma mais-valia no ensino superior, facilitando a sua habituação ao “ritmo universitário”. A distinção face ao nacional e a identificação com o internacional aparecem como um fio condutor no seu discurso e podem ser interpretadas como um mecanismo da reprodução de classe, à semelhança do observado por Bowles & Gintis (1977) no que concerne aos diferentes tipos de escolas nos Estados Unidos da América. A referência ao internacional aponta em grande medida ao currículo oferecido pela escola, descrito como “mesmo muito abrangente”, abordando questões “do mundo inteiro”. A escola francesa é elogiada por promover o ensino das línguas estrangeiras, que funcionam como um capital internacional que não só lhe facilitou a integração no curso de Direito numa universidade em Lisboa, mas também o ajudou no seu desenvolvimento “mais como pessoa, mais como cidadão”.
Pedro também se identifica com a cultura do seu país, e compreende-se a si mesmo como um cidadão português para quem a socialização na escola francesa proporcionou uma visão do mundo que ultrapassa as fronteiras da sociedade portuguesa e que o enriqueceu enquanto ser humano e cidadão. “Uma das coisas boas do liceu”, como Pedro carateriza num olhar reflexivo, tem sido a abertura do seu pensamento no que diz respeito ao meio social e cultural onde se encontra inserido:
Eu acho que acabo por ter uma visão muito mais abrangente, acho que, sobretudo em Portugal, há um certo meio social no qual eu acho que em parte me insiro que é […] elitista e que acaba por não olhar bem aqui a outros aspetos culturais que saem um bocadinho da norma que conhecem. E acho que no liceu há pessoas muito diferentes precisamente porque vêm de contextos sociais muito diferentes, não no sentido mais de uma classe alta, uma classe baixa, uma classe média, mas porque de facto vêm de outros países. (entrevista, 14 de maio de 2020)
Ele valoriza o encontro de diferentes culturas na sua escola como um ponto de partida para refletir sobre o seu próprio meio social que ele classifica como “elitista” e que lhe abriram o pensamento para experienciar diferentes visões do mundo e modos de vida. Contudo, nesta reflexão, não deixa de assumir que este quadro de socialização é bastante homogéneo ao nível da classe social.
2.2. O caso de Lan
A família de Lan, de origem chinesa, trabalha na área de negócios e planeou realizar investimentos em Portugal, o que lhe permitiu aceder ao Visto Gold, uma autorização de residência permanente. A opção de estudar numa escola internacional em Lisboa a partir dos 15 anos foi motivada pela situação da família:
[…] eu estudava na China e os meus pais estavam a pensar fazer investimentos em Portugal. Então, surgiu a oportunidade de eu escolher entre continuar a estudar na China ou expandir os meus horizontes e ir estudar para uma escola internacional em Portugal. (entrevista, 8 de novembro de 2020)4
A escolha da escola internacional em Lisboa surgiu, nesse caso, como um passo na expansão dos negócios dos pais, que não têm grau académico e não falam línguas europeias. De facto, enquanto aluna na escola internacional, Lan preparou-se para apoiar os negócios dos pais em Lisboa e participou em atividades de serviço comunitário organizadas pela escola, na perspetiva de desenvolver competências para futuramente trabalhar nas atividades comerciais dos seus pais em Portugal. O seu discurso enquadra-se na construção de um “ego empreendedor” (Bröckling, 2015), no qual confia como via para integrar uma elite económica global.
Durante o tempo em que frequentou a escola em Lisboa, Lan ficou marcada pelo encontro entre diferentes culturas, o qual associa a um ambiente internacional. Para ela, esse encontro é “o que a escola internacional tem de melhor” e, como avalia, tornou-a “muito mais de mente aberta” (entrevista, 8 de novembro de 2020). Ela recorda com emoção a partilha de músicas e comidas de diferentes culturas, destacando um evento que contribuiu para a aceitação e compreensão do seu contexto cultural pelos outros colegas de escola:
Num certo sentido, quando me conhecem aceitam melhor a minha cultura e mostram interesse. Por exemplo, na escola celebrámos o Ano Novo chinês, tivemos uma grande celebração, organizámos comida, organizámos espetáculos, música, eu levei dumplings para a escola para os meus amigos provarem, para poder partilhar. (entrevista, 8 de novembro de 2020)
Lan também se distingue das referências portuguesas, em particular na justificação para a sua escolha de uma universidade no Canadá para realizar os seus estudos superiores, enfatizando os baixos resultados de universidades portuguesas em rankings internacionais: “Acho que essa é a razão pela qual escolhi Vancouver para estudar, a posição no ranking é a razão pela qual não continuei a estudar em Portugal: em termos mundiais está abaixo da posição 300 no ranking das universidades” (entrevista, 8 de novembro de 2020).
