Introdução
Muito se tem escrito nos últimos anos acerca da elevada prevalência de exaustão (burnout) na Medicina em geral e na Radiologia em particular, sobretudo na literatura anglo-saxónica.1,2,3,4No entanto, a nível nacional, poucos dados objetivos temos acerca do impacto desta condição,5 nomeadamente no panorama da Radiologia. Por outro lado, para além da exaustão, muito se tem falado ultimamente também acerca das microagressões e do fenómeno impostor, que adicionalmente contribuem negativamente na saúde e bem-estar no local de trabalho do radiologista.5,6,7,8,9
Síndrome ou fenómeno impostor é entendido como conflito interior sentido por alguém, apesar de toda a evidência demonstrada de sucesso e adequação dos seus intuitos, ações e feitos alcançados.4,10
Microagressões são entendidas como comentários ou atitudes, que causam mal-estar, por vezes infligidos de forma sub-reptícia, velada ou inconsciente.3,11
O artigo pretende assim levantar o véu sobre o nosso panorama nacional acerca destas condições que impactam a qualidade e bem-estar no local de trabalho do radiologista.11
Métodos
Desenho do Estudo
Foi realizado um inquérito para investigar a relação entre microagressões, exaustão, sofrimento ético e por fenómeno impostor na Imagiologia nacional.
A estrutura do inquérito pretendeu ser fácil na compreensão para os sujeitos que respondiam e que estes mais facilmente se revissem em situações do "mundo real" da prática do dia-a-dia, daí a incorporação de imagens com "frases feitas"; também se pretendeu que fosse conciso e simples o suficiente e que não fosse demasiado demorado nas respostas para não desencorajar a participação.
O inquérito foi conduzido através de uma abordagem mista, utilizando redes sociais e comunicação por email para alcançar potenciais participantes, tendo sido utilizado a base de dados da Associação Portuguesa de Radiologia, Neurorradiologia e Medicina Nuclear (APRANEMN).
Participantes e Construção do Inquérito
Os participantes foram selecionados de forma abrangente em todo o território nacional, a fim de garantir uma representação diversificada. Para diferenciar os sujeitos, quatro perguntas iniciais foram apresentadas, capturando informações demográficas, profissionais e laborais essenciais: Especialidade (Radiologia, Neurorradiologia ou Medicina Nuclear), anos de experiência profissional na especialidade, incluindo internato (<10 anos; 10-20 anos; 21-30 anos; >30 anos), prática maioritária (Pública ou Privada, com ou sem realização de urgência para cada uma das opções) e distrito do participante (Tabelas 1 2, 3 e 4).
A segunda parte, relacionada com o tema central do estudo, abordou cinco questões específicas, todas elas com 4 possibilidades de resposta semelhantes (“Sim, frequentemente”, “Sim, por vezes”, “Raramente” e “Nunca”) sendo que algumas questões apresentavam uma caixa com exemplos ilustrativos de situações reais da prática diária da Radiologia (Figuras 1 2,3,4 e 5).
Recolha de Dados
O inquérito adotou um formato online, utilizado o Google FormsTM (Mountain View, California, EUA) como plataforma para recolha de respostas, sendo que os participantes responderam de forma anónima.
As respostas foram automaticamente registadas em formato eletrónico, sendo de seguida exportadas para o Microsoft ExcelTM (Redmond, Washington, EUA) para organização e armazenamento das mesmas.
A análise estatística dos dados foi conduzida através do software Jamovi (Sydney, Australia), uma ferramenta open source de análise estatística,12 incluindo métodos descritivos para resumir as características dos participantes e dos resultados das questões dos inquéritos, bem como avaliação de diferenças estatisticamente significativas entre grupos.
Processamento de Dados
As respostas a cada questão individual encontram-se na Tabela 5.
Como a amostra não é homogénea, certos grupos apresentaram um número insuficiente de sujeitos para permitirem análises estatísticas com a robustez necessária, pelo que optamos por realizar transformações das variáveis relativas à primeira parte do questionário.
Relativamente à prática maioritária, optamos por criar duas novas variáveis baseadas nos dados desta: prática maioritária local (público vs privada) e serviço (urgência vs não urgência). A distribuição de sujeitos pelas duas novas categorias pode ser vista na Tabela 6.
Relativamente aos Anos de Serviço optamos por transformar a variável para outra com dois subgrupos: a) <20 anos de experiência; b) >20 anos de experiência, sendo que a distribuição de sujeitos pelas duas novas categorias pode ser vista na Tabela 7.
Devido ao baixo número de sujeitos para as outras especialidades “não Radiologia”, a análise estatística para esta variável foi impossibilitada no presente estudo.
Finalmente para o Distrito, criamos uma nova variável denominada “Região”, usando a classificação NUTS II (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) como referência. Em virtude, de ainda assim, os números de sujeitos por região ser escasso em alguns dos grupos, procedemos ao agrupamento das regiões de acordo com o seguinte critério:
Norte e Centro, incluindo todos os sujeitos dos distritos pertencentes ao NUTS II Norte e Centro;
Lisboa e Sul, incluindo todos os sujeitos dos distritos pertencentes ao NUTS II AM (Área Metropolitana) Lisboa, Alentejo e Algarve;
Ilhas, incluindo todos os sujeitos dos distritos pertencentes aos NUTS II RA (Região Autónoma) Açores e RA Madeira.
A distribuição de sujeitos pela variável região pode ser vista na Tabela 8.
No caso das regiões, devido ao escasso número de sujeitos do grupo 3 e dada a impossibilidade de redistribuir de forma correta estes sujeitos, pelos dois restantes grupos sem com isso deturpar a componente geográfica, estes foram excluídos das análises estatísticas em que a variável Região foi usada como variável independente. Nas restantes análises em que esta variável não foi usada, os sujeitos foram integrados na análise.
Transformação de dados
Procedeu-se de seguida à transformação das variáveis das questões, passando de uma escala ordinal, para uma escala categórica, de acordo com a seguinte lógica: Nunca = 1 / Raramente = 2 / Por vezes = 3 / Frequentemente = 4.
A primeira análise realizada foi a de consistência interna da escala, utilizando o procedimento α (alpha) de Cronbach.
Com recurso ao teste Kruskal-Wallis avaliamos a diferença entre as medianas dos grupos. Foram considerados estatisticamente significativos valores de p <0.05.
Resultados
A amostra consistiu num total de 79 participantes.
A escala de consistência interna apresenta um alpha de 0.73, valor que é considerado “bom” para a análise de consistência interna, isto é, os itens da escala encontram-se positivamente correlacionados entre si.
Relativamente à prática maioritária local (Pública vs. Privada), a análise não revelou diferenças estatisticamente significativas entre os grupos para nenhuma das questões.
No que diz respeito à prática maioritária de serviço (Urgência vs. Não Urgência) identificaram-se diferenças estatisticamente significativas entre os grupos para todas as questões.
Para a questão 1, o teste de Kruskal-Wallis resultou num valor p de 0.025. Para a questão 2, o p foi de 0.003. Para a questão 3 o p foi de 0.025. Para a questão 4 o p foi de 0.001 e, por fim, para a questão 5 o p foi de 0.005.
Sobre a experiência profissional (<20 anos vs. >20 anos), observaram-se diferenças estatisticamente significativas entre os grupos para as questões 1, 2 e 5, sendo que o p foi respetivamente de 0.017, 0.033 e 0.003.
Por fim, relativamente à variável “Região”, não se encontraram diferenças estatisticamente significativas entre os grupos para nenhuma questão.
Os valores do teste de Kruskal-Wallis para estas variáveis encontram-se na tabela 9, sendo que os números de respostas por grupo após as transformações encontram-se na tabela 10.
Discussão
O propósito do inquérito foi avaliar o impacto das microagressões, exaustão, sofrimento ético e por fenómeno impostor, em ambiente de trabalho, na imagiologia nacional, com respostas de todo o espectro da força de trabalho da Radiologia em Portugal, encontrando-se diferenças estatisticamente significativas entre grupos.
Em maior destaque encontra-se a variabilidade de respostas nos grupos “urgência” e “não urgência”, com diferenças estatisticamente significativas em todas as questões, ou seja, o grupo de pessoas que tem serviço de urgência na sua carga de trabalho reporta mais microagressões, exaustão e sofrimento, face a quem não faz urgência.
Relativamente aos anos de experiência, o estudo mostrou diferenças significativas entre grupos nas questões 1, 2 e 5 (relativas ao fenómeno impostor e às microagressões e (evicção) de situações de exaustão/conflito), com a maior diferença entre respostas a localizar-se na questão 5 relativamente ao mal-estar ou incómodo provocado pelos comentários e atitudes de colegas, com o grupo com experiência inferior a 20 anos a mostrar respostas mais elevadas de sofrimento, face ao grupo com experiência superior a 20 anos, . Talvez este fator possa ser explicado por maior respeito hierárquico e maior experiência em autocontrolo emocional do segundo grupo para lidar com este tipo de situações e/ou uma maior prevalência de ansiedade e hetero-agressividade ou agressividade passiva nas gerações mais novas
Apesar de poder, à primeira vista, parecer estranho face à perspetiva nacional, o nosso estudo não demonstrou diferenças estatisticamente significativas nas questões para quem trabalha em Hospitais Públicos, face a quem exerce maioritariamente no Setor Privado. De igual forma, também não se verificaram diferenças nas respostas entre as diferentes Regiões do país, traduzindo um panorama muito homogéneo na Radiologia a nível nacional.
Neste estudo a maior limitação foi a amostra reduzida, nomeadamente nas especialidades Neurorradiologia e Medicina Nuclear, bem como nas regiões “Ilhas” cuja análise estatística foi impossibilitada.
Relativamente a análises futuras, recomendamos aumentar a amostra, para garantir uma ainda maior homogeneidade da mesma, garantir representatividade de outras especialidades, de forma a perceber se este poderá ser um fenómeno que atinge mais a Radiologia.
Outras análises mais detalhadas poderão incluir o impacto do teletrabalho, a dicotomia de urgência diurna vs noturna, bem como da percepção do trabalho isolado, comparativamente ao trabalho em equipa.
Poderá também recolher-se informação adicional de forma a obter mais variáveis, nomeadamente sobre género e até alargar o questionário a questões ainda mais abrangentes e reveladoras.
Uma análise após medidas corretivas e de evicção destes perniciosos fatores que atentam ao bem-estar do médico radiologista será também de interesse para se analisar se, por exemplo, a exaustão (burnout) é passível de mitigação da prática em Urgência ou se fatores adicionais atentam ao bem-estar no local de trabalho.
Conclusão
Demonstramos neste estudo preliminar dados objetivos sobre as microagressões, exaustão e sofrimento ético e por fenómeno impostor no quotidiano da prática radiológica nacional, com uma abrangência nacional e nas diferentes práticas pública e privada.
Os dados foram positivos, com significado estatístico, em alguns grupos, particularmente naqueles que fazem Urgência, e em gerações mais novas, podendo estes serem fatores de análise e a ter em consideração em questões como recrutamento, gestão, higiene e segurança nos locais de trabalho da Radiologia. Medidas corretivas para combater estes perniciosos fatores que atentam ao bem-estar são necessárias.
Material Adicional/Suplementar
A tabela em ficheiro Microsoft Excel original derivada do inquérito obtido via Google Forms encontra-se acessível como suplemento online(https://bit.ly/3xLFkWx).