Introdução
A população mundial está a envelhecer, sendo previsível o aumento da prevalência de doenças crónicas e não transmissíveis, bem como o incremento do número de pessoas com necessidades paliativas1.
Sendo a doença oncológica considerada a segunda maior causa de morte a nível mundial2 constata-se, também, uma mudança no que diz respeito ao local onde os doentes são cuidados. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, a redução da família alargada, a massificação dos hospitais e os movimentos migratórios, o cuidado dos doentes crónicos e em fim de vida passou a ser assegurado, em grande parte, pelos profissionais de saúde em contexto hospitalar. Estas mudanças constituem um desafio, nomeadamente no que respeita à organização dos serviços de saúde e à distribuição dos recursos humanos, com vista à satisfação das necessidades das pessoas com doenças crónicas e das suas famílias3.
Neste contexto, definimos como objetivos deste estudo identificar as características sociodemográficas e clínicas da amostra, bem como caracterizar a capacidade funcional da pessoa em situação paliativa oncológica durante o internamento num serviço de cuidados paliativos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define Cuidados Paliativos como “uma abordagem, que visa melhorar a qualidade de vida dos pacientes (adultos e crianças) e suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Previne e alivia o sofrimento, com recurso à identificação precoce, correta avaliação e tratamento da dor e de outros problemas, sejam físicos, psicossociais ou espirituais.”4
Os cuidados paliativos têm como princípios fundamentais: acompanhar e confortar os doentes, adultos e pediátricos, ao longo da sua doença; o controlo sintomático; o alívio do sofrimento físico, psicológico, social e/ou espiritual; a prestação de cuidados centrados na pessoa e seus familiares, de modo a otimizarem a sua qualidade de vida, maximizando e preservando a sua dignidade; bem como o suporte psicológico, emocional e espiritual, através de uma comunicação eficaz e terapêutica; o cuidado à família, devendo esta, ser ativamente integrada nos cuidados prestados e, por sua vez, ser ela própria objeto de cuidados durante a doença, durante o luto; o trabalho em equipa, em que todos se centram numa mesma missão e objetivos; integrar e complementar a prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento de condições de saúde graves, crónicas, complexas ou limitantes de vida em qualquer nível do sistema de saúde, permitindo assim, melhorar a continuidade dos cuidados; fortalecer os sistemas de saúde e promover a cobertura universal5,6.
Face às diversas necessidades que os doentes oncológicos apresentam, a prestação de cuidados paliativos é estratificada em vários níveis que se distinguem entre si pela capacidade de responder a situações mais ou menos complexas e pela especialização e formação dos profissionais7. Torna-se, por isso, evidente que se recorra a um vasto conjunto de instrumentos de classificação e avaliação das capacidades da pessoa doente, tornando-se a pesquisa e investigação fundamental para atender às suas necessidades8.
Associado às doenças oncológicas, é comum ocorrer a perda progressiva da capacidade funcional, que afeta a independência nas tarefas do quotidiano e a autonomia dos indivíduos. A avaliação funcional é fundamental para a vigilância da evolução da doença, constituindo um elemento valioso na tomada de decisões, diagnóstico, prognóstico e prevenção de efeitos adversos associados ao declínio funcional, podendo ser avaliada por diversos instrumentos8,9.
Questão de investigação: Qual a capacidade funcional do doente oncológico internado numa unidade de cuidados paliativos?
Metodologia
O desenho da investigação enquadra-se num estudo descritivo, longitudinal10, permitindo avaliar a evolução do status funcional do doente durante o internamento. Para a sua consecução foram considerados os seguintes instrumentos de recolha de dados:
MIF (Medida de Independência Funcional), traduzida e validada por Laíns11. Esta escala é a versão portuguesa da Adult Funtional Independence Measure - Guide for the Uniform Data System for Medical Rehabilitation12. Este instrumento de avaliação é um indicador de base da severidade da incapacidade e foca-se na realização das atividades de vida diárias de forma independente. Pretende avaliar o desempenho do doente em 18 tarefas, classificadas numa escala de 1 (dependência total) a 7 (independência total) pontos, que representam os níveis de dependência. A cotação total pode variar entre 18 e 126 pontos. A MIF apresenta as seguintes subescalas: autocuidados, controlo esfincteriano, mobilidade/transferências, locomoção, comunicação e cognição social11,12.
ECOG Performance Status (Eastern Cooperative Oncology Group) - autores Oken, Creech, Tormey, Horton, Davis, McFadden e Carbone13, aplicada pela equipa médica do serviço na admissão do doente ao internamento, com vista a avaliar o estado de performance em doentes oncológicos, pontuando de 0 a 5.
PPS (Paliative Performance Scale) - autores Anderson, Downing e Hill14 em validação pelo Observatório Português dos Cuidados Paliativos e aplicada pela equipa médica do serviço na admissão do doente ao internamento, com vista a avaliar a funcionalidade em doentes em situação paliativa, pontuando de 0 a 100%.
No momento de admissão foram aplicados os três instrumentos - MIF, EGOG e PPS. Posteriormente, a escala MIF foi aplicada em mais dois momentos, no 14º dia de internamento (data escolhida tendo em conta tempo médio de internamento dos doentes) e no momento da alta. Os restantes dados foram obtidos pela consulta dos registos eletrónicos médicos e de enfermagem do doente. Os dados foram recolhidos pelos elementos da equipa de investigação.
Como população-alvo, foram incluídos os doentes internados numa unidade de cuidados paliativos oncológicos durante o ano de 2022, sendo a amostra probabilística e simples, constituída por doentes internados num serviço de cuidados paliativos oncológicos da região centro entre 15/3/2022 e 30/6/2022.
No respeitante aos critérios de inclusão, foram envolvidos todos os doentes cuja previsão de internamento em cuidados paliativos fosse de, pelo menos, 14 dias (dado extraído do registo existente na proposta para cuidados paliativos). Excluíram-se doentes em últimos dias e horas de vida (dado extraído do registo existente na proposta para cuidados paliativos).
Todos os doentes que aceitaram participar assinaram um formulário de consentimento informado, que detalhava, de forma clara, a natureza e os objetivos do estudo. Nos casos em que não se encontraram reunidas as capacidades cognitivas necessárias ao seu consentimento, foram representados por um familiar. O formulário em causa foi anexado ao processo clínico dos doentes.
A análise e tratamento de dados foi realizada com recurso à estatística descritiva e ao Excel®.
A presente investigação foi avaliada e aprovada em março de 2022 pela Comissão de Ética e pelo Gabinete Coordenador de Investigação da respetiva instituição e conduzida de acordo com as boas práticas clínicas e de investigação científica, atendendo à Declaração de Helsínquia.
Resultados
Tal como evidenciado na Tabela 1, os 53 doentes avaliados apresentam uma idade média de 71 anos, sendo a maioria masculinos (64,2%).
A maioria dos doentes foram referenciados no ano de 2022 (66,0%).
Os serviços que mais referenciaram doentes foram a Oncologia Médica (60,4%), seguida das Especialidades Cirúrgicas, que incluem os serviços de Ginecologia, Cirurgia Geral, Cirurgia Cabeça e Pescoço e Urologia (30,2%).
O diagnóstico oncológico mais antigo foi, em 1988, um melanoma, constatando-se que a maioria da amostra era constituída por diagnósticos recentes referente aos últimos dois anos, respetivamente com 15,1% em 2020, 30,2% em 2021 e 20,7% em 2022.
O carcinoma gástrico (17,0%) foi o diagnóstico mais frequente, seguido do carcinoma do pâncreas (13,2%), salientando-se o facto de numa grande percentagem da amostra, ter sido identificada pelo menos uma metástase (41,5%).
Os doentes com valores da MIF reduzidos, apresentam igualmente valores de PPS e ECOG reduzidos, à data de admissão na unidade de cuidados paliativos.
O valor médio na escala PPS é de 41,1, e na escala ECOG é de 3,3, o que significa que na admissão os doentes possuem entre 30-50% e 3-4 de performance, respetivamente.
Do total de avaliados (n=53), 33 doentes não atingiram os 14 dias de internamento, a maioria por motivo de óbito e os restantes por alta clínica.
Os 20 doentes reavaliados ao 14º dia apresentam uma MIF média de 55, o que traduz um agravamento da sua funcionalidade.
Os 19 doentes que permaneceram para lá dos 14 dias de internamento, no momento da alta tinham uma MIF média de 95, o que traduz alguma melhoria da sua funcionalidade.
Desde o momento de admissão até ao 14º dia de internamento, 14 doentes agravaram, 2 melhoraram e 4 mantiveram o valor pontuado na escala da MIF.
Do 14º dia até ao momento da alta clínica, 6 doentes melhoraram a sua funcionalidade, 3 mantiveram e os restantes 10 agravaram o valor pontuado na escala da MIF.
Nenhum doente foi proposto para intervenção por parte do enfermeiro de reabilitação.
Discussão
Os resultados obtidos e evidenciados na Tabela 1 são concordantes com a literatura consultada, demonstrando ser muito difícil dissociar a funcionalidade física de características sociais e das capacidades cognitivas, corroborando a necessidade de existirem equipas multiprofissionais em cuidados paliativos, onde a natureza do trabalho em equipa se adapta de acordo com as alterações de saúde do doente.15,16.
A implementação de instrumentos que permitam à equipa clínica formular um prognóstico de sobrevida dos doentes oncológicos tem diversos benefícios: promove a capacitação do doente e da família na tomada de decisões sobre os objetivos do cuidar; incentiva à definição de um plano e preparação do fim de vida; permite às instituições uma melhor dotação dos recursos humanos consoante as necessidades identificadas.9,17
Os resultados de uma revisão sistemática da literatura realizada em 2018 evidenciam que a PPS e a MIF são dois dos instrumentos comummente utilizados para avaliação da funcionalidade de idosos em cuidados paliativos18. A escala ECOG foi desenvolvida e validada para doentes oncológicos, bem como a PPS, sendo amplamente utilizadas em cuidados paliativos, embora os processos de validação não se encontrem ainda finalizados para português europeu9,13,14,18, sendo uma das limitações identificadas. No que se refere à escala MIF, verificámos a ausência de estudos em que a sua validação tenha sido realizada em doentes paliativos, pelo que é uma das limitações identificada18.
Relativamente à funcionalidade, no caso do valor médio de PPS na admissão, este é concordante com um estudo realizado em 2015, em que a média dos doentes apresentavam um PPS superior a 30%19. Em relação ao valor da ECOG, os doentes deste estudo encontravam-se com uma menor performance, relativamente a um estudo realizado em 202120, em que a maioria apresentava um ECOG entre 0 e 1, reforçando um histórico de internamentos tardios, em que os doentes apresentam elevados níveis de dependência.
A maioria dos doentes avaliados não atingiram os 14 dias de internamento, o que revela, nos casos de alta, que o motivo de internamento foi resolvido, sendo convergente com o estado da arte que estima uma média inferior a 15 dias de internamento em unidades de cuidados paliativos de agudos21. Por outro lado, quando o óbito ocorreu antes dos 14 dias de internamento, significa que foram admitidos doentes em situação de últimos dias de vida, fato que é amplamente reconhecido e está relacionado com a reduzida rede de suporte comunitário em cuidados paliativos, que não responde às necessidades de doentes e famílias no apoio ao morrer em casa, conduzindo à institucionalização e processo de morte que comummente ocorre no hospitais21,22. Também houve situações em que os doentes foram transferidos para outras unidades, decisão justificável pela vontade do doente em estar mais próximo do local de residência.
Constatámos pelos resultados evidentes na Tabela 1 que, até ao 14º dia de internamento, houve um agravamento da funcionalidade, porém, desde este momento e até ao dia da alta, nove doentes mantiveram e alguns melhoraram a sua funcionalidade. Atribuímos este resultado ao controlo dos sintomas com intervenções farmacológicas e não farmacológicas (um dos pilares dos cuidados paliativos), uma vez que o controlo de dor, dispneia, fadiga, náuseas, vómitos, insónia, entre outros fatores, permite que o doente aumente a sua autonomia para a satisfação das necessidades fundamentais23. Ressalvamos que não houve, em nenhum momento, intervenção da área da reabilitação, pelo que não poderemos atribuir os resultados a esse fator.
Embora a promoção da qualidade de vida em cuidados paliativos seja uma premissa, perante os elevados níveis de incapacidade funcional dos doentes, as intervenções de reabilitação continuam a suscitar dúvidas8. De forma errónea, os seus objetivos podem parecer incompatíveis com a filosofia deste tipo de cuidados, informação que corrobora os resultados do presente estudo.
De acordo com a Ordem dos Enfermeiros, a enfermagem de reabilitação dirige-se a pessoas em todas as fases do ciclo vital, incluindo portadores de doenças crónicas, tendo como objetivo promover a maximização das suas capacidades funcionais, visando a maior qualidade de vida possível, intervenções que são convergentes com a filosofia dos cuidados paliativos24.
Numa revisão integrativa da literatura8 entre 2009 e 2014, concluiu-se que há um número crescente de estudos que assegura que a reabilitação vai ao encontro de muitas das necessidades não satisfeitas de utentes em cuidados paliativos e, embora não elimine os danos causados pelas doenças, certamente pode atenuá-los. Neste contexto, as várias intervenções de reabilitação no doente paliativo em cuidados paliativos demonstraram benefícios na capacidade funcional, na qualidade de vida e nos sintomas do foro alimentar e respiratório, nomeadamente a dispneia, bem como no estado emocional e função cognitiva, contribuindo para a minimização da fadiga e para o bem-estar geral, variáveis que se integram na filosofia dos cuidados paliativos.25,26
Para além das limitações anteriormente assinaladas, relacionadas com os instrumentos de colheita de dados, salientamos a dimensão da amostra e a generalização dos resultados.
Conclusão
A funcionalidade dos indivíduos deve ser alvo de vigilância e intervenção da equipa multidisciplinar em todas as fases da doença, incluindo em situações de internamento em cuidados paliativos.
No presente estudo, verificou-se que o grau de funcionalidade no momento de admissão era de moderada dependência, e que decresceu ao longo do internamento do doente, exigindo, em muitos casos, um persistente trabalho de equipa multiprofissional, e uma reformulação do plano inicial de cuidados e prolongamento do tempo de internamento, de forma a dar resposta às necessidades do doente e respetiva família.
Está comprovado na literatura que a existência de recursos humanos diferenciados na área da enfermagem de reabilitação é uma mais-valia na promoção da qualidade de vida do doente, pelo que deve ser considerada a sua integração na equipa multiprofissional, em geral e, nos cuidados paliativos, em particular.
Face à escassez de estudos publicados que identifiquem e caracterizem a capacidade funcional do doente oncológico internado em cuidados paliativos, consideramos de elevada pertinência a realização de estudos futuros que permitam dar resposta a estas questões, bem como outros que apurem se a intervenção do enfermeiro de reabilitação influencia a funcionalidade nestes doentes.
Entendemos que este estudo representa um contributo positivo e promotor da implementação de práticas uniformes que visem a melhoria da qualidade dos cuidados paliativos prestados.