No Canadá, Lan estuda na área dos negócios e trabalha, ao mesmo tempo, nos negócios dos seus pais em Portugal, que se concentram na área da restauração e do turismo. Considera que o facto de ser diretamente envolvida no trabalho dos pais, em paralelo com o curso, a apoia nos seus estudos e a motiva a concluir a licenciatura o mais rapidamente possível. Mesmo enquanto estudante numa universidade no Canadá, ela continua a sentir-se muito ligada à sua cultura de origem, manifestando, ao mesmo tempo, uma construção de hierarquias entre culturas. De uma forma reflexiva, ela identifica-se fortemente, e até de uma forma patriota, com a sua cultura:
Sim, no fundo, afinal de contas, obviamente, eu tenho orgulho em ser chinesa. […] eu não podia ter mais orgulho da inteligência do meu povo e da forma rápida como nos estamos a desenvolver. Sinto orgulho em poder mostrar […], como agora mostro, imagens da China a pessoas que me perguntam “Isso é a China? Parece Nova Iorque ou algo do género”. Não, isso é China. (entrevista, 8 de novembro de 2020)
2.3. O caso de Rita
Filha única de uma família de proprietários de um negócio, Rita apresenta-se como responsável exclusiva pelas suas escolhas escolares e profissionais, embora os pais sejam referidos como suporte. Fez todo o seu percurso escolar num colégio privado pertencente a uma ordem religiosa numa cidade média do interior do país. Recorda a sua frequência escolar como um percurso “certinho”, onde a proximidade social e geográfica lhe causava constrangimentos porque “todos sabiam onde estava a cada momento”. A opção pelo estudo do Direito no ensino superior foi acalentada desde o 9.º ano de escolaridade, ao qual atribui um misto de vocação e de confirmação pelo seu grupo de pares, que a chamavam para os apoiar, para “ser a voz de muita gente” e a “defensora de todas as causas”.
A escolha do local para estudar na passagem para o ensino superior, a cidade de Lisboa, fez-se pelo sentido prático - a inexistência do curso de Direito na sua cidade - e pela vontade de viver sozinha e experienciar a autonomia e o anonimato de viver numa grande cidade. As suas opções foram tomadas segundo critérios utilitaristas e meritocráticos: a faculdade era a que exigia “a média mais alta” no concurso geral de acesso, o que lhe conferiu um ambiente de prestígio e distinção. A ênfase dedicada por Rita à meritocracia, com as suas referências à importância de estudar e ter boas notas, é um traço das estratégias de mobilidade social ascendente das pequenas burguesias que procuram, assim, distinguir-se e entrar nos espaços sociais selecionados das elites (Bourdieu, 1979).
Durante a licenciatura, Rita tornou-se dirigente associativa na sua faculdade, primeiro com o pelouro das saídas profissionais e depois como presidente da associação de estudantes, procurando de forma ativa participar nos processos de decisão que envolviam os estudantes e, em simultâneo, conhecer de forma mais aprofundada os meandros das diferentes inserções profissionais dos juristas. Dessa experiência retirou a ideia de “confiar nos outros” e a “capacidade de resistência ao trabalho” - novamente marcadores associados à ideia de meritocracia, mas que refletem igualmente uma busca pelo capital social e por competências de “liderança” e de “saber estar” (Chaves & Nunes, 2012).
Após a licenciatura, Rita fez um estágio numa sociedade de advogados conceituada e teve uma experiência curta como assessora na Presidência do Conselho de Ministros do governo português. A queda do governo precipitou um conjunto de decisões sobre o seu futuro profissional que a levaram a estudar em Londres, ampliando o seu domínio da língua inglesa: “o inglês sempre foi o meu calcanhar de Aquiles e eu fui dois anos para Inglaterra para ver se deixava de ter stresse a falar inglês porque tenho que falar quase todos os dias”. As razões da escolha dessa cidade prendem-se com a aproximação profissional ao centro financeiro e jurídico do capitalismo (Santos, 1985), criando a oportunidade de privar com grandes especialistas mundiais do Direito na área dos negócios.
A escolha do curso e da universidade foi baseada no reconhecimento internacional da qualidade da formação naquela área específica, aferido pela presença em rankings. O método de ensino é descrito como diferente, baseado em casos práticos com boa parte da preparação a ser realizada de forma autónoma pelos alunos entre aulas. É apontado também a alta concentração de atividades, com as aulas e a preparação da tese a ocorrerem em simultâneo. A qualidade do ensino está igualmente associada ao reconhecimento dos professores pelos profissionais da área.
As aulas teóricas eram muito participadas. Eu gostei, tive as aulas quase todas com o mesmo professor, que é […] um professor de arbitragem muito reconhecido. Dava algum gozo; depois disto o que é que acontece? Nos LLM5, a tese é suposto ser feita ao mesmo tempo que o mestrado, portanto, eu acabei as aulas em abril, tive exames em maio e junho, [e] defendi a tese em agosto. É tudo seguido […]. Três coisas a assinalar: estudar para as aulas, resolver casos práticos em grupos mais pequenos, [e] organizar a tese. (entrevista, 27 de outubro de 2015)
No cômputo geral, as descrições sobre o mestrado, tanto no método de ensino como nas relações pedagógicas, acentuam a ideia de exclusividade e meritocracia, em que há um acompanhamento personalizado mas que decorre sob critérios de grande exigência e responsabilidade individual. É um modelo de socialização para a pertença a uma elite dirigente (Verhoeven et al., 2022) que sabe ser e estar, ocupando lugares de destaque na sociedade.
Rita parte da sua experiência de ensino internacional para refletir sobre os diferentes posicionamentos sociais que viveu nesses dois anos. Partindo de uma situação económica menos privilegiada, teve de encontrar um trabalho para custear a estadia e os estudos. Num determinado momento passou a acumular dois empregos, um como tradutora numa empresa na área do Direito e um outro como rececionista de hotel. A experiência de trabalho como rececionista de hotel aproximou Rita de outro tipo de atividades profissionais que até aí não tinha experienciado, mais próximas do trabalho intensivo, das longas jornadas e da precariedade laboral.
Aquilo foi muito engraçado, eram doze horas de pé. Nos primeiros dois meses eram oito horas e eu ainda tinha tempo para descansar. Depois, para começar a ter folgas [entre os dois empregos], passei a fazer doze horas, às vezes quatro dias seguidos; ia dois dias à [nome da empresa ocultado] e assim tinha um dia de folga [risos]. (entrevista, 27 de outubro de 2015)
Essa consciência de trabalhar “do outro lado” e de ter abandonado, de forma temporária, o seu lugar na classe dominante é descrita nesta passagem, não isenta de conflitos internos relativamente a experiências de socialização que, sendo para si enriquecedoras, não deixaram de a colocar temporariamente numa posição de classe menos favorecida e que pôde colocar em causa a sua pertença à elite:
Eu tinha contacto com outras advogadas […] com quem eu tinha trabalhado no meu estágio louco de contencioso e […] “ninguém acredita que tu foste adjunta de um secretário de Estado e há dois meses atrás trabalhaste neste escritório, pois não?”. Não sei, não quero saber, nem sequer lhes digo, não quero que ninguém saiba nada sobre mim [risos]. (entrevista, 27 de outubro de 2015)
As sociabilidades interclassistas que foi desenvolvendo em Londres foram fundamentais para a sua integração e bem-estar (ainda que potencialmente embaraçantes no seu círculo privilegiado lisboeta), providenciando experiências de socialização que, no momento da entrevista, se encontravam a amadurecer, no sentido de reconstrução da sua identidade biográfica.
2.4. O caso de António
António vem de uma família de profissionais intelectuais e científicos com vários irmãos, todos licenciados em Engenharia. A decisão de estudar no estrangeiro é apresentada como um sonho acalentado pelo pai:
Os meus pais continuam no Brasil, eu já estou fora de casa há essencialmente oito anos… fora de casa, o que eu digo, fora do Brasil, oito anos. Sempre levaram isso muito bem, eu acho que - agora eu estou a falar especialmente do meu pai -, ele sempre teve também esse sonho, chamemos-lhe assim, de viajar e de conhecer outros lugares, poder estudar, falar outras línguas e poder ter essa experiência de estudar noutro país, pois nunca teve a oportunidade. Acho que de certa forma ele se sentiu realizado em eu poder fazer isso. (entrevista, 14 de março de 2016)
António fez a sua formação escolar no Brasil e, no momento de optar pelo curso superior, esteve indeciso entre Direito e Relações Internacionais em duas faculdades de dois estados diferentes6 porque pretendia que a licenciatura fosse uma ferramenta para poder seguir uma profissão que lhe permitisse trabalhar em diferentes países e, “eventualmente, seguir a carreira diplomática”. Após estudar durante um ano e meio no curso de Direito de uma universidade brasileira, inscreveu-se num programa de intercâmbio e fez um ano em Madrid, tendo depois transferido a sua matrícula para a Universidade de Coimbra, onde concluiu a licenciatura. A escolha por uma formação internacional é apresentada pelo António como um misto de vontade de viajar e conhecer diferentes países com a oportunidade de lá estudar.
A sua passagem por duas universidades europeias, em Madrid e em Coimbra, foi facilitada porque António adquiriu, por via da sua ascendência materna, a nacionalidade portuguesa. Durante esse período da sua vida interrompeu os estudos durante um ano letivo para ter uma experiência de trabalho na Irlanda, o que lhe permitiu melhorar a fluência da língua inglesa que, em conjunto com o conhecimento da língua espanhola, lhe permite uma acumulação de capital cultural facilmente acionável quando se trata de procurar emprego na área da advocacia de negócios internacional.
O internacional é para o António um fator de distinção profissional numa área muito competitiva que, aliada a outros fatores como as notas e o conhecimento técnico (Chaves & Nunes, 2011), apresentam-se como um capital que pode marcar a diferença face a outros candidatos (Santos, 2018).
No meu caso foi de facto uma mais-valia, [o] facto de que eu terminei o curso com alguns anos de diferença relativamente a outros colegas que acabaram a ser meus colegas de trabalho […] acho que foi mesmo uma mais-valia, em todos os escritórios de advogados onde fiz entrevista, o percurso pouco ortodoxo, digamos assim, e o fato de ter passado por universidades de três países diferentes, o curso [de] Direito propriamente dito; e entretanto também tinha feito cursos na Áustria, na Universidade de Salzburgo, [e] na Alemanha fui bolseiro DAAD [Serviço Alemão de Intercâmbio Académico]. (entrevista, 14 de março de 2016)
António valoriza a ideia de interculturalidade como modo de vida que lhe garante em simultâneo uma vida cosmopolita e a possibilidade de expandir as suas atividades profissionais para diferentes geografias, aliando os seus conhecimentos técnicos com as suas competências linguísticas.
Não foi um só motivo, foi uma série de fatores, até pelo meu percurso. Aliás, acho que já deu para perceber, gosto de ter contato com outras culturas […]. Acho que há projeção internacional dos escritórios espanhóis, acabou por ser o principal chamariz, digamos assim, do escritório, portanto, o facto de o escritório onde eu estou hoje ter uma projeção internacional e que isso poderia no fundo abrir também novas portas no futuro, foi um dos principais motivos. E depois há vários outros… salário, estar muito bem colocado nos rankings, tanto em Portugal como em Espanha. (entrevista, 14 de março de 2016)
A experiência internacional é descrita por António como uma etapa no seu enriquecimento pessoal e profissional, resultando num processo cumulativo de capital internacional em que as suas vivências em vários países europeus são apresentadas sem hierarquizações, destacando-se uma visão intercultural e cosmopolita.
2.5. Síntese dos casos
As escolhas educativas que marcaram os percursos educativos destes quatro jovens, em particular na sua dimensão internacional, estão relacionadas não só com estratégias de reprodução intergeracional, mas também de reconversão e acumulação de capitais no contexto da globalização. As famílias desempenham um papel importante, garantindo o suporte económico e afetivo, apoiando ou dirigindo as escolhas dos seus filhos, transmitindo capitais diversos necessários para a integração dos mesmos em círculos sociais mais restritos. Em alguns casos, os trajetos concretizam até “sonhos” que os pais foram acalentando ao longo da vida, mas que não deixam de colocar aos jovens novos riscos e oportunidades, os quais têm de gerir de acordo com a sua própria reflexividade.
Os percursos educativos dos quatro jovens são orientados para a obtenção de capital internacional através de diferentes modalidades de socialização, entre as quais a frequência de escolas internacionais, a realização de formação avançada noutros países e o envolvimento em práticas informais da classe dominante em espaços cosmopolitas. Mais concretamente, podemos observar a aquisição do capital cultural incorporado, como a aprendizagem de línguas estrangeiras (nos casos de Pedro, Rita e António) e a aquisição de competências cosmopolitas (nos casos de Pedro, Lan, Rita e António); do capital cultural institucionalizado, como a escolha de cursos e formações no estrangeiro (nos casos de Lan, Rita e António), relacionado com formas de capital simbólico de certos lugares geográficos onde se situam as instituições educativas (por exemplo Londres, no caso de Rita) ou o impacto das universidades em rankings como motivo para escolha do curso (nos casos de Lan e Rita). Ainda se verificam outras formas de conversão de capitais a partir da aquisição de cidadania portuguesa. No caso da família de Lan, pela atribuição de um Visto Gold, utilizando o investimento financeiro como forma de acumular capital simbólico. No caso de António, pela via das origens familiares portuguesas, que possibilitam a transferência de capital cultural para capital simbólico. Estes processos podem facilitar o acesso a - e/ou ser facilitados por - percursos educativos internacionais, sendo frequentemente cumulativos.
As reflexividades encontram-se a diferentes níveis. Lan e António debruçam-se sobre as experiências interculturais como formas de identificação no binómio da cidadania nacional/internacional, mas também como algo que os distingue dos jovens que ficam no país de origem. Pedro e Rita partem da experiência do internacional para refletir sobre o seu meio social e sobre o seu lugar de classe de forma crítica, seja porque a escola francesa permite ao primeiro confrontar-se com o elitismo e o fechamento do seu meio social, seja porque a vivência entre círculos sociais em Londres - o trabalho no hotel e os estudos universitários - permitem à segunda refletir sobre as inconsistências do seu lugar de classe.
Considerações finais
Os itinerários de vida e os quadros de socialização dos jovens das classes dominantes são, cada vez mais, marcados por experiências educativas e formativas em contextos internacionais em etapas e modalidades diversas. Este padrão resulta de uma valorização do contacto com diferentes culturas como meio de acumulação de capacidades e capitais distintivos, comandado por uma estratégia (muitas vezes, familiar) de reprodução de uma posição social dominante e de mobilidade social ascendente a partir de uma noção clara das hierarquias educativas, culturais e económicas.
No entanto, o que também fica evidente nas histórias de vida analisadas nas páginas anteriores, é que a socialização destes jovens não deixa de incluir períodos de transição, de incerteza e de ambiguidade com resultados por vezes inesperados, refletindo o mundo acelerado, em constante transformação e complexo em que se movimentam.
Essa “fabricação social dos indivíduos” (Lahire, 2015), neste caso, de jovens provenientes de classes dominantes, manifesta-se de forma diversa nas escolhas e percursos educativos, orientados para instituições de formação das elites, como as escolas internacionais ou algumas universidades reputadas na América do Norte e na Europa. Em termos de reprodução social, essas escolhas e itinerários são orientados para a acumulação de capitais, com ênfase no capital internacional cuja aquisição mobiliza - e tende a aumentar - os capitais económicos, culturais e sociais. Por outro lado, encontramos formas mais informais e difusas, nomeadamente, de encontro com outras culturas - por exemplo, viajar pelo mundo ou envolver-se em práticas de sociabilidade com jovens de origens nacionais diversas - enquanto experiências de socialização que, mesmo quando breves, se afiguram marcantes na formação das identidades. O capital internacional é, assim, um instrumento de distinção social à disposição de jovens das classes dominantes que, aliado aos capitais sociais, culturais e económicos, permite superar a esfera do Estado-nação e operar em diferentes escalas geográficas.
A posição “semi-periférica” de Portugal (Reis et al., 2023; Santos, 1985) reflete-se, também, nos percursos educativos e nas escolhas profissionais dos jovens das classes dominantes que, por um lado, conferem experiências distintivas a jovens de países do Sul e, por outro lado, potencia a distinção face aos currículos nacionais e a projeção em formações em países do Norte. Ainda que estas suas experiências educativas estejam nas antípodas de valorizar as “epistemologias do Sul” e as “ecologias de saber” (Santos, 2007), contribuindo mais frequentemente para a consolidação de um “pensamento abissal” hegemónico no quadro da globalização neoliberal, esses movimentos dos jovens não deixam de estimular encontros inesperados e processos de reflexividade - por exemplo, relacionados com as suas próprias origens em termos de família, comunidade ou classe social (Lechner, 2015).
A análise das quatro biografias dos jovens de classes dominantes com foco nas desigualdades sociais no atual capitalismo global e, mais especificamente, a sua ligação a Portugal, um espaço simultaneamente dominante e subordinado, permitiu explorar e desenvolver o potencial heurístico do conceito de socialização em três linhas: 1) construção de identidades juvenis complexas, ambivalentes e híbridas que são ancoradas em referências nacionais e, ao mesmo tempo, transversais às fronteiras dos Estados-nação; 2) surgimento de novas estratégias de reprodução social, nomeadamente a acumulação e conversão do capital internacional; e 3) crescentes potenciais de reflexividade para construir sistemas de orientação flexíveis e, simultaneamente, estáveis, que sustentem uma posição dominante no capitalismo global.
Novos questionamentos emergem a partir destas observações. Desde logo, afigura-se relevante comparar estas experiências e disposições com as de jovens de outras classes sociais, os quais não deixam de se formar também em contextos em que o nacional e o internacional se cruzam cada vez mais. Se é certo que estas experiências do internacional conferem oportunidades para uma acumulação de capitais e reforço das desigualdades sociais, também é verdade que a intensa circulação de pessoas e de informação é hoje transversal às diferentes classes, gerando percursos de mobilidade social em sentidos diversos. Além disso, é importante alargar no tempo esta perspetiva biográfica, entendendo os impactos a médio e longo prazo destas experiências de educação e socialização em contextos internacionais, em particular ante instituições (laborais, cívicas, políticas) que se organizam predominantemente por referência ao nível nacional. Cabe recordar que os quatro casos escolhidos se referem a jovens que se orientam para áreas socioprofissionais fortemente globalizadas, como é o caso dos negócios (incluindo aqui a advocacia de negócios). Contudo, os resultados do segundo projeto de investigação demonstraram como a educação internacional, sobretudo em ciclos mais longos, pode gerar entraves ao ingresso e permanência em áreas académicas e profissionais com normas tradicionais, propiciando um certo desenraizamento de redes e referências culturais que regulam o acesso a círculos exclusivos, sobretudo, aos jovens que não têm essa possibilidade por via da sua socialização familiar.
Declaração de conflitos de interesse
O autor e as autoras declaram não existir quaisquer conflitos de interesse.
Agradecimentos
Agradecemos aos jovens pela sua disponibilidade para serem entrevistados, bem como aos/às revisores/as pelas suas indicações construtivas que ajudaram a melhorar a qualidade do nosso artigo